Os outros lados do tempo

Medem-se sucessões de acontecimentos por comparação com sucessões de outros acontecimentos. (Créditos fotográficos: Meriç Dağlı – Unsplash)
Num ensaio de pura especulação, aceita-se facilmente que o tempo, parecendo algo de real, não tem, só por si, qualquer significado. Pode mesmo aceitar-se que, sem mais nada que o crie ou suporte, o tempo não existe. O que existe é aquilo que ele mede. Medem-se sucessões de acontecimentos por comparação com sucessões de outros acontecimentos. É como medir pesos com outros pesos e comprimentos, comparando-os com outros comprimentos. Um litro de água vale pelo líquido que essa medida encerra. Mas um litro de nada o que é? E o que é um quilo sem que seja de qualquer coisa? E um metro de coisa nenhuma, que significado tem? Da mesma maneira, todos aceitamos que um ano de vida vale por aquilo que nele acontece.

Fenómenos periódicos do nosso dia-a-dia dão-nos a percepção do tempo. O nascer e o pôr do Sol, as fases da Lua, o apetite, a fadiga, o envelhecimento das pessoas e das coisas fazem-nos sentir que algo decorre, se esgota, se renova… O deslizar da sombra num quadrante solar, um pêndulo que oscila em vai-e-vem cadenciado, a areia passando no estrangulamento de uma ampulheta ou a água escoando-se numa clepsidra são meios, mais ou menos padronizados, de avaliar sucessões de acontecimentos a que chamamos tempo. O mesmo que, hoje, podemos quantificar, instantaneamente, no nosso relógio de pulso, graças à engenhosa aplicação do conhecimento científico que temos das propriedades piezoeléctricas do quartzo.
Sem dimensão, o presente é um instante. Assim, figuradamente, o presente, ou o agora, é como uma ponte sob a qual se escoa o rio do tempo. Dela se afasta a água, incessantemente, como passado. E para ela, também incessante, se dirige como futuro. O agora não tem tempo. O amanhã e o futuro são projecções lógicas do pensamento, dirigidas para a frente, com base na experiência, que é sempre passado.

O tempo não volta para trás, diz a sabedoria popular. Com efeito, o tempo tem um só sentido, o positivo, o do “para a frente” ou o do “soma e segue”. Nunca o negativo: o de “volta para trás”. Recuar no tempo é, todavia, um exercício possível, ao alcance da nossa capacidade mental. E só desse modo. Fazemo-lo por apelo à memória, seriando registos sucessivamente mais antigos, gravados nos locais próprios do cérebro onde buscamos o nosso saber arquivado.
Todos nós viajamos para trás no tempo, recordando. Fazer História, Pré-História, ou Geo-História é pesquisar e manipular documentos registados, quer seja nas rochas e nos fósseis, quer nos achados arqueológicos ou em pergaminhos e papéis, quer ainda, como acontece nos tempos actuais, numa multitude de registos magnéticos. Tal pesquisa é, afinal, como no apelo à memória, viajar no tempo ao contrário.
Dizer que a nossa Terra é velha, com quatro mil quinhentos e quarenta milhões de anos, é dizer que ela tem esse número de vezes o tempo que hoje demora a dar uma volta ao Sol. Mas se a velocidade de translação do nosso planeta fosse diferente, aquela cifra seria outra, mas o tempo real decorrido desde o seu começo até hoje seria exactamente o mesmo. Sem entrarmos nos domínios da física de Albert Einstein, diremos que dois relógios não sincronizados dão do mesmo tempo duas medidas diferentes. O tempo medido vale, assim, pela avaliação que dele se faz. Varia consoante o instrumento, físico ou psíquico, que o mede. Sobre a relatividade do tempo, podem os físicos divagar por caminhos mais ou menos inacessíveis ao cidadão comum, dilatando-o ou contraindo-o, como demonstrou o grande mestre, com recurso a desenvolvimentos matemáticos ao alcance de muito poucos.

Porém, todos nós podemos abordar o valor relativo do tempo, por outras vias mais acessíveis, como as da experiência e da sensibilidade: “Como é breve o tempo de prazer e como é longo o do sofrimento.” Ou, no mesmo sentido: “Como corre veloz o tempo do amor e como se arrasta, penoso e interminável, o tempo da separação.”
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22/01/2024