Os heróis e os perpetradores? A propósito de uma biografia política

 Os heróis e os perpetradores? A propósito de uma biografia política

Pedro Theotónio Pereira (ao centro). (DR)

Sob a chancela das Publicações Dom Quixote, Fernando Martins publicou, em 2021, uma substancial biografia política de Pedro Theotónio Pereira, uma das figuras mais importantes da elite do Estado Novo português. Fruto da evolução ocorrida na Ditadura Militar (implantada pelo Golpe de Estado de 28 de Maio de 1926), tratou-se do regime ditatorial de direita – autoritário e/ou totalitário, mais ou menos de tipo fascista – que se estruturou e consolidou em Portugal entre o início da década de trinta e o Golpe de Estado/a Revolução de 25 de Abril de 1974. Vigorou, pois, durante a “Época do Fascismo” e ao longo de grande parte da “Guerra Fria”.

A relevância historiográfica e cívica da biografia Pedro Theotónio Pereira. O outro delfim de Salazar começa por decorrer do facto de (tal como Marcello Caetano e mais do que, entre outros, Armindo Monteiro, Duarte Pacheco, João Pinto da Costa Leite ou Fernando dos Santos Costa) Pedro Theotónio Pereira ter concretizado um percurso político autónomo, mas que se manteve próximo do Chefe do Estado Novo, nas décadas de 1920 a 1960. Ideologicamente estruturado e politicamente activo já durante a Primeira República, Pedro Theotónio Pereira foi, assim, com Marcello Caetano, um mais importantes colaboradores e potenciais rivais (ou, pelo menos, sucessores) de António de Oliveira Salazar.

Uma outra vertente do percurso biográfico considerado que contribui para ampliar o significado desta obra de Fernando Martins resulta do facto de Pedro Theotónio Pereira ter sido, em simultâneo, um dos dirigentes do Estado Novo mais próximos dos sectores empresariais e, pelo menos até ao final da Guerra Civil de Espanha, uma das figuras mais radicais da liderança do regime. Evocam-se, a este propósito, as ligações ao Integralismo Lusitano e ao Movimento Nacional-Sindicalista, a defesa da corporativização integral e da total subordinação das organizações sociolaborais – incluindo as associações empresariais – à liderança governamental, a concretização de uma postura política vanguardista e mobilizadora (nos âmbitos das políticas sociais e do funcionamento da Organização Corporativa, da actuação da União Nacional e da Legião Portuguesa, da acção diplomática e da propaganda).

O modo como Fernando Martins estruturou esta biografia acrescenta, ainda, um terceiro argumento em favor da importância científica e cívica da presente obra. A caracterização, contextualização, comparação e análise do percurso pessoal e político de Pedro Theotónio Pereira permite conhecer melhor, nas escalas individual, organizacional, do regime e de Portugal, fenómenos sociais globais como a praxis de um segmento das elites socioeconómicas lusas; a emergência de correntes políticas de extrema-direita e a implantação do Estado Novo; a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial/o Holocausto; as relações diplomáticas com os EUA, o Reino Unido e o Brasil; a criação e o percurso da Fundação Calouste Gulbenkian; a evolução da ditadura portuguesa até à substituição de António de Oliveira Salazar por Marcello Caetano.

Estamos […]  face a uma biografia de uma individualidade cujo percurso se tornou marcante na evolução da realidade portuguesa a partir das décadas de 1920 e 1930, ou seja, durante a anterior conjuntura de crise global vivida pela humanidade

Mesmo se o essencial do processo de elaboração do presente livro de Fernando Martins ocorreu num período anterior, o momento da respectiva conclusão e publicação é o actual, o de uma conjuntura de crise sistémica de âmbito mundial (económico-social e pandémica, de radicalização cultural-ideológica e de afirmação do paradigma pós-moderno, das democracias e do multilateralismo, ambiental e de recursos naturais, da correlação entre novas tecnologias e empregabilidade). Estamos, assim, face a uma biografia de uma individualidade cujo percurso se tornou marcante na evolução da realidade portuguesa a partir das décadas de 1920 e 1930, ou seja, durante a anterior conjuntura de crise global vivida pela humanidade – e que culminou na implantação/na longa duração da ditadura do Estado Novo, na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto.

Vivendo ele próprio, tal como os seus leitores imediatos, uma situação de reconfiguração do sistema de relações internacionais e de relativo bloqueio do funcionamento das organizações internacionais, de precarização das democracias (mesmo nos EUA) e de afirmação de ditaduras – com destaque para países como a China, a Rússia, a Turquia, o Irão, a Arábia Saudita –, de aumento da influência dos populismos (redutores e maniqueístas), Fernando Martins opta por explicitar uma caracterização complexificante e mais analítica do que valorativa – identificando permanências e alterações, coerências e contradições, presenças e ausências – tanto das concepções, dos interesses e da actuação de Pedro Theotónio Pereira, como de outros intervenientes (individuais, organizacionais e institucionais).

