Os meus filmes de Páscoa
A par das celebrações religiosas que marcaram as minhas Páscoas na infância, o meu dever era acompanhar a minha mãe, avó e tias, dentro da religiosidade que havia aprendido. Seguindo aquilo que elas e os padres que conhecíamos – que eram os nossos amigos de convívio – me tinham ensinado, existiam então, quase como celebrações religiosas, os filmes bíblicos que não faltavam nos cinemas da minha cidade.
Não havia televisão e a nossa relação imagética relacionada com os grandes episódios sagrados era através do ecrã ou da tela do cinema. Hoje, quando analiso a longa lista desse cinema essencial, julgo que os vi quase todos, referindo os mais populares!
A lista é longa. Os mais exibidos eram, como aqui em Portugal, o “Ben-Hur” (de 1959) e “Os Dez Mandamentos” (de 1956), ambos interpretados por Charlton Heston, assim como o filme “Quo Vadis”, com esse grande Peter Ustinov (actor, dramaturgo e músico), no papel de Nero. Inesquecível!
São mais de 500 os filmes que, ao longo da História do Cinema, tiveram a vida de Jesus como tema principal e muitos os que, todos os anos, continuam a estrear.
O primeiro do qual tenho memória é “O Rei dos Reis” (“The King of Kings”), filme norte-americano, de 1927, da Paramount Pictures, do género épico, realizado por Cecil B. DeMille. Lembro-me dele, particularmente, pelo facto de ser o mais antigo e a preto e branco. Ainda assim, tinha momentos monocoloridos, técnica que obrigada os estúdios a colorir manualmente as fitas.
Narra a vida de Jesus de Nazaré, especificamente, as últimas semanas antes da Crucificação. O filme é mudo e foi rodado a preto e branco, com excepção das últimas sequências. A narrativa foi estruturada a partir de textos retirados dos Evangelhos que aparecem identificados na tela, antes de cada cena, e que permitem ao espectador acompanhar a história. Destaca-se por ser a primeira grande obra do cinema a abordar a figura de Jesus e, pelo cuidado especial com a imagem, muito potente numa obra que poderia ter sido filmada com som (já existiam filmes falados), mas o realizador Cecil B. DeMille (o mesmo de “Os Dez Mandamentos”) preferiu seguir a estética do cinema mudo.
Aproximando-se à vida de Cristo, surgiram outros filmes como “O Manto Sagrado” (“The Robe”, em 1953), contando na primeira parte com Richard Burton, no papel do centurião romano Marcelo, o qual joga os dados sobre o manto do Cristo, enquanto este está na cruz. A vida de Marcelo, a sua redenção e morte são o tema central. Uma sequela desta história seria “Demétrio, o Gladiador” (de 1954), com Victor Mature, que já tinha interpretado a personagem de Sansão, na obra cinematográfica “Sansão e Dalila” (em 1949), outro dos filmes bíblicos.
Estas fitas que indico a seguir são outras que considero mais populares:
“Sodoma e Gomorra” (de 1962); “O Cálice Sagrado” (de 1954), com Paul Newman; “Barrabás” (filme italiano de 1961, dirigido por Richard Fleischer), com Antony Quinn; outra versão de “King of Kings” (de 1961), realizada por Nicholas Ray; “The Greatest Story Ever Told” (“A Maior História de Todos os Tempos”), de 1965, com o actor sueco Max Von Sydow, no papel de Cristo.
Refiro ainda o muito curioso filme “A Bíblia: No Princípio…” (“The Bible: In the Beginning…”), de 1966, com realização e interpretação de John Huston.
Trata-se de um filme dividido em episódios que termina relatando o momento em que é pedido a Abrão para que sacrifique o seu único filho (Gn 17:17). Abrão é interpretado pelo célebre actor George Campbell Scott, o qual, mais tarde (em 1970), seria o General Patton – curiosidades do cinema!
