Os preconceitos ideológicos da direita

 Os preconceitos ideológicos da direita

Jakob Owens (Unsplash)

O bom liberal gosta do mercado e do negócio, mas odeia competir no mundo das ideias. Aos que se lhe opõem com outras propostas de organização da sociedade acusa-os de só por “preconceito ideológico” não pensarem como ele. Quando os media introduzem na sua narrativa expressões como “preconceitos” ou razões ideológicas” nas perguntas e perspetivas que apresentam, isso significa que a visão do bom liberal é hegemónica.

Michico Kakutani, na sua mais recente obra, A morte da verdade, editada pelo The New York Times, vai buscar a certa altura a Robert A. Heinlein, um dos maiores impulsionadores da escrita de ficção científica, este pensamento: “consegue-se manipular mais rapidamente mil homens apelando aos seus preconceitos do que se consegue convencer um só deles por via da lógica”. O preconceito ideológico, tantas vezes esgrimido pela direita como argumento de ataque às ideias adversárias, encaixa bem nesta ranhura, embora ela nunca admita para si qualquer estatuto preconceituoso — tem é convicções fortes.

O bom liberal, quando se lhe mostra e demonstra pela via mais lógica e racional algo que contraria a sua fé mais genuína, ele nega sempre qualquer evidência que seja dissonante com as suas mais fundas convicções. Dirá, aliás, num golpe argumentativo, que o seu interlocutor só não concorda com ele e defende uma solução diversa da sua, por manifesto preconceito ideológico. E como Pedro, que negou Cristo por três vezes antes do galo cantar, assim o bom liberal negará também as vezes que forem precisas a sua compreensão para com pensamentos ou propostas que escapam ao seu catecismo. Tentemos, então, por uma vez, seguir a sua estratégia de raciocínio, mas virando o seu argumento ao contrário.

(Ruthson Zimmerm – Unsplash)

Para o bom liberal, admirador declarado e apaixonado das virtudes do mercado, que na pureza da sua ação tudo regula e resolve, o mundo das empresas é o salvo-conduto para o progresso e desenvolvimento, o mesmo é dizer, para o crescimento económico e distribuição de riqueza. O paraíso na terra. Mais: tudo o que mete empresa privada é, só por si, sinónimo de melhor gestão, de melhor serviço, tudo melhor, para sintetizar. Olhemos para os números para ver se eles confirmam essa convicção.

Nos primeiros dois meses de 2020, antes, portanto, da pandemia cá ter chegado ou vir sequer a caminho, os processos de insolvência, em Portugal, tinham aumentado 27,8%, em comparação com igual período de 2019. Os dados estão no relatório da Iberinform, filial da seguradora Crédito y Caución, que revela ainda a existência de 1061 pedidos de falência, o que equivale a uma subida face aos 830 casos registados em janeiro e fevereiro de 2019. É muita insolvência? O melhor é procurar outra fonte de informação.

De acordo com o Observatório Racius, em 2020 foram constituídas 37.417 novas empresas, ao passo que 24.126 foram dissolvidas e 6.841 entraram em processo de insolvência. No ano anterior (2019) foram constituídas 49.033 novas empresas, 21.356 foram dissolvidas e 7.440 entraram em processo de insolvência. Em 2018 havia 8.540 empresas em processo de insolvência.

Claro que o mercado é mesmo assim, é seletivo, tem dinâmicas próprias, é uma espécie de darwinismo económico que premeia os mais competentes e mais fortes, dirá o bom liberal. Nesse mundo perfeito e “Cândido”, onde o senhor Pangloss dirá que “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos”, ele vai, realmente melhor e mais cor-de-rosa, sempre que o Estado, essa entidade satânica aos olhos dos fundamentalistas do deus mercado, decide abrir os cordões à bolsa. Reparem: nos primeiros 12 anos deste século, o Estado, que só complica a vida às empresas, desembolsou dois mil milhões de euros no apoio ao emprego, com impacto direto em 500 mil pessoas, de acordo com o relatório que o Governo enviou em 2012 aos parceiros sociais. E só em 2017, segundo dados igualmente oficiais, o IEFP gastou 44,5 milhões de euros em apoios à contratação, o que permitiu a criação de 12.450 novos postos de trabalho.

De acordo com o Observatório Racius, em 2020 foram constituídas 37.417 novas empresas, ao passo que 24.126 foram dissolvidas e 6.841 entraram em processo de insolvência.

