Os equívocos da educação à distância
A pandemia trouxe a educação à distância para as nossas casas. De um dia para outro, toda a gente passou a falar de educação à distância. A expressão, que já era controversa no contexto profissional onde era usada, explodiu subitamente, num fogo de artifício de interpretações coloridas e ilusórias que lhe destruíram de vez o significado. Quando hoje se discute a educação à distância a expressão já não quer dizer nada.
A ironia desta efervescência é que a dicotomia entre mundo presencial e mundo online é hoje um falso problema. Os dois mundos já não têm fronteiras. Raras são hoje as atividades individuais e sociais que prescindem das tecnologias digitais, do uso dos telemóveis, da comunicação na Net ou do acesso a repositórios na “nuvem”, onde, de resto, já se encontra armazenada a maior parte dos nossos dados.
Curiosamente, vários comentadores dos media, justamente frustrados com as restrições que a pandemia lhes impôs, passaram a reclamar, não contra a pandemia ou as restrições, mas contra a linha-de-vida que os manteve ligados ao mundo nesse período: o online. Paradoxalmente, foi online que as reclamações contra o online foram mais lidas e foi aí que foram partilhadas e aclamadas. Sem online, teriam sido gotas de água no oceano.
Sentindo que este tipo de contradição, entre o ser-e-não-ser, estar-e-não-estar, dificulta a construção serena do futuro, que nos explodirá nas mãos sob formas indesejáveis se não cuidarmos de o criar com inteligência, a Comissão Europeia lançou, há meia dúzia de anos, o projeto Onlife Manifesto, onde defendeu que assumamos o fim da distinção entre mundos online e offline e reconheçamos que vivemos uma nova ordem social, económica, política e ética no seio da qual esse tipo de distinção não tem sentido. O projeto, liderado por Luciano Floridi, professor de filosofia e ética da informação da Universidade de Oxford, deu origem a um interessante volume de reflexões publicado pela editora Springer em 2015.
Sendo este o mundo alargado que aguarda os jovens das nossas escolas, seria absurdo dividi-lo entre presencial e online. O desafio da educação não é dividir, mas unir, superando as desigualdades sociais que esse alargamento está a gerar sob os nossos olhos. Poderá a escola superar tais desigualdades sem se prolongar harmoniosamente para a dimensão online? Acreditará a escola que lhe bastará “explicar”, por palavras ou imagens, sem integração cultural plena, o que é viver e vingar num mundo misto de presença e distância? Irá a escola fazer como o professor de música que acreditava que se “explicasse” a uma criança onde calcar as cordas teria criado uma violinista de talento?
Se quisermos construir uma educação que tire partido da dimensão de distância, teremos de compreender, em vez de confundir, a distância de que estamos a falar. Faz sentido, nesse contexto, analisar o que se passou nestes últimos tempos de “ensino remoto de emergência” e compará-lo com as formas de aprendizagem regulares e consolidadas onde o fator distância está presente.
O ensino remoto de emergência
O ensino remoto de emergência não poderia correr bem, nem em Portugal nem em parte nenhuma do mundo, por razões biológicas básicas: a atenção, a memória e a disciplina intelectual de uma criança têm limites que ninguém pode contornar. Só por distração se poderia acreditar que o ensino remoto de emergência iria “cumprir os programas”, sobretudo com as crianças mais novas. Acresce que a autonomia para a aprendizagem da maioria das crianças portuguesas, que não é incentivada nem pelas escolas nem pelas famílias, as colocava em desvantagem para uma modalidade de aprendizagem que assenta, acima de tudo, na autonomia.
Além disso, e embora já houvesse em Portugal, graças à livre iniciativa de alguns professores, escolas com experiência nas práticas e tecnologias da aprendizagem à distância, a maior parte das escolas e dos professores não possuía nem experiência nem tecnologias para as pôr em prática. Nessas circunstâncias, a função primordial do ensino remoto de emergência não poderia ser fazer cumprir programas, sobretudo pelos mais jovens, mas manter as crianças funcionais para a aprendizagem e intelectualmente ativas durante os meses em que se sabia que não iriam à escola — um objetivo nobre, meritório e imensamente trabalhoso.