Assistindo-se, no sub-universo das humanidades, das ciências sociais e das tecnologias também delas derivadas, ao reforço da presença dos pressupostos do Paradigma Pós-Moderno, Fernando Martins terá optado por recorrer, em Pedro Theotónio Pereira. O outro delfim de Salazar, aos fundamentos do Paradigma Neo-Moderno. Isto é, no esforço de reconstituição e análise do percurso biográfico de uma individualidade – membro de uma família da burguesia empresarial e militante político de extrema-direita, dirigente de um regime ditatorial e diplomata –, partindo do seu senso comum e das suas escolhas ideológicas, tendo em conta quer o tempo presente quer produção historiográfica multifacetada, utilizou mais categorias epistemológicas, conceitos teóricos e metodologias objectivantes do que adjectivação judicativa e argumentação instrumentalizada a “conflitos de memória” essencial ou exclusivamente ideológicos.

Também o debate – explícito ou implícito, consciente ou subliminar – acerca das virtualidades, para um país como Portugal (com e, depois, sem “territórios não autónomos”; menos ou mais distante do limiar do subdesenvolvimento), da sua maior ou menor participação em processos multilaterais de integração, encontra eco significativo nesta obra de Fernando Martins. Enquanto governante e na qualidade de diplomata, Pedro Theotónio Pereira formou opinião, posicionou-se e interveio, de forma relevante, face a fenómenos como as relações bilaterais do nosso país com o Reino Unido, a Alemanha e a Espanha durante a “Época do Fascismo”; a política externa do Estado Novo ao longo da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria; a opção pela reprodução do regime ditatorial e do estatuto de Metrópole de “Territórios Não-Autónomos” versus a integração na Comunidade Económica Europeia (CEE).

Tratando-se de uma proposta historiográfica de uma biografia política de Pedro Theotónio Pereira (Novembro de 1902 a Fevereiro de 1972), Fernando Martins começa por reconstituir e por analisar, com grande rigor, por um lado, os contextos familiar e socioeconómico/sociocultural daquela figura cimeira do Estado Novo; por outro, a respectiva actividade política e religiosa, durante a Primeira República, no âmbito do Integralismo Lusitano e da “Acção Católica”. Em ambos os vectores, são destacadas, quer as características arquetípicas de Pedro Theotónio Pereira, quer as suas especificidades (a radicalidade de um conservadorismo religioso e político-ideológico, o estabelecimento de contactos entre uma “ala pragmática” do Integralismo Lusitano e a corrente da Democracia Cristã Conservadora, centrada na acção do Centro Académico de Democracia Cristã de Coimbra e liderada por Manuel Gonçalves Cerejeira e António de Oliveira Salazar).

Seguem-se, tanto a intervenção periférica de Pedro Theotónio Pereira, no período do Golpe de Estado que instaurou a Ditadura Militar e nos dois anos iniciais da mesma, como o seu envolvimento crescente no esforço de transformação daquela instável e temporária ditadura autoritária num sólido e permanente regime ditatorial. Mau grado o facto de o debate em causa não ser explicitamente citado, Fernando Martins parte da caracterização do percurso — do pensamento e da acção — daquele que foi um dos mais radicais dirigentes da etapa inicial do salazarismo (1933-1939) para defender que os conceitos teóricos que melhor permitem compreender o Estado Novo português são os de ditadura conservadora/autoritária e não os de ditadura fascista/totalitária.

Quanto aos anos de 1933 a 1937, durante os quais Pedro Theotónio Pereira desempenhou as funções de Sub-Secretário de Estado das Corporações e Previdência Social e de Ministro do Comércio e Indústria, Fernando Martins aventa uma leitura que, no essencial, confirma narrativas objectivantes já defendidas por outros investigadores. Uma significativa novidade resulta, no entanto, da hipótese de que, contando com o apoio, entre outros, do próprio General Óscar Fragoso Carmona, Duarte Pacheco, Ministro das Obras Públicas e Comunicações, de meados de 1932 ao início de 1936 e de 1938 a 1940 (ano da sua morte), seria a figura mais destacada de remanescentes sectores republicanos ainda presentes no(s) Executivo(s) chefiados por António de Oliveira Salazar até 1944.