Convém, portanto, ser-se mais prudente e até rigoroso quando se diz e escreve com tanta insistência que só as empresas criam emprego e geram riqueza. Sem o apoio do Estado, o famigerado empreendedorismo não ia longe… É evidente que o seu papel é relevante e insubstituível em muitas áreas e funções, mas daí a diabolizar  — e ignorar — os apoios estatais prestados à iniciativa privada só poder ser visto como um claro preconceito ideológico.  É o mesmo preconceito, de resto, que mitiga a perda de 57,8 milhões de euros nos CTT nos primeiros quatro anos após a sua privatização, em 2014. Em 2013, antes da privatização, o seu lucro fora de 61 milhões de euros. Entre 2005 e 2014 gerou lucros da ordem dos 577 milhões de euros. No primeiro semestre de 2020, período marcado pelo forte aumento do mercado das encomendas, os CTT tiveram um prejuízo da ordem dos dois milhões de euros.

A Saúde, em consequência da atual pandemia, é um dos setores que mais tem estado por estes dias sob fogo da velha dicotomia público-privado. Olhemos para alguns números começando pela mortalidade infantil: 3,3 crianças em cada mil, taxa que é inferior à média da União Europeia (3,4) e a países como França, Reino Unido, Dinamarca, Bélgica, Países Baixos e Suiça. Para se perceber o caminho andado, é bom lembrar que, de acordo com a Pordata, em 1960 morriam 77,5 crianças portuguesas em cada mil. Olhemos agora para uma das áreas de ponta da Saúde, os transplantes, que sem o SNS seriam praticamente inexistentes, em Portugal. O número de órgãos transplantados atingiu os 878 em 2019, mais 49 (5,9%) face ao ano anterior, tendo o transplante pulmonar registado o maior aumento de sempre, segundo dados divulgados pelo Instituto Português do Sangue Transplantação (IPST). Desde 2013 o número total de transplantes por ano ronda ou supera a casa das oito centenas. O primeiro trimestre de 2020 registou, ainda, uma subida relativamente a igual período do ano anterior, revelou, em maio, a presidente do IPST, Maria Antónia Escoval. A partir de abril, claro, o número de transplantes diminuiu consideravelmente, fruto da Covid-19.

(Piron Guillaume – Unsplash)

Quanto ao Orçamento para a Saúde, Portugal gasta 9,4% do PIB, menos do que a Alemanha gastava há 20 anos (9,9), país que agora ainda investe mais:11,4% do PIB. Áustria, França, Países Baixos, Reino Unido, Dinamarca investem também mais que Portugal, na Saúde. Segundo dados da OCDE (“Health at a Glance”) há uma realidade preocupante: enquanto em Portugal a parcela da riqueza criada (PIB) aplicada na saúde dos portugueses diminuiu entre 2006 e 2017, na União Europeia sucedeu precisamente o contrário.

Durante a recente campanha presidencial, alguém ouviu os candidatos da direita (ou os jornalistas perguntarem) preocupados com a descapitalização e desinvestimento do SNS? A grande preocupação era e é saber como deveria o Estado canalizar meios e recursos para os hospitais privados. Só por manifesto preconceito ideológico se pode não olhar com alguma preocupação para a chamada de atenção da OCDE e não defender a aposta, como se diz na gíria desportiva, no modelo ganhador e universal que tirou Portugal da cauda da Europa. A não ser que existam outras convicções que, em linguagem prosaica, são designados por interesses particulares.

Na verdade, ao mesmo tempo que os sucessivos governos, entre 2006 e 2017, provocaram uma retração no investimento no SNS, em evidente contraciclo com a generalidade dos seus homólogos europeus, o negócio privado da saúde subiu em flecha, em Portugal. Entre 2007 e 2017, o número de hospitais privados aumentou de 99 para 114, assim como se observam movimentos contrários, entre o setor público e privado, quanto ao número de camas — evolução e retração bem evidenciadas no gráfico “Camas hospitalares”.

Qualquer cidadão medianamente inteligente se perguntará porque é que um setor que vinha prestando serviços de tão boa qualidade começa, gradualmente, como quem não quer a coisa, a ser alvo de desinvestimento. É inevitável colocar a pergunta: a saúde deve ser vista como um bem ou como um negócio? Ela deve ser tratada como uma qualquer atividade comercial, onde o fim é o lucro, ou deve ser entendida como um serviço à comunidade e a cada cidadão?

