Os jornais também se abatem

 Os jornais também se abatem

A útima primeira página impressa do secular jornal austríaco. (Direitos reservados)

O Wiener Zeitung era o jornal impresso mais antigo do Mundo. Chegou às bancas pela última vez no recente dia 30 de Junho. A publicação austríaca, que se manterá em formato digital, titulava na sua última primeira página: “116.840 dias, 3.839 meses, 320 anos, 12 presidentes, 10 czares, 2 repúblicas, 1 jornal.”

Publicado, pela primeira vez, no dia 8 de Agosto de 1703, ainda como Wienerisches Darium (“Diário de Viena”, em Alemão), o Wiener Zeitung teve como berço a Monarquia de Habsburgo1. Em 1857, passou a pertencer ao Estado. Apesar da sua ligação umbilical a sucessivos executivos governamentais, “o diário era editorialmente independente”. A sua última edição, assinalou que estes “são tempos tempestuosos para o jornalismo de qualidade”, em que o “conteúdo sério disputa a atenção com as ‘fake news’, os vídeos de gatos e as teorias da conspiração”. Com a sua passagem a formato digital, a sua Redacção foi reduzida de 55 para 20 jornalistas.

Última edição do jornal mais antigo do Mundo. (pt.euronews.com)

Para a queda do velho jornal, o britânico The Guardian aponta duas razões: o baixo número de vendas em banca – apenas 20 mil exemplares durante a semana – e uma alteração na lei, aprovada em Abril pelo governo austríaco, que “terminou com a exigência legal de as empresas pagarem para difundir anúncios públicos na edição impressa do jornal, que também acumulava as funções de Diário da República do país”. Como resultado, o diário sofreu uma queda acentuada na sua receita, “com uma perda estimada em 18 milhões de euros”, de acordo com a revista alemã Der Spiegel.

(Direitos reservados)

Entre nós, os jornais impressos também estão cada vez mais ameaçados de morte. Confirmam-no os números da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), que foram revelados em Maio deste ano. O Expresso e o Correio da Manhã (CM) são as únicas excepções. O Expresso vendeu, em média, 43.057 exemplares e o CM 41.810. Mas ambos tiveram quebras significativas: o semanário 17,08% e o diário 10,22%.

O CM lidera entre os jornais diários e o Jornal de Notícias (JN) mantém o segundo lugar. Mas fica aquém dos 20 mil exemplares, pois registou uma quebra de 15,13%. Entre Janeiro e Março deste ano, o JN vendeu 19.909 jornais em banca. Por seu turno, o Público, com uma média de 10.381 exemplares vendidos por edição, recuou 9,28% face aos 11.443 que vendia, em média, no mesmo período em 2022. Uma coisa é certa: apesar de manter a liderança, o “tablóide” da Cofina está muito longe dos mais de 100 mil exemplares diários vendidos nos finais dos anos 90 do século passado. O mesmo acontecendo com o JN que, no mesmo período, vendia em banca 120 mil exemplares diários. O Diário de Notícias com 1.290 exemplares vendidos é, hoje, o jornal com o menor número de leitores.

(Créditos de imagem: Mohamed Hassan – Pixabay)

Os diários vivem dias de incerteza, pois! Estão cada vez mais nos “cuidados intensivos”. Por culpa do cada vez maior número daqueles que preferem as redes sociais e as “fake news”. A perda de leitores e a quebra significativa das receitas publicitárias, que não poupou os pequenos e coloridos anúncios de sexo, também contribuem para a sua má saúde financeira. A que se juntam erros próprios. Como aquele de deixar de praticar um jornalismo de proximidade, que resultou do encerramento das delegações espalhadas pelo país.

O JN e o DN são disso claro exemplo. A privatização dos dois históricos jornais2, ocorrida no início dos anos 90, tranformou-os em produtos ao serviço de patrões escolhidos e em veículos de propaganda do “centrão” político. Para lograrem tal objectivo, os novos donos livraram-se dos jornalistas séniores, guindaram às direcções editoriais gente obediente e contrataram estagiários mal pagos – logo, aprisionados por um invisível preservativo económico, que promove a autocensura.

Agora, as páginas dos jornais estão recheadas de “sábios” ao serviço do pensamento único. A prosa de tais “sabichões” ocupa o espaço que devia espelhar o verdadeiro estado da nação. Por isso, são cada vez menos as notícias que contam a história das regiões fora dos grandes centros urbanos, as reivindicações das suas populações ou a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida. Não tenhamos ilusões: a imprensa é cada vez mais “cínica, mercenária, demagógica e corrupta” e forma um “público tão vil como ela mesma”, como já denunciava, no seu tempo, Joseph Pulitzer3.

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Notas:

1 – A Monarquia de Habsburgo incluía os territórios governados pelo ramo austríaco da Casa de Habsburgo e, depois, pela Casa sucessora de Habsburgo-Lorena, entre 1745 e 1867/1918. A capital era Viena. A monarquia, de 1804 a 1867, geralmente, é denominada Império Austríaco e, de 1867 a 1918, Império Austro-Húngaro. A monarquia desenvolveu-se das Terras Hereditárias de Habsburgo (a maioria delas localizadas nos territórios das actuais Áustria e Eslovénia, que os Habsburgo possuíam desde 1278.