Nestas condições, se não considerarmos, por momentos, a resposta pronta das escolas e dos professores mais experientes, a transição para o ensino remoto foi uma caótica reprodução por videoconferência do modelo presencial, com os defeitos que lhe são próprios, agora acentuados pelo recurso improvisado às tecnologias. Quanto aos alunos mais desfavorecidos, foi claro que ficaram ainda pior. Alguns deles, três meses volvidos sobre o início do processo, ainda nem tinham aparecido.
Nos balanços de fim de ano a que agora assistimos, proliferaram as opiniões dos críticos habituais, que, apesar das suas eternas certezas, foram incapazes, na altura própria, de contribuir com as suas sugestões para a resolução do problema. Foi evidente que o Ministério da Educação não esteve à altura do desafio. Também foi notório o eclipse dos sindicatos no período de emergência. Aliás, foi penoso notar no discurso do ministério e dos sindicatos a ilusão antiquíssima de que educar é transferir “conteúdos”, agitada desajeitadamente perante uma pandemia que impunha um ensaio geral para a educação do futuro.
Estranhamente, nenhum dos críticos parece ter notado a faceta invulgar e magnífica deste ensino remoto de emergência, que talvez tenha colocado Portugal na linha da frente internacional da capacidade de resposta ao fecho das escolas: a ação dos professores. Em vez de baixarem os braços, como seria de esperar perante a debilidade da ação ministerial, os professores começaram de imediato a discutir soluções nas redes sociais. Em 14 de Março, dia seguinte ao fecho das escolas, criaram no Facebook, por sua livre iniciativa, o grupo “E-learning – Apoio”, dedicado à ajuda entre professores. Três meses depois, esse mesmo grupo registava quase 30 mil membros e uma atividade intensiva e ininterrupta de entreajuda entre professores.
Quantos países poderão gabar-se de que um terço dos seus professores, totalizando dezenas de milhares, se auto-organizaram espontaneamente num grupo de ajuda recíproca que se transformou num exercício gigantesco de formação mútua em exercício? Quanto valerá essa formação, face a uma formação em sala? Que implicações terá tido para a construção de uma cultura coletiva de resiliência perante as dificuldades da docência? Valerá a pena recordar, por contraste, que em abril passado Andreas Schleicher, diretor de educação da OCDE, referindo-se às tentativas do governo espanhol para lançar o ensino remoto, lamentava, numa entrevista ao El País, a falta de colaboração mútua e partilha de soluções por parte dos professores espanhóis.
Em 2008, dois professores canadianos da universidade de Athabasca, George Siemens e Stephen Downes, lançaram um curso à distância que se tornou mundialmente célebre porque mobilizou 2200 pessoas para um projeto coletivo de aprendizagem sem conteúdos. Neste curso, que os seus criadores viriam a teorizar em torno do conceito de aprendizagem conectivista, aprendia-se, não organizando conteúdos, mas debatendo e resolvendo as dificuldades que cada um colocava ao coletivo. Valeria a pena estudar agora, comparativamente, a experiência deste grupo português de 30 mil professores, com quase quinze vezes mais participantes.
A aprendizagem combinada
A aprendizagem combinada (blended learning), ou aprendizagem mista, procura conciliar o melhor da aprendizagem presencial com o melhor da aprendizagem à distância. Oferece, por isso, um contexto favorável à compreensão dos paradigmas do prolongamento da educação presencial para a distância. É interessante observar que, sem que professores e alunos se tenham apercebido, as universidades portuguesas já recorrem, em larga medida, a uma forma degradada do modelo combinado.
Quando, já há mais de duas décadas, as universidades portuguesas começaram a instalar plataformas de gestão de conteúdos e a colocar online os materiais dos cursos, muitos dos alunos, cansados de sessões monótonas e com qualidade pedagógica duvidosa, em salas desconfortáveis e a abarrotar, passaram a faltar às aulas teóricas, preferindo trabalhar sobre os materiais online e restringir a sua presença às aulas práticas e laboratoriais onde a sua participação ativa era indispensável. O problema é que os professores continuaram a conceber os cursos para uso presencial, com deficiências que nunca seriam aceitáveis num modelo combinado. O que é estranho é que, sendo o fenómeno reconhecido há mais de uma década, não seja adoptado o novo modelo, eliminando o hibridismo vigente.