O bom liberal dirá que ao cidadão interessa-lhe pouco a filosofia, e mais a cura do mal de que padece. Mas o bom liberal, que está sempre preocupado com a despesa e os gastos públicos, só por mero preconceito ideológico negará ou assobiará para o lado, perante a evidência de que sem a formação e o investimento feito pelo Estado, os hospitais privados teriam uma expressão quase residual. Basta pensar que na esmagadora maioria dos casos tais instituições não têm de suportar encargos sociais nem pagar subsídios de Natal e de férias aos enfermeiros e médicos que lá trabalham, pela simples razão de  que pertencem ao SNS. De resto, até 2018, apenas 12,9% dos médicos e 10,3% dos enfermeiros tinham um vínculo permanente com os hospitais privados.

Sem a formação e o investimento feito pelo Estado, os hospitais privados teriam uma expressão quase residual

De acordo com os dados do Orçamento de Estado, em 2019 o SNS financiou em 5.756 milhões os hospitais privados. Mais: só as PPP hospitalares custaram, em 2019, ao Estado, 474 milhões de euros, fatura essa que, ao representar um aumento de 6,8%, significa que foi 11 vezes superior ao aumento percentual dos rendimentos do SNS (0,6%), em igual período.

Mesmo o argumento recente, tantas vezes esgrimido na atual campanha eleitoral, de que muitos beneficiários da ADSE preferem o privado ao público, reforça o argumento de que é o Estado que suporta, em doses muito generosas, a boa faturação dos hospitais privados.

Este tipo de confronto de números e de situações poderia ser estendido ao setor da Educação, ao trabalho precário que tem subido exponencialmente, à política dos baixos salários, à má organização da gestão e impreparação — aspeto, aliás, reconhecido por vários dirigentes de associações empresariais — de muitos empresários, ao hábito antigo de estender a mão ao Estado à primeira dificuldade e sintoma de crise, etc, etc, etc.

Porém, não deixa de ser preocupante a hegemonia que a expressão “preconceito ideológico” assume hoje tanto nos debates, como, curiosamente, nas perguntas de muitos jornalistas. É como se o pensar de forma diferente e com outros argumentos não correspondesse a um juízo tão racional e acertado, como a opinião que se lhe opõe. É como se apenas um dos lados apresentasse opiniões credíveis e sérias, e o outro devaneios ou seja lá o que for. Nesta forma maniqueísta de olhar para a realidade e para os seus problemas, o primeiro caso, dir-se-á, fundamenta a sua posição em convicções e o outro em preconceitos. O que releva a ideia de saber de onde provém a autoridade ou o poder de alguém rotular as ideias do outro de preconceituosas, apenas porque são diferentes das suas, apontam para um tipo de modelo de sociedade diverso, balizam as relações sociais e o papel do Estado segundo perspetivas igualmente diversas.

Catalogar a esquerda, como tem sucedido, de ter “preconceitos ideológicos” constitui uma fórmula que se aplica, reciprocamente, na mesma linha de raciocínio, à direita

Catalogar a esquerda, como tem sucedido, de ter “preconceitos ideológicos” constitui uma fórmula que se aplica, reciprocamente, na mesma linha de raciocínio, à direita. Esta, como se viu sumariamente, só por razões de exclusivo preconceito ideológico nega factos iniludíveis e insiste em modelos ou juízos que os números nem sempre sustentam. Claro que uma sociedade equilibrada deve procurar uma sã articulação entre os setores público e privado. Com ética, transparência e responsabilidade. E depois, que viva o debate e a democracia.

Daí, ser incompreensível que se insista — nomeadamente por parte dos media — em classificar pejorativamente o lado que defende políticas de maior justiça social, mais inclusão, condições iguais de acesso à educação, saúde, justiça e o direito por uma habitação digna, como resultado do seu “preconceito ideológico”. Serão estes objetivos, a defesa destas ideias, reflexo de algum preconceito perigoso, ou traduzem, no essencial, aquilo que qualquer ser humano, especialmente os que escutam as palavras temperadas e sábias do Papa Francisco, deve aspirar?

É altura, portanto, de a esquerda responder na mesma moeda, introduzindo no debate o argumento dos preconceitos ideológicos aplicados à direita, que tanto contrariam e impedem a concretização de objetivos que apenas visam o bem comum, e não a defesa ou manutenção dos privilégios de alguns.

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João Figueira

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