Os rapazes do 25 de Abril
No final de Janeiro, em Alcains, Carlos Beato, um dos milicianos de Salgueiro Maia, contou, como ele, quase a sair da tropa, fora seduzido pela liderança de um homem a quem ninguém conseguia dizer que não. Escutar o relato desses meses que antecederam o 25 de Abril de 1974 da boca que quem o viveu (e fez) é conhecer o lado interior da História.
Uma história que, pessoalmente, vivi através da rádio e dos jornais, mais do que da televisão; que, em 1974, ainda não era um electrodoméstico vulgar, mas um luxo em Alcains. Apenas reservado a uma elite económica e a duas vizinhas do Bairro das Flores, casadas com emigrantes em França. A televisão, nos anos setenta do século vinte, ainda era um luminoso objecto de desejo.
Mais próxima e acessível, a rádio era a caixa mágica dos anos sessenta e setenta, de onde saíam notícias, canções, histórias de um país que já eu pressentia estranho, mas que só mais tarde, com a informação do contraditório, ganhava sentido.
Naquele tempo, já me espantava a bata branca na escola. Só obrigatória (e engomada a preceito) para ir, em bando escolar, bater palmas em coro a políticos que se deslocavam em automóveis negros, nas suas visitas oficiais ao Largo de Santo António. Ou, em outras ocasiões, com a obrigação solene de vê-los passar no cruzamento de São Domingos, agitando no ar bandeirinhas, para dar cor e alegria aos almirantes e ministros que passavam, em comitiva, pela província.
Da rádio, depois de Abril de 1974, saltaram canções proibidas para um presente cheio de futuro. José Afonso, José Mário Branco, Fausto, Luís Cília, Francisco Fanhais e Sérgio Godinho apareciam, como anjos negros, a inundar de verdades a pacatez da província, onde vivia o bom povo português idealizado pelo beato Salazar, um mártir, ao serviço de um país feito à sua imagem.
Contraditório e canções a gritarem verdades e poesia, só após a revolução em Lisboa. Um golpe de Estado protagonizado pelo capitão Salgueiro Maia.
Olhando, agora, para as fotografias a preto e branco do mestre Alfredo Cunha, noto que eram todos rapazes. E até o seu comandante Salgueiro Maia apresenta uma imagem de jovem rebelde com causas. Tem um olhar profundamente sério, de quem tem uma missão a cumprir e não pode falhar.
Carlos Beato mostrou, em Alcains, uma fotografia sua na Revolução de Abril: franzino e com um capacete militar (a lembrar o Desembarque na Normandia, quando os Norte-americanos ajudaram a derrotar um tresloucado Hitler, que se julgava – também ele – um enviado de Deus para organizar o Mundo à sua imagem e semelhança).
O capacete militar de Carlos Beato é uns números acima do que a cabeça do miliciano pedia, mas o que importava era a missão que tinha pela frente: acabar com um regime que já estava fora da Europa e do seu tempo. O regime que defendia o Império com o sangue inocente de jovens, destroçando famílias, bairros e aldeias, onde a notícia da morte lhes chegava em telegrama do Ultramar.
Meses e meses de segredos e de medo (Outubro, Novembro, Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março e, por fim, Abril).
Escolhidos a dedo, um a um, por atitudes particulares, mas também pela música que ouviam, segundo o relato de Carlos Beato, em Alcains. Todos seguindo o comandante a quem ninguém teve coragem de dizer que não.
E a rádio, a cúmplice perfeita, colocando no éter as senhas: “E Depois do Adeus” e a inesquecível “Grândola