Os clamores dos reprimidos no Irão interpelam o Mundo
As ruas do Irão têm sido palco, desde há largas semanas, de multidões de manifestantes a clamar por liberdade. Aos apelos dos Iranianos, o governo teocrático vem respondendo com desmesurada e sangrenta violência, a ponto de condenar alguns manifestantes à pena morte, sendo que, algumas vezes, a polícia mata sem haver condenação judicial.
Como os demais regimes autoritários, o do Irão não suporta a palavra “liberdade” e, claro, as manifestações de rua. Desde o regime de Vladimir Putin, na Rússia, ao regime de Xi Jinping, na China, ou ao dos talibãs, no Afeganistão, entre muitos outros, ante qualquer manifestação, a polícia sai à rua e reprime brutalmente os manifestantes. A repressão violenta é apanágio de todos os regimes ditatoriais, mesmo dos que dispõem de estruturas formais de democracia. Porém, os regimes autocráticos em que o poder político é enformado pela mística fundamentalista religiosa (por exemplo, os casos da Rússia, do Afeganistão e do Irão) sentem a legitimidade de quem está no exercício do poder com a missão de regenerar o país e, tendencialmente, de expurgar, do Mundo, todo o erro, que não a pobreza, a guerra, a fome ou as migrações intempestivas.
É o que está a suceder no Irão, sob o regime teocrático dos ayatollahs, seguidores do islão xiita. O regime impõe às mulheres iranianas o encarceramento no lar, o cuidado dos filhos, a inibição do acesso à educação formal, sobretudo à de nível médio e à de superior, e o traje como mandam as normas, ou seja, totalmente tapadas; a proibição de qualquer tipo de homossexualidade, pelo que os/as que se reclamem deste modo de orientação sexual não podem atrever-se a ir para a praça pública manifestar-se; e a redução das minorias à vivência da sua vida marginalizada.
A luta das mulheres, espoletada pelo espancamento até à morte de Masha Amini, por violação do código de vestuário, tem comovido o mundo e está a abalar o poderoso regime. Amini foi considerada, pela revista Time, a heroína do ano de 2022, pela grande violência que sofreu, logrando pôr em causa o poder implantado no país com a revolução islâmica de 1979.
Os protestos no Irão, bem como a repressão que se abate sobre os manifestantes por ideias ou por ações, têm provocado, no mundo livre, homenagens públicas à bravura das mulheres iranianas, bem como a repulsa e a condenação da opressão feminina. Com efeito, a luta das mulheres do Irão deve também ser motivadora do apoio que todos devemos dar a esta causa universal.
A este respeito, é de recordar que, em 2022, pelo menos 28 mulheres foram mortas, em Portugal, em contexto de relações de intimidade. E Portugal é um país democrático e constitucionalmente aconfessional. Porém, como muitos outros países democráticos, continua a registar uma elevada taxa de casos de violência de género.
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Para entender o Irão, talvez seja oportuno recuar no tempo e ver o que reza a sua História.
O Irão, situado no Planalto Iraniano (Oriente Médio), era chamado “Pérsia” do século VI a.C. até 1935, apesar de o nome “Irão” ser utilizado pelos Persas desde o século VII. Na Antiguidade, o grande Império Persa ia desde a atual Turquia até o Punjab, incluindo o Egito (localizado entre o nordeste da África e o sudoeste da Ásia).
Após muitos séculos sob domínio de outros povos ou em guerra para conquistar o antigo império, a Pérsia foi anexada pelo Império Árabe, do século VII até ao século XI, o islamismo tornou-se a religião local, mas os Iranianos adotaram a versão xiita, em reação nacionalista ao Império Árabe, que era sunita, e a língua persa manteve-se contra a língua árabe, a dos dominadores. E a defesa da língua persa e do xiismo são uma forma de resistência em séculos de subjugação.