Entre 1938 e 1963 (ano em que lhe foi diagnosticado um problema de saúde irreversivelmente incapacitante), Pedro Theotónio Pereira acabou, no entanto, quase sempre, por estar excluído de tarefas governativas. Desempenhou funções de representante diplomático do regime salazarista e de Portugal em outros países: Agente Especial junto da Junta de Burgos e, depois, Embaixador em Madrid (1938-1945); Embaixador no Rio de Janeiro (1945-1947), Embaixador em Washington (1947-1950 e 1961-1963), Embaixador em Londres (1953-1958). Excepções a esta regra foram o ter assumido os cargos de Ministro da Presidência (1958-1961, sucedendo a João Pinto da Costa Leite e a Marcello Caetano) e, em menor grau embora, de membro da Administração da Fundação Calouste Gulbenkian (em representação informal do próprio António de Oliveira Salazar), de Procurador à Câmara Corporativa (1950-1953) e de membro vitalício do Conselho de Estado (1955-1972).

O biografado adoptou, por vezes, pelo menos desde 1938, posturas político-diplomáticas mais pragmáticas do que as assumidas por António de Oliveira Salazar

Quanto aos factores explicativos para o modo como o Chefe da ditadura actuou, Fernando Martins limita-se a constatar que, tal como Armindo Monteiro, Pedro Theotónio Pereira foi afastado de Lisboa e elenca, ainda, para a década de 1950, eventuais hipóteses de convites para as funções de Ministro dos Negócios Estrangeiros, de Ministro das Colónias, de Ministro da Economia e de Ministro das Corporações. Demonstra, no entanto, circunstanciadamente, como o biografado adoptou, por vezes, pelo menos desde 1938, posturas político-diplomáticas mais pragmáticas do que as assumidas por António de Oliveira Salazar (durante a Guerra Civil de Espanha e face à Segunda Guerra Mundial, perante a afirmação dos EUA como potência dominante do Bloco Capitalista e durante o processo de criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), face ao Plano Marshall e no debate acerca das potencialidades e dos riscos da modernização acelerada da sociedade portuguesa). Pedro Theotónio Pereira encontrou-se, ainda, frequentemente envolvido em atritos, quer com a estrutura do Ministério dos Negócios Estrangeiros quer com individualidades integrantes de outras correntes político-ideológicas no seio do Estado Novo.

Relativamente a aspectos eventualmente menos bem conseguidos de Pedro Theotónio Pereira – O outro delfim de Salazar, enumero alguma precariedade dos níveis de explicitude epistemológica e teórica, bem como de referenciação das leituras historiográficas outras com as quais Fernando Martins dialoga. Saliento que o autor não se posiciona perante a hipótese de o Estado Novo português ser analisável a partir do conceito – intermédio – de ditadura de tipo fascista e tendencialmente totalitária; que não cita documentação que poderia ajudar a reconstituir e a analisar melhor os bastidores da actuação de Pedro Theotónio Pereira durante o período em que desempenhou as funções de Sub-Secretário de Estado das Corporações e Previdência Social e de Ministro do Comércio e Indústria. Assinalo, finalmente, a abordagem talvez sobretudo valorativa acerca da actuação de Aristides de Sousa Mendes em 1940; a referência algo superficial, a propósito de Nuno Theotónio Pereira, sobre o modo como Pedro Theotónio Pereira encarou o recurso a modalidades diversas de violência política por parte do Estado Novo.

Visando concluir a presente apreciação, diria, assim, que Pedro Theotónio Pereira – O outro delfim de Salazar é o resultado de investigação historiográfica aturada e objectivante sobre o percurso político de uma das principais figuras dos regimes ditatoriais que vigoram em Portugal entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974. Servido por uma estratégia discursiva operatória quer para especialistas quer para um público mais amplo, o livro de Fernando Martins caracteriza e analisa, ainda, em simultâneo, a evolução do Estado Novo e do respectivo contexto internacional, as interacções não lineares de Pedro Theotónio Pereira com António de Oliveira Salazar e com Marcello Caetano.

Talvez uma outra virtualidade fundamental desta obra resulte, no entanto, de a mesma abordar problemáticas fracturantes – regimes ditatoriais autoritários e/ou totalitários de direita – numa conjuntura de crise das democracias e das modalidades multilaterais de governação do sistema de relações internacionais; de o fazer com o propósito de contribuir para a compreensão de fenómenos sociais globais (por definição, complexos) e não de argumentar, de modo  simplista e valorativo, acerca de quais foram no passado e de quais são no presente e no futuro “as boas e as más escolhas”. O facto de esse esforço de racionalização de matriz científica, concretizado a partir de concepções ideológicas eventualmente de centro/direita ou de direita, ser reconhecido por um leitor eventualmente de centro/esquerda ou de esquerda só reforçará a relevância historiográfica e cívica da leitura proposta por Fernando Martins.

20/11/2021

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João Paulo Avelãs Nunes

Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra / Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes e Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEISUC).

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