Há três filmes que não fazem parte da lista, mas que deveriam constar, por serem essenciais: “A Última Tentação de Cristo”, filme contestado e proibido em muitos países, realizado por Martin Scorcese, baseado no romance homónimo de Níkos Kazantzákis (publicado em 1951). Este filme mostra-nos “Jesus Cristo como um homem comum, encarnado num Messias contraditório, frágil e perturbado, que se autoproclama filho de Deus”. Como registava ainda o blogue Filmes Cine Old Anarquia (15 de Outubro de 2020), as suas pregações na Judeia, então colónia romana, chocam e incomodam o governo, que decide livrar-se dele.
“O Evangelho segundo São Mateus”, filme franco-italiano (de 1964) dirigido Pier Paolo Pasolini, é uma obra que se complementa, posteriormente, com o seu filme de 1968, “Teorema” que, segundo a Wikipédia, é uma “visão diferente da pregação e martírio de Jesus Cristo”. “Em vez do cordato pastor, um líder, que reivindica e se enfurece. A intenção de Pasolini era mostrar Jesus como um homem de seu tempo. Para isso, preferiu atores amadores ou pessoas do povo”, explica a mesma enciclopédia livre, acrescentando que o filme reinventa a figura mítica do Cristo partindo dos diálogos tirados do Evangelho de Mateus, considerado o mais realista dos quatro. Como frisa a Wikipédia, o Cristo de Pasolini é um homem severo e inflexível, “diz que não veio trazer a paz, mas a espada“.
“Inquieto com o avanço industrial na Itália (1950 e 1960), que dizia comprometer a diversidade cultural, Pasolini utiliza no filme, em contraponto, os elementos poéticos e míticos da cultura ancestral, como o sacrifício necessário à sacralização e ao renascimento”, complementa o mencionado projecto colaborativo (pt.wikipedia.org).
E, finalmente, o filme “Acto da Primavera” (de 1963), realizado, escrito e produzido por Manoel de Oliveira, que é considerado “cinema puro, teatro puro”. Consiste num filme de orientação etnográfica, co-realizado por António Reis, António Soares e Domingos Carneiro (assistentes de realização). O filme documenta, respeitosamente, a representação encenada duma celebração popular da Paixão de Cristo, na vivência tradicional da aldeia transmontana da Curalha. A morte de Cristo e a sua ressurreição contrastam com as imagens da chegada do homem à Lua!
Em Cangas (na província galega de Pontevedra), localidade vizinha de Vigo, no recente Domingo de Páscoa, assisti, sem eu ter previsto, ao encontro de duas procissões: a do Cristo Redentor e Ressuscitado, e a da Nossa Senhora da Aurora. O encontro da mãe e do filho. No cruzamento, a Virgem é despida do seu manto de luto e “renascida” em brancas vestes, encabeçando uma nova procissão seguida pelo seu filho. Entre os aplausos dos fiéis, ambos seguem em peregrinação, rodeados por meninos e por meninas que levam consigo frutos e roscas doces, doçaria típica da época. A moldura musical é acentuada por gaiteiros e por tambores1 tocados por jovens e também pelos mais velhos da comunidade, sublinhando a Páscoa como celebração do encontro de gerações. A este propósito, pode ler (e ver) a reportagem intitulada “Así fue la procesión del Resucitado de Cangas”, no jornal Faro de Vigo.
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Nota:
1 –Banda de Gaitas Tromentelo – Coiro, Cangas. Refere o jornal Faro de Vigo: “La vida de la Banda de Gaitas Tromentelo, de Coiro, está muy ligada a la del colegio de esta parroquia canguesa. Todo comenzó como una actividad extraescolar de clases de gaita en el curso 1987/88, dirigidas por Xaquín Camaño. En el año 1991 es cuando se da el salto y comienza la banda propiamente dicha, con el nombre de Tromentelo, en honor a los montes de la parroquia.”
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20/04/2023