Imperador Francisco José I (de traje militar) e a sua família.
(Créditos fotográficos: picture-alliance/Austrian Archives/IMAGNO)

A Monarquia de Habsburgo aumentou em importância na Europa em 1526, quando o arquiduque Fernando da Áustria, o irmão mais novo do sacro imperador romano-germânico Carlos V, foi eleito rei da Boémia e da Hungria após a morte de Luís II, o rei daqueles dois países, na batalha contra os Turcos, em Moháes. A partir dali, a Monarquia cresceu, a ponto de chegar, por vezes, a governar mais de metade do território da Europa.  (Fonte: Wikipedia)

(Direitos reservados)

2 – “No início dos anos 90, o grupo do coronel Luís Silva comprou o Jornal de Notícias e pouco depois adquiriu o Diário de Notícias, numa transação singular. O título histórico foi disputado por várias cooperativas de jornalistas, que tinham vantagem na privatização. Ganhou a proposta liderada por Alberto Rosário. No mesmo dia, o jornal foi revendido a Luís Silva e o vendedor viria a ser administrador da Lusomundo. Apoiado no crescimento do negócio dos cinemas, o grupo compra a TSF, mas falha a entrada na televisão, depois de abandonar o consórcio de investidores da SIC e de uma tentativa não concretizada para comprar a TVI.” A história é contada por Ana Suspiro, no seu livro “Portugal à venda”.

A obra de Ana Suspiro, lembra, também, que, no virar do milénio, “apesar da dívida, a Lusomundo é um alvo atraente para a Portugal Telecom, que investe 190 milhões de euros (contas de 2002) na sua aquisição. Foi um grande negócio para Luís Silva, que se torna accionista da PT e mais tarde investe em outras sociedades cotadas”. Em 2012, Luís Silva, que morreu em Março deste ano, tinha uma fortuna avaliada em 521 milhões de euros e ocupava o décimo lugar entre os mais ricos do país. Entretanto o JN e o DN, que mudaram sucessivamente de donos, desfizeram-se já das suas históricas sedes. A do diário portuense será em breve um hotel; e a do jornal de Lisboa é, agora, um condomínio de luxo.

3 – Joseph Pulitzer (1847-1911), nascido Pulitzer József, foi um jornalista e editor húngaro. Educado em escolas privadas de Budapeste, falava fluentemente Alemão, Francês e Húngaro. Em 1864, emigrou para os Estados Unidos da América. Serviu nas fileiras do exército federal durante a Guerra de Secessão. Depois, trabalhou em St. Louis, no Missouri, como carregador, bagageiro e empregado de mesa, enquanto estudava Inglês e Direito e participava na política local (em 1869, foi membro da legislatura do Missouri). O seu primeiro emprego como repórter foi no Westliiche Post, um jornal alemão e, cinco anos depois, adquiriu uma parte do periódico. Com 25 anos, Pulitzer torna-se editor e, em 1874, é admitido em Washington DC, onde trabalha como correspondente para o New York Sun.

Joseph Pulitzer destacou-se pela sua prática jornalística inovadora,
explorando a componente mediática e negocial do jornal e potenciando
a circulação em massa do mesmo. (comunidadeculturaearte.com)

Em 1878, criou em St. Louis, pela fusão de dois jornais, o Dispatch e o Evening Post, o Post-Dispatchs. Torna-se uma figura proeminente na cena jornalística. No mesmo ano, casa-se com Kate Davis, uma mulher americana da alta sociedade, o que lhe confere um estatuto social mais elevado, e um maior reconhecimento entre a elite social de St. Louis. Após a mudança para Nova Iorque, comprou, em 1883, o jornal The World, que que se tornou num dos jornais mais importantes da época. Pulitzer revolucionou os jornais com técnicas que alguns admiraram como um “Novo Jornalismo” e outros censuraram como “Jornalismo Amarelo”. Praticou um jornalismo rigoroso, tendo divulgado e combatido, nas páginas do seu jornal, a corrupção política – proclamando-se “um defensor do lado das pessoas e um porta-voz da democracia”, lutando ao lado dos operários por menos horas de trabalho e melhores condições de vida para os pobres, e atacando as grandes companhias e monopólios laborais. Em 1903, entregou à Universidade de Columbia a quantia de um milhão de dólares destinada à criação de uma escola de jornalismo – a Columbia University Graduate School of Journalism –, cuja primeira pedra foi lançada em 1912, nove meses após a sua morte. Os prémios Pulitzer são entregues desde 1917 e têm como objectivo distinguir, anualmente, personalidades de diferentes áreas do jornalismo e da literatura que se destacaram ao longo do ano pelo seu trabalho. O objectivo do prémio é, pois, o de “encorajar e distinguir a excelência”. (Fonte: Wikipedia)

Veja aqui o último relatório da APCT. 

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10/07/2023

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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