No modelo combinado, todos os materiais pedagógicos (textos, slides, vídeos, podcasts, simulações) são colocados online e as sessões presenciais, embora usadas por vezes para apresentações magistrais, são normalmente reservadas para trabalhos laboratoriais e de grupo, que procuram tirar partido da riqueza social da aprendizagem presencial. A avaliação dos alunos também tende a ser conduzida presencialmente, por um lado para evitar as dificuldades da identificação da autoria, por outro para capitalizar nos benefícios pedagógicos do debate com professores e colegas. Apesar deste caráter predominantemente presencial, a avaliação pode ser muito enriquecida com a dimensão online, nomeadamente por permitir a avaliação anónima pelos pares em trabalhos escritos, projetos e portfólios.
Este modelo presta-se a muitas variantes. No exemplo anterior, a componente de presença é dominante, mas pode acontecer o contrário. Em muitos cursos de formação e mestrado, a maior parte do trabalho decorre online: no primeiro dia as atividades são presenciais, de apresentação, socialização e construção do espírito do curso; o último dia é ocupado com uma conferência de encerramento na qual os formandos apresentam e defendem presencialmente os seus trabalhos. Entre o primeiro e o último dia, os trabalhos decorrem em períodos à distância, relativamente extensos, intercalados com sessões presenciais de um dia ou de algumas horas destinadas a consolidar a aprendizagem e reforçar a componente social.
A educação à distância
Partindo do modelo de aprendizagem combinada, é agora possível caracterizar a educação à distância como sendo idêntica, mas sem a componente presencial. A grande diferença está em que a educação à distância reinventou os seus modelos pedagógicos, libertando-os dos entraves da presença e tirando pleno partido da ligação em rede, da colaboração e da aprendizagem em comunidade. Esta reinvenção, que se renova em permanência, assenta num corpo dinâmico de teoria e prática em domínios tão diversos como as ciências da educação, sociologia, filosofia, comunicação, multimédia, estatística, computação, ciências dos dados e inteligência artificial e exige infra-estruturas e equipas cuja elevada complexidade e sofisticação se aproximam das das indústrias cinematográfica e dos videojogos.
Deste modo, só por desconhecimento se pode recear, como parece acontecer com a nossa comunicação social, que as universidades e escolas venham a transformar-se em instituições de educação à distância. Primeiro, porque a educação exclusivamente à distância só resulta para adultos ou quase adultos com elevados graus de autonomia e disciplina. Segundo, porque os graus de conhecimentos, sofisticação tecnológica e tempo necessários à concepção de soluções autênticas de educação à distância estão largamente ausentes das nossas universidades e escolas. As universidades e escolas poderão e deverão desenvolver iniciativas de educação à distância que as prolonguem para o espaço online, mas seria absurdo transformá-las em instituições de educação à distância. Tanto mais absurdo quanto mais real se torna nos nossos tempos a necessidade de bons professores: como alertava John Neisbitt, “high tech calls for high touch” (“quanto mais sofisticada é a tecnologia, mais necessário é o calor humano”).
Dito isto, importa não esquecer que vivemos num mundo de presença e de distância. Quer queiramos, quer não, a distância faz parte das nossas vidas. Por isso, faz parte da educação. A aprendizagem à distância, com desafios e tempos moderados, está ao alcance de qualquer ser humano, mesmo muito jovem. Grande parte da aprendizagem dos nossos dias e, sobretudo, da aprendizagem do futuro só poderá ser encontrada à distância. O “espaço das aprendizagens”, nestes nossos tempos, será cada vez mais um espaço à distância, para quem as recebe e para quem as oferece. Uma universidade e uma escola que não sejam capazes de se prolongar para a distância não pertencerão, certamente, aos nossos tempos.