Nos séculos XVIII e XIX, os Iranianos enfrentaram duas potências imperialistas: a Rússia, a estender o domínio à Ásia Central, e o Império Britânico, a querer controlar a exploração do petróleo asiático. Em 1907, Inglaterra e Rússia, por acordo firmado sem consulta ao xá (monarca) da Pérsia, dividiram o território em zonas de influência: o Norte, sob controlo russo; e o Sul, sob controlo britânico. Nessa conjuntura, a Pérsia foi arrastada para a I Guerra Mundial (1914-1918), que pôs a Entente (Império Britânico, França e Império Russo) contra a Aliança (Império Alemão, Império Austro-Húngaro e Império Turco-Otomano). A Pérsia, vizinha do Império Turco, possuía o petróleo, que os dois lados queriam. Assim, no final do conflito, a situação agravou-se para os Persas: os Russos estavam em processo revolucionário (Revolução Russa) e os Britânicos, para impedir o avanço dos ideais bolcheviques, enviaram tropas para o Norte da Pérsia. E o Império Britânico tinha o controlo total sobre os Iranianos e, principalmente, sobre os seus poços de petróleo.
O militar persa Reza Khan, aproveitando a fraqueza da dinastia Qajar no pós-guerra, tomou o trono, tornando-se o primeiro xá da dinastia Pahlavi na Pérsia (1925), mudando o nome do país para Irão, em 1935. Reza Xá Pahlavi (novo nome de Reza Khan) impulsionou a modernização do Irão na década de 1930, seguindo o modelo ocidental. Na II Guerra Mundial (1939-1945), Reza Xá teve o país invadido por tropas britânicas e soviéticas, devido à simpatia pelo regime nazi, pelo que abdicou do trono em nome do filho, Mohammad Reza Pahlavi (1941), que manteve a aproximação e a submissão ao Ocidente, enquanto cresciam os movimentos nacionalistas para a independência económica do Irão.
Em 1949, surgiu a Frente Nacional do Irão, liderada por Mohammed Mossadegh, preso durante o governo de Reza Xá, por ser crítico da política pró-ocidente dos Pahlavi. E, contando com a simpatia popular, fez-se primeiro-ministro em 1951.
Mossadegh nacionalizou o setor petroleiro em 1953 e, por isso, a Grã-Bretanha iniciou um bloqueio económico ao Irão. Na Guerra Fria, a União Soviética, para ampliar a sua influência sobre a região, passou a comprar o petróleo iraniano, levando os Estados Unidos da América (EUA) a apoiar o bloqueio britânico. Reza Pahlavi deixou o Irão, mas por pouco tempo. Pelo golpe de Estado conhecido por Operação TP-Ajax, arquitetado pelo serviço secreto britânico e pela CIA, Mossadegh foi deposto, o xá voltou a governar e o governo tornou-se ditatorial.
As reformas introduzidas, na chamada Revolução Branca, visavam a modernização do Irão (ampliando as relações do Irão com os EUA) e a separação entre o Estado e o clero xiita. Qualquer oposição às medidas tomadas pelo xá era reprimida pela Savak, a polícia política iraniana. A censura proibia as organizações trabalhistas, os nacionalismos e os ideais religiosos. O governo iraniano mostrava ao Mundo um Irão moderno, símbolo de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o Ocidente acreditava que o Irão era a possibilidade de evolução no Oriente Médio, região pobre e retrógrada. O facto de o Irão possuir uma das maiores reservas de petróleo do mundo justificava o apoio militar e económico ao xá, sobretudo dos EUA.
Não obstante, a repressão descontentava todos os setores da sociedade, que viviam em condição de pobreza, apesar da pompa e da riqueza ostentada pela monarquia. E a rápida ocidentalização do país amedrontava o povo, que lutava, havia muito tempo, para manter a sua cultura persa milenar.
Em meados da década de 1970, na cidade de Qom, principal centro religioso do Irão, o clero xiita iniciou o movimento de democratização do país, com apoio da elite comercial local, que se ressentia do controlo económico estrangeiro. Rapidamente, o movimento se expandiu para as regiões industrializadas, suscitando a adesão dos operários. Daí em diante, foram os trabalhadores das fábricas (a maior parte estrangeiras) que lideraram a luta democrática e anti-imperialista. A grande greve de outubro de 1978 acirrou o embate entre a monarquia e o movimento popular. Nos EUA, o presidente Jimmy Carter tinha iniciado a “política dos direitos humanos”, recusando-se a auxiliar governos ditatoriais no Mundo, o que esfriou as relações com o Irão, possibilitando a ampliação do questionamento da autoridade do xá entre os Iranianos.
