Onde estava no final de 2020? — carta para António Costa
Exceto quando sou chamada a eleições – no meu caso, apenas para votar -, nenhum governo ou individualidade política me fez sentir qualquer tipo de apelo. Mas 2020 foi, para todos – políticos ou não -, cheio de particularidades. E é neste contexto que me dirijo ao primeiro-ministro.
Caríssimo Dr. António Costa,
Escrevo-lhe ao ritmo do meu pensamento, sem o habitual rigor de verificar datas ou afirmações. Não é como se não houvesse tempo para isso… Na realidade, o teletrabalho e o facto de lhe falar ao som dos meus dedos no teclado, em vez de no correr de uma pena, permitem-me o tempo e os meios para me certificar de que lhe dirijo palavras precisas, informações verificadas e tudo isto numa lógica temporal conexa.
Não é o que pretendo. Por favor, entenda estes primeiros parágrafos como uma espécie de declaração de interesses. Só que, neste âmbito, não importa informar sobre o meu espectro político – que, se soubesse, revelaria, mas os testes online revelaram-se inconclusivos; muito menos interesses económicos – com mais de 30 anos, o meu principal objetivo de investimento é tão-só conseguir iniciar um PPR. E nem sequer considero que possa ser um fundo.
Resta-me então deixar claro que lhe escrevo apenas com a mais profunda honestidade. Por isso, não me leve a mal a quase familiaridade do tratamento “caríssimo”, sem sequer identificar o seu cargo, como se lhe dirigisse esta carta por quem é. Aliás, só neste terceiro parágrafo percebi o quão incorreto isso poderia parecer mas, como referi, tento apenas que as minhas mãos acompanhem um raciocínio e, de facto, nem sei que pessoa é. Honestamente, como prometido, escrevo porque na realidade é primeiro-ministro e, pela função que desempenha, foi identificado em diversas notícias como tendo testado positivo à COVID-19 e, por isso, passaria o Natal sozinho em São Bento.
E, bem, terá advindo daí a familiaridade. Não pelo teste positivo, que eu não sei se fui infetada pelo SARS-CoV-2; mas por saber que não estaria com a família. Tal como eu.
Não sei quanto tempo livre deixa a gestão de uma crise sanitária, que degenera numa crise económica e que só sai de cena devido à intermitente crise política… Por isso, não me admiro se não conhecer o nosso “sinalAlberto”. Mas, enfim, quando puder, venha ler.
Um dos cronistas mais originais, Júlio Roldão, apresenta frequentemente deliciosos postais que dirige a quem nunca vamos poder adivinhar. Também não sei se algum foi para si, senhor primeiro-ministro. Mas, enfim, inspirou a minha carta.
Quando, do fundo da sala, a televisão me disse que passaria o Natal em isolamento, pensei logo: “merecia um postal”. Eu também recebi um da minha família, com quem não estive.
Ri-me sozinha e perguntei-me se em São Bento haveria pizza no congelador, como eu costumo ter, e se ficaria guardada para a Consoada. Deus sabe que lutei para guardar a minha desde o dia das compras até à noite de 24 de dezembro.
Já agora, pergunto: a vizinhança foi solidária? Será que chegou um pratinho de arroz doce ao palácio? Eu não fiquei com amigos para não sermos mais de cinco numa casa, mas os mais próximos trouxeram vários doces à minha porta. Até sobrou pizza para o Dia de Natal.
No dia seguinte regressei ao trabalho e nunca mais, confesso, pensei em si.
Até ao dia 29 de dezembro, quando a televisão me falou novamente e me contou que o primeiro-ministro havia terminado o isolamento. “Ah, o postal!”, suspirei, “que será feito de António Costa desde o final do ano?”.
Entretanto, começaram os debates para as Eleições Presidenciais e a vida não está “famosa” lá para os lados do Ministério da Justiça… Isto também me contou a televisão. Sempre lá do fundo da sala, enquanto eu matraquilho estas e outras teclas.
Caríssimo António Costa, raramente penso em si. Mas saiba que, agora, quando me lembrei (mesmo sendo numa altura em que toda a gente se lembra de toda a gente), foi com o coração.
Se isto servir de alguma coisa, peço-lhe, senhor primeiro-ministro, que nunca se esqueça do país.