Os outros lados do tempo

 Os outros lados do tempo

Medem-se sucessões de acontecimentos por comparação com sucessões de outros acontecimentos. (Créditos fotográficos: Meriç Dağlı – Unsplash)

Num ensaio de pura especulação, aceita-se facilmente que o tempo, parecendo algo de real, não tem, só por si, qualquer significado. Pode mesmo aceitar-se que, sem mais nada que o crie ou suporte, o tempo não existe. O que existe é aquilo que ele mede. Medem-se sucessões de acontecimentos por comparação com sucessões de outros acontecimentos. É como medir pesos com outros pesos e comprimentos, comparando-os com outros comprimentos. Um litro de água vale pelo líquido que essa medida encerra. Mas um litro de nada o que é? E o que é um quilo sem que seja de qualquer coisa? E um metro de coisa nenhuma, que significado tem? Da mesma maneira, todos aceitamos que um ano de vida vale por aquilo que nele acontece.

A areia passando no estrangulamento de uma ampulheta. (Créditos fotográficos: Nathan Dumlao – Unsplash)

Fenómenos periódicos do nosso dia-a-dia dão-nos a percepção do tempo. O nascer e o pôr do Sol, as fases da Lua, o apetite, a fadiga, o envelhecimento das pessoas e das coisas fazem-nos sentir que algo decorre, se esgota, se renova… O deslizar da sombra num quadrante solar, um pêndulo que oscila em vai-e-vem cadenciado, a areia passando no estrangulamento de uma ampulheta ou a água escoando-se numa clepsidra são meios, mais ou menos padronizados, de avaliar sucessões de acontecimentos a que chamamos tempo. O mesmo que, hoje, podemos quantificar, instantaneamente, no nosso relógio de pulso, graças à engenhosa aplicação do conhecimento científico que temos das propriedades piezoeléctricas do quartzo.

Sem dimensão, o presente é um instante. Assim, figuradamente, o presente, ou o agora, é como uma ponte sob a qual se escoa o rio do tempo. Dela se afasta a água, incessantemente, como passado. E para ela, também incessante, se dirige como futuro. O agora não tem tempo. O amanhã e o futuro são projecções lógicas do pensamento, dirigidas para a frente, com base na experiência, que é sempre passado.

Sem dimensão, o presente é um instante. (Créditos fotográficos: Luke Chesser – Unsplash)

O tempo não volta para trás, diz a sabedoria popular. Com efeito, o tempo tem um só sentido, o positivo, o do “para a frente” ou o do “soma e segue”. Nunca o negativo: o de “volta para trás”. Recuar no tempo é, todavia, um exercício possível, ao alcance da nossa capacidade mental. E só desse modo. Fazemo-lo por apelo à memória, seriando registos sucessivamente mais antigos, gravados nos locais próprios do cérebro onde buscamos o nosso saber arquivado.

Todos nós viajamos para trás no tempo, recordando. Fazer História, Pré-História, ou Geo-História é pesquisar e manipular documentos registados, quer seja nas rochas e nos fósseis, quer nos achados arqueológicos ou em pergaminhos e papéis, quer ainda, como acontece nos tempos actuais, numa multitude de registos magnéticos. Tal pesquisa é, afinal, como no apelo à memória, viajar no tempo ao contrário.

Dizer que a nossa Terra é velha, com quatro mil quinhentos e quarenta milhões de anos, é dizer que ela tem esse número de vezes o tempo que hoje demora a dar uma volta ao Sol. Mas se a velocidade de translação do nosso planeta fosse diferente, aquela cifra seria outra, mas o tempo real decorrido desde o seu começo até hoje seria exactamente o mesmo. Sem entrarmos nos domínios da física de Albert Einstein, diremos que dois relógios não sincronizados dão do mesmo tempo duas medidas diferentes. O tempo medido vale, assim, pela avaliação que dele se faz. Varia consoante o instrumento, físico ou psíquico, que o mede. Sobre a relatividade do tempo, podem os físicos divagar por caminhos mais ou menos inacessíveis ao cidadão comum, dilatando-o ou contraindo-o, como demonstrou o grande mestre, com recurso a desenvolvimentos matemáticos ao alcance de muito poucos.

Sem entrarmos nos domínios da física de Albert Einstein, diremos que dois relógios não sincronizados dão do mesmo tempo duas medidas diferentes. (Créditos fotográficos: Ahmad Ossayli – Unsplash)

Porém, todos nós podemos abordar o valor relativo do tempo, por outras vias mais acessíveis, como as da experiência e da sensibilidade: “Como é breve o tempo de prazer e como é longo o do sofrimento.” Ou, no mesmo sentido: “Como corre veloz o tempo do amor e como se arrasta, penoso e interminável, o tempo da separação.”

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22/01/2024

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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