Os carris de Marcelo Tabbara
Miguel Cedro levantou-se bem cedo para mais uma expedição aos golfinhos. Ele e Joana deveriam limpar o iate, verificar que tudo estava bem, renovar os mantimentos e finalizar a lista de visitantes. O tempo estaria bom na Arrábida e deveria ser possível atracar num banco de areia. Não teriam que produzir qualquer assobio especial. Os golfinhos precisavam de encher os pulmões e já estavam habituados à sua presença. Gostavam também de brincar com os rastos de espuma.
Na cozinha, Pedrito fritava um ovo. Tinha passado a noite a consultar os astros, o que o deixou faminto. Estava indeciso entre filosofia e física. A matemática era outra hipótese, mas a física estava primeiro. Heisenberg tinha mais as respostas e Habermas as perguntas, pelo menos era assim que via as coisas. Ficou contente em ver o pai.
«Ainda estou a pensar», sussurrou. «Vais ao barco? Podia ir contigo».
«Hoje vai ser complicado», disse. «O barco está cheio e a tua avó precisa de ti. Queres ajuda?»
«Ainda estou a pensar, mas está difícil».
«Vou contar-te uma pequena história. É um pouco a história do meu melhor amigo». Já não o via há largos anos, mas sabia que continuaria a ficar muito contente se o visse. Quando o conheceu pela primeira vez era um poço de hesitações. Parecia ter uma vaga ideia do que queria, mas foi o trilho que veio ter com ele. Tudo parece começar por acidente.
«Chama-se Marcelo Tabbara, porque é brasileiro de origem libanesa. Os pais são libaneses mas vivem no Brasil desde os 9 anos. Conheci-o quando visitei uma empresa de biotecnologia em Heidelberg. Era biólogo e fez desde então muitas outras coisas. Agora não sei muito bem o que faz».
Era tímido e estrangeiro, dois pecados mortais que não o ajudavam a impor-se. Tinha um ar suave, apesar dos olhos negro-azeviche. Simpatizaram de imediato. Mostrou-lhe logo o seu Honda Prelude, novinho em folha.
«Ficou maravilhado quando filmou pela primeira vez vesículas a moverem-se rapidamente no interior de células vivas. Pareciam ter rodas e deslocavam-se por carris. Transportavam materiais de um lado para o outro nas células. Os carris cruzavam-se e tocavam-se, numa rede sem fim».
«É preciso ter um pouco de sorte para que a maravilha tropece connosco», pensou Pedro, com uma nota de despeito. «Como é que encontramos coisas maravilhosas?»
«Contando, medindo e fazendo muitas perguntas. Pode ser que ninguém consiga responder, mas os neurónios expandem-se e fazem mais perguntas. Ganham também mais engenho a contar e a medir».
«Até que os dados são tantos que os neurónios têm que começar a fazer modelos e teorias. É assim em tudo».
«O que é que as teorias têm a ver com isto? Estou um pouco farto de teorias», murmurou Pedro para consigo. «Têm, têm muito a ver. Os dados são cegos. Mas não te sei dizer ao certo, é preciso fazer».
Marcelo Tabbara. Ficou famoso pelos dois artigos seguidos na Nature. No entanto a mulher não tinha emprego, regressou ao Brasil e separaram-se. Ainda voltou um par de vezes, mas não podiam ter filhos e afastaram-se de vez. Ainda a conseguia ver, doce e amargurada. Tricotaram palavras e ternura, dias e noites seguidas.
«E o que é que o Marcelo fez?»
«Os neurónios dele cresceram tanto que os carris das células já não chegavam. Teve que inventar outros».
«Descobriu que as aves se deslocam por carris nas suas migrações».
«As aves?»
«As aves migratórias navegam por caminhos que são determinados pelo sol, pela lua e pelo campo magnético da terra. Marcelo descobriu que as aves têm células especializadas nos olhos, nos ouvidos e no bico que as ajudam a sentir esses campos. É como se se orientassem por carris».
«Marcelo descobriu esses carris ou foram eles que foram ter com ele?»
«Marcelo aplicou as teorias que desenvolveu ao estudar as células para calcular a probabilidade de as aves seguirem certas rotas e não outras. Descobriu que há milhares de trajetórias possíveis, algumas quase certas e outras muito improváveis».
