Os outros não são um bicho-papão

 Os outros não são um bicho-papão

A Bíblia está cheia de leis que definem como devemos viver. Existem regras para tudo e, embora a aplicação de muitas se tenha diluído, “amarás o teu próximo como a ti mesmo” continua a ser uma boa referência. Num mundo em que comunidades se encontram cada vez mais fragmentadas, continuamos – como demonstrou a crise sanitária – dependentes da compaixão dos outros; e uma sociedade saudável requer que ajudemos o elusivo “próximo”.

Portugal é um país homogéneo, alinhado com o pensamento e a cultura ocidental, sem grande espaço para variações e pouco habituado a mentalidades diferentes. É fácil esquecer que existe um mundo de pessoas que pensam de maneira diferente de nós, como me lembrou o podcast sobre geopolítica do Médio Oriente, “Conflicted. Aí, um dos participantes, Aimen Dean, dizia que os ocidentais nunca poderiam entender o que move muitos dos conflitos e movimentos políticos (e terroristas) da zona.

Aimen Dean nasceu na Arábia Saudita e foi jhiadista na guerra dos Balcãs, acabando por juntar-se à Al-Qaeda. Em 1998, insatisfeito com as justificações religiosas do grupo terrorista, desertou e tornou-se um agente duplo com os serviços secretos britânicos. Anos depois, a sua identidade foi exposta e acabou como consultor de bancos e empresas que operam no Médio Oriente, embora viva no Reino Unido. Aimen discute de maneira aberta o seu percurso e a lógica dos movimentos terroristas, assim como as decisões que tomam. E deixa claro que “os ocidentais nunca poderão entender as motivações” de outras culturas. Tudo porque somos demasiado “cínicos”.

A ideia saiu no meio de uma discussão sobre a ocupação falhada do Afeganistão pelos Estados Unidos (onde se comenta que seria impossível implementar uma democracia liberal numa sociedade que clama pela Sharia), mas aplica-se a muito do que vemos nas notícias. Embora guerras civis e movimentos terroristas nasçam da necessidade de poder de alguns grupos ou indivíduos, isso não os impede de inspirar e de recrutar pessoas por motivos culturais e religiosos.

Aimen explica que grande parte do mundo árabe está focado, religiosamente, em profecias que indicam que o fim do mundo está próximo. Um Messias chegará para unir os povos e necessitará de um território e de um exército. As sucessivas guerras na região ajudaram a pintar o início do Apocalipse e a convencer as populações a legitimar alguns conflitos. Aimen diz que o pensamento ocidental é tão cínico que não consegue levar a sério esta lógica. E tem razão.

Contudo, mesmo que eu não acredite em profecias apocalípticas, tal não impede que alguém no Iémen as aceite e tome decisões em função disso. Prisioneiros da nossa própria cultura, esta é apenas uma das inúmeras maneiras de ver o mundo, as quais nos ultrapassam, sabendo que o globo está cheio de coisas assim. Por exemplo, na Índia, milhões de pessoas dedicam o seu tempo aos rituais religiosos da sua zona, de uma forma a que grande parte dos católicos já está pouco habituada.

Pessoalmente, tenho problemas em entender a saída do Reino Unido da União Europeia ou o movimento independentista na Catalunha, porque lhes aplico uma visão externa e pragmática, sem o mesmo apego emocional de alguns dos seus defensores. Vemos notícias sobre confrontos no Cazaquistão e não fazemos ideia sobre o que está a acontecer de verdade. O mundo será sempre demasiado complexo para caber num título ou num artigo. E assim se continua sem entender o “próximo”.

Nem é preciso sair da nossa realidade para encontrar estes problemas. No caminho para as eleições legislativas em janeiro, ouvimos retóricas que não entendo, desde o racismo (mais ou menos) encoberto até políticas económicas que defendem quem já tem o controlo sobre os recursos. Palavras que tiveram sucesso junto dos portugueses, mas que não compreendo. Fica complicado manter uma mente aberta perante algumas coisas. Como combinamos, então, a ideia de compaixão pelo próximo com a incapacidade de entendê-lo?

Para mim, é simples: o próximo deve ser tratado como uma pessoa e não como um bicho-papão. É muito fácil odiar ideias ou conceitos, mas quando se fala frente a frente muitas coisas mudam. Afinal, somos apenas humanos. Não vamos acabar por concordar nem por defender sempre os mesmos ideais, mas se nos lembrarmos que do outro lado do ecrã, da rua ou do estádio de futebol estão apenas outras pessoas, isso já ajudaria a reduzir alguma da tensão no mundo.

02/02/2022

Siga-nos:
fb-share-icon

Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

Outros artigos

Share
Instagram