Entre o final de 1978 e o início de 1979, manifestações contra Reza Pahlavi tomaram várias cidades do Irão. A população aclamava o clérigo xiita Ruhollah Khomeini como um imã, ou seja, como o líder político e religioso do Irão. Ruhollah Khomeini, que estava fora desde 1964, devido à oposição ao governo dos Pahlavi, tinha recebido, na década de 50, o título de ayatollah, ou seja, o “mais alto conhecedor da lei islâmica”, o mais importante cargo da hierarquia do clero xiita. A fação xiita do islamismo crê que o Estado deve ser controlado por um líder religioso, daí o ayatollah Khomeini ser visto como o representante dos iranianos contra Reza Pahlavi.
As manifestações populares cresciam vertiginosamente. Como o exército e a Savak não logravam conter a população, a 16 de janeiro de 1979, Reza Pahlavi deixou o país. Os EUA ainda tentaram manter o primeiro-ministro, Chapour Bakhtiar, mas, a 1 de fevereiro, o ayatollah Khomeini retornou ao Irão, assumindo a liderança da revolução. Entre 10 e 12 de fevereiro, uma insurreição popular armada tomou conta das principais cidades do Irão. E, quando o exército iraniano passou a defender a revolução, Bakhtiar também teve que deixar o país.
Nesse processo, a Guarda da Revolução Islâmica (PASDARAM), milícia ligada ao clero xiita, tomou o controlo da insurreição, iniciando, quase de imediato, a repressão aos líderes não religiosos do movimento (trabalhadores, intelectuais, políticos), instaurando no Irão um Estado teocrático, sob o nome de República Islâmica do Irão. O governo cortou as relações diplomáticas e comerciais com vários países, acusados de explorar a economia iraniana. Em novembro de 1979, foi invadida a embaixada norte-americana de Teerão (capital do Irão), como represália pelo facto de os EUA terem acolhido Reza Pahlavi. E as relações entre o Irão e os EUA tornaram-se mais difíceis quando estes apoiaram a invasão do Irão pelo Iraque (setembro de 1980). A Guerra Irão-Iraque durou oito anos, sem que nenhum dos lados a tenha vencido efetivamente, e uniu os Iranianos em apoio a Khomeini, fortalecendo ainda mais o poder teocrático no Irão.
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O que se passa no Irão resulta do facto de a região ser governada por califados muçulmanos desde 650, quando os exércitos árabes islâmicos conquistaram o território que ia da Península Ibérica ao rio Indo, na Índia. Foi a dinastia Omíada que transformou a vida na Pérsia e noutros estados cristãos, unindo-os na mesma língua e religião. A língua árabe, a cultura e a ciência, as artes, os costumes e a religião dos povos dominados, foram implantados nas mesquitas, que se tornaram o centro mais importante de cada cidade ou aldeia – poderosa civilização espalhada pela Ásia e pela Europa, que ajudaria a impulsionar o movimento cultural de Renascimento na Europa.
O importante para o que é hoje o Irão, antiga Pérsia, deu-se em 1500, quando se implantou, em alguns reinos muçulmanos, a denominação xiita do islamismo.
É de sublinhar que, de 1921 a 1925, no pós-guerra, a dinastia que tomou conta do país dotou-o de modernas infraestruturas e indústrias, como o caminho de ferro. O poder centralizou-se no Xá Reza Pahlevi, que, em 1935, solicitou o nome Irão para a Pérsia, o que foi aceite pela comunidade internacional. Após a II Guerra Mundial, implantou-se a ditadura do Xá, tendo o clero xiita, na década de 1970, ganhado força política. Em 1963, o Irão modernizou-se novamente, chegando a dar o voto às mulheres. Porém, em abril de 1979, a autoridade suprema foi ocupada por um chefe religioso. E, desde 1981, o governo tornou-se teocrático, contra as forças civis, que reprime.
É neste clima de repressão que vive a sociedade civil, sobretudo as mulheres, as mais perseguidas na sua dignidade, em nome de um fundamentalismo religioso, o que deve concitar a luta pela liberdade e pela igualdade, materializada em ideias e ações solidárias. Vemos, ouvimos e lemos! (*)
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Nota da Redacção:
(*) “Vemos, ouvimos e lemos” é um verso que se repete na “Cantata da Paz”, com letra de Sophia de Mello Breyner Andresen e música de Francisco Fanhais.
30/01/2023