«E as aves podem mudar de carris, como numa estação de comboios?»
«Trabalhava nesse assunto, da última vez que falei com ele. Disse-me uma coisa um pouco enigmática, que ainda hoje não entendo muito bem. Falou-me no efeito-túnel em certas reações químicas».
«Sim, já ouvi falar nisso, mas também não sei bem. Foi quando a nossa professora de química nos falou em isótopos e na descoberta do deutério em 1932. Fixei a data porque me pareceu intrigante. Parece que um átomo muito leve como o hidrogénio tem uma certa probabilidade de migrar para outro local, mesmo que tenha que passar uma barreira de energia muito grande. Faz sentido?»
«Pois, já me lembro. Ele pensava que algumas aves pequeninas podiam ser desviadas da trajetória e entrar noutros carris». O modelo de Marcelo ficou conhecido como “Tabbara model of quantal bird migration“. Ficou muito contente. Recordava-se agora que o modelo dependia criticamente da espessura da barreira que separava os carris e da energia de cada ave, que por sua vez dependia muito do seu metabolismo, da temperatura e do potencial elétrico da atmosfera. Foi considerado um pouco lunático na altura.
«Mas se fosse assim perdiam-se.»
«É talvez por isso que se veem aves perdidas do bando, que não sabem muito bem o que fazer. Mas Marcelo dizia que eram sempre as aves mais pequeninas e frenéticas. Dizia que as outras não eram tão afetadas por bolsas de ar quente, picos de radiofrequências ou pequenas tempestades eletromagnéticas».
«Vem-me tudo à cabeça, agora que falo contigo. Lembro-me de ele dizer, com orgulho, que conseguiu uma bolsa do Instituto de Meteorologia da Universidade Técnica de Munique. A meteorologia ficou muito excitada com a teoria».
«E se fosse um avião, digamos um pequeno avião?»
«Não sei bem, mas agora que falas nisso penso que as aves têm moléculas magnetossensíveis em células dos olhos, ouvidos e bico. Os aviões têm circuitos eletrónicos».
«Os aviões também podem ser desviados para outros carris?»
«A ESA, a NASA e as companhias aeronáuticas ficaram subitamente muito interessadas nas teorias de Marcelo. Parece que não conseguem explicar muito bem por que razão certas naves desaparecem subitamente sem que apareçam mais tarde nalgum sítio».
«É fascinante. E tudo começou com a observação das vesículas nas células».
«Sim, tudo começa por acaso. Depois é preciso medir e acumular dados. Os neurónios precisam de teorias para os ordenar e evitar o caos».
«É a isso que se chama imaginação?»
«Penso que sim. A imaginação é uma consequência inevitável da acumulação de dados mentais. É como se fosse necessário arrumá-los com descrições, etiquetas e imagens. É como se fosse a válvula de uma panela-de-pressão. As pessoas paradas são pouco imaginativas».
«Uma criança privada de dados nunca será criativa, é isso? O Marcelo foi contratado pela ESA?»
«Isso já não sei. Há uns meses perguntei a uma amiga comum o que era feito do Marcelo».
«Deve ter a tua idade».
«Mais ou menos. Disse-me uma coisa um pouco estranha».
«Aconteceu-lhe alguma coisa?»
«Disse-me que um amigo lhe confidenciou que ele teve que recorrer a um plano de proteção. Sabes, desses que são utilizados por testemunhas de casos perigosos».
«Teve que fugir?»
«Não, tenho a impressão de que foi desviado para um local secreto. Provavelmente essa é a razão por que não o tenho conseguido encontrar».
«É pena, gostava de falar com ele».
«Creio que ele te diria para começares a trabalhar numa ETAR, num centro de observação de aves ou mesmo numa pedreira. Sabes, para acumular dados».
«Fiquei sem saber quem é que vem primeiro, se Heisenberg ou Habermas».
«Não te preocupes, logo descobres. Agora vem daí comigo. Prepara o teu lanche».
«Mas posso não caber».
«Podes vir, a tua mãe acabou de me dizer que uma família desistiu».
Pode contactar o autor do texto, através do e-mail: pratas-young@theyeofhorus.net.