Os actores são a crónica dos tempos
HAMLET: (a Polónio) Caro senhor, quereis incumbir-vos da hospedagem destes actores? Mas tomai nota: que sejam bem tratados, porque são o espelho e a crónica resumida dos tempos. Ser-vos-ia preferível um ruim epitáfio depois de morto, a andardes em vida difamados por eles. (“Hamlet”, Acto II, Cena II)
Na minha única ida a Londres, visitei o parlamento britânico, foi como um pequeno ritual para ver a actriz Glenda May Jackson, que, como membro daquele corpo legislativo supremo do Reino Unido e dos territórios britânicos ultramarinos, defendia e representava os direitos, entre outros, dos artistas ingleses, numa Inglaterra devastada pelothatcherismo, legado político da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher que criticou de forma veemente.
Em 1992, aos 56 anos, a artista anunciou que deixava os palcos e candidatou-se a parlamentar, pelo Partido Trabalhista, nas eleições gerais daquele ano. Obteve uma vitória marcante nos círculos de Hampstead e Highgate, que haviam sido conservadores durante duas décadas.
Com o Partido Trabalhista no poder, cinco anos mais tarde, Glenda Jackson assumiu a “pasta” dos transportes de Londres. Desde uma perspectiva de esquerda, foi crítica do New Labour, de Tony Blair, e protestou contra a invasão do Iraque. Voltou a participar nas eleições gerais em 2010. Todavia, em 2015, regressou aos palcos. Os seus últimos filmes, que não conheço, foram “O domingo das mães” (de 2021) e “The Great Escaper” (de 2023), em que participou com Michael Caine.
Conservo entre os meus documentos uma versão de “A Casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca, com Glenda Jackson no papel principal e com Joan Plowright, no desempenho de Poncia, numa encenação da actriz espanhola Nuria Espert.
No recente dia 15 de Junho, a imprensa noticiou o falecimento de Glenda Jackson, aos 87 anos, na sua casa em Blackheath (Londres), ao lado da família, após doença. Além de ter sido actriz, vencedora de dois Óscares, teve uma carreira política dedicada aos “pobres, desempregados e doentes“.
Julgo ter visto os filmes mais destacados desta actriz, entre eles, “Mulheres Apaixonadas” (de 1969), “Mary, Queen of Scots” (“Maria, Rainha dos Escoceses”), com Vanessa Redgrave, no qual interpretava o papel de Rainha Isabel I; e a versão cinematográfica de “Marat/Sade” (datada de 1967), de Peter Brook, do espetáculo teatral encenado por Brook para a Royal Shakespeare Company.
Naquela versão, Glenda Jackson interpretava a personagem de Charlotte Corday, a girondina que assassinou o revolucionário francês Jean-Paul Marat. Foi, para mim, uma das mais belas interpretações da actriz, sendo este também, na minha modesta opinião, a par de “Classe Morta”, de Tadeusz Kantor, um dos mais importantes espectáculos teatrais do século XX.
O “menino Tonecas”: o menino herói
Foi com enorme pena que tomei conhecimento da partida do actor Luís Aleluia, sobretudo, considerando as circunstâncias. Certamente, ficamos mais pobres, mas será sempre lembrado na série televisiva “As Lições do Tonecas” , adaptadas pela RTP, na década de noventa do século XX. Luís Aleluia era o menino Tonecas e Morais e Castro, o professor. A referida série foi uma adaptação livre dos “sketches” do autor Oliveira Cosme. E as aulas decorriam normalmente com as duas personagens principais, acrescentando em cada episódio, conforme o tema central, um convidado especial, entre eles, Quim Barreiros, Fernando Mendes e a personagem interpretada pelo actor Badaró, o Chinesinho Limpopó. A personagem foi tão marcante para o actor que muitos espectadores esquecem as suas outras muitas intervenções em séries televisivas. O menino Tonecas faria a sua última aparição em 2006, por decisão de Luís Aleluia.
Pela humanidade que o actor imprimiu à personagem será difícil esquecer as suas travessuras. Talvez porque todos nós temos qualquer coisa deste menino, no qual se mistura, sem o sabermos, o nosso amor e também alguma rejeição à escola, devido, supostamente, ao nosso pequeno e primitivo anarquismo, que quase nos obriga a sermos contestatários.
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Os actores ameaçados: os verdadeiros heróis
No dia 3 de Novembro de 1987, durante a ditadura, um grupo de 78 actores e dramaturgos chilenos recebeu uma carta com um ultimato que lhes dava um mês para deixarem o país. Mas eles resolveram resistir e ficar. Para isso, idealizaram um plano ousado e perigoso: trazer o super-herói mais famoso do Mundo para o Chile. O norte-americano Christopher D’Olier Reeve (activista da UNICEF e da Amnistia Internacional), então, muito conhecido por protagonizar a série de filmes “Superman”, viajou e apoiou os actores perseguidos pela ditadura de Pinochet, em 1987, numa campanha internacional de solidariedade.
No ano de 2012, numa viagem a Buenos Aires, assisti, nesta vez também num ritual, ao espectáculo teatral “Master Class”1, no qual a notável actriz argentina Norma Aleandro interpretava a personagem de Maria Callas. Constituiu um espectáculo unipessoal. Norma Aleandro retomava, 16 anos mais tarde, uma personagem que interpretara, com enorme êxito, no ano de 1996. Foi uma pequena homenagem a esta actriz pela sua carreira e percurso pessoal artístico e cívico!
Ameaçada pela Triple A2, em 1976, Norma Aleandro teve de se exilar – primeiro, no Uruguai; depois, em Espanha – devido à ditadura militar imposta na Argentina, continuando sua carreira no teatro e no cinema.
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Notas:
1 – Peça, de 1995, do dramaturgo americano Terrence McNally, apresentada como uma Master Class fictícia pela diva Maria Callas, perto do fim da sua vida, na década de 1970.
2 – A Aliança Argentina Anticomunista (AAA), também conhecida como Triple A, foi uma organização terrorista para-policial anticomunista de extrema direita, na Argentina, criada e dirigida por peronistas (como o seu chefe político José López Rega e Julio Yessi), bem com o por anti-peronistas (como os seus chefes operacionais, os comissários Alberto Villar e Luis Margaride) e por criminosos comuns (como Aníbal Gordon, o subinspetor Rodolfo Eduardo Almirón e o comissário Juan Ramón Morales), a par de membros da Polícia Federal, das três forças armadas argentinas militares e da Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE), que assassinaram artistas, padres e religiosos, intelectuais, políticos de esquerda, estudantes, historiadores e sindicalistas, além de fazerem uso de ameaças, de execuções sumárias e do desaparecimento forçado de pessoas.
A este respeito, na edição de 23 de Junho de 2023 do jornal espanhol El Pais, podemos ler, no editorial “La memoria argentina”: “El Gobierno repatría un avión de los ‘vuelos de la muerte’ como parte de su batalla contra el olvido”
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10/07/2023