Os mesmos velhos caminhos da América “Baixa”
Os tempos que configuram essa segunda década do século XXI são de assombro. Depois da escalada de um matizado “progressismo”, que começou no final dos anos 1990, toda a região latino-americana começa a viver nova onda de dominação do pensamento conservador e da ultradireita.
No Brasil, a população votou em Jair Bolsonaro para gerir o país em quatro anos de absoluta destruição dos direitos dos trabalhadores, bem como do emprego, da indústria nacional e do ambiente. E, ainda que nas últimas eleições a maioria tenha escolhido Lula da Silva, houve uma expressiva marca de votos para o protofascista, uma gente que segue atuando de maneira veloz e eficaz no sentido de disputar as mentes, mantendo viva a chama do conservadorismo.
Na América Central, aprofunda-se, cada vez mais, o desejo de ver uma “mão dura” governando. E isso aparece concretamente no caso do governo de Naybe Armando Bukele, em El Salvador, que decidiu encarcerar meio mundo e governar como um imperador. Tem 90% de aprovação da população que nunca na sua vida tinha visto alguém atuar contra as maras (gangues). E ainda que se fale em acordos entre as maras e Bukele, o que se vê, na aparência, é uma multidão de criminosos que impunham o terror sendo presos e sumindo das comunidades. Um alívio para a violência que tem levado milhares de pessoas a migrar, dia após dia. O que isso vai dar no futuro parece não importar, porque o impacto na vida cotidiana é grande.
No Paraguai, quando todas as pesquisas anunciavam um empate técnico entre o candidato do Partido Colorado – cria de Horacio Cartes – e Pedro Efraín Alegre, que representaria uma aliança mais à esquerda, o que se viu foi uma vitória estrondosa de Santi Peña (Santiago Peña Palacios), mantendo no poder um partido que, salvo um pequeno hiato (com Fernando Lugo), governa o país há 70 anos.
Nem todas as denúncias de corrupção, nem a retirada do apoio dos Estados Unidos da América a Cartes fez com que a esquerda pudesse lograr uma vitória. Isso porque quem surgiu como “saída” foi um candidato ultradireitista, Payo Cubas, conhecido como o “Bolsonaro paraguaio”, com propostas de pena de morte e “mão dura” contra tudo e todos, que abocanhou impressionantes 23% dos votos.
Na Argentina, que celebrou a vitória de uma coalizão de centro-esquerda contra Mauricio Macri, as coisas não estão indo bem. Novos contratos fechados com o Fundo Monetário Internacional (FMI), aumento do desemprego e crise financeira tem colocado a população com “as barbas de molho”. Uma viragem à direita de novo não está descartada. No México, os ataques a Andrés López Obrador se aprofundam e por aí vai.
O que o cenário parece apontar é que as coalizões “progressistas” que têm assumido governos não conseguem sair da armadilha liberal. Por conta disso, também se mostram incapazes de resolver problemas que são estruturais. O caso de El Salvador é paradigmático. Passou por duas gestões de governos oriundos das lutas de libertação, mas que não avançaram na relação com a violência, com a miséria, com o desemprego. Bukele deu solução pela via autoritária. A população, em geral, prefere políticos que tenham propostas claras, que respondam à maioria em problemas que impactam a maioria. As propostas que envolvam grupos específicos tendem a ser vistas como privilégios ou insuficientes. O que, de fato, muitas vezes são.
Outra falha bastante comum é a incapacidade de comunicar com a maioria. Os grandes temas seguem sendo decididos em espaços fechados, ou no legislativo, sem um debate público amplo. A população não é chamada para conhecer a ação dos governos e muitos menos para decidir sobre as questões. Exemplos positivos como a organização pela base em Cuba ou as ações comunicativas do presidente Hugo Chávez, na Venezuela, não são consideradas. O resultado é que a maioria acaba sendo inoculada pelo vírus da desinformação que circula pelas redes sociais. São tantas e tão velozes as mentiras e a desinformação, e não encontram barreira eficaz.
O Brasil acaba de viver um momento assim quando o governo decidiu passar, sem amplo debate, um projeto de regulação das grandes empresas de dados e informação. A mentirada gerada pela oposição ultraliberal se espalhou como pólvora e, na dúvida sobre o conteúdo total do projeto, muita gente que não é da direita acabou se colocando contra também. Esse é um tema que precisa de muito debate e as pessoas precisam de ficar certas de que isso será bom para a maioria. Não é assim que aparece. A direita fala em censura e o governo não consegue ser claro.
No Chile, o governo de Gabriel Borić Font, colocado como “progressista”, tem aplicado velhas receitas que a população não vê com bons olhos, como é o caso da militarização da região da Araucanía. E, agora, os chilenos escolherão uma nova assembleia constituinte, provavelmente muito menos à esquerda do que a que nasceu das grandes manifestações e que foi derrotada quando a população disse não ao projeto construído. Resta saber se a lição foi aprendida e se as propostas que nascerão desta nova constituinte realmente buscam mudanças significativas para a maioria dos chilenos.
Via de regra, o que se vê nos governos ditos progressistas é um descompasso entre o que apregoam e o que, de fato, fazem. Pululam propostas de caráter pequeno-burguês, de melhoria do capital, de conciliação de classe. As saídas seguem sendo pela via liberal e não apresentam respostas para os dramas estruturais de cada nação. Nestes tempos de redes sociais, de alienação estonteante e de inteligências artificiais, faz falta uma esquerda revolucionária que seja clara nas propostas e que seja capaz de carregar o povo todo, não para humanizar o que não tem como ser humanizado – o capitalismo –, mas para constituir uma nova sociedade de verdade. A resposta a essa crítica tem sido a mesma: se busca transformação precisa de enfrentar o império. Ou seja, insiste-se na receita de fazer omelete sem quebrar os ovos. E, ainda que a conciliação sempre acabe mal, é nela que se amparam.
Enfim, andamos longe da mudança, mas caminhamos.
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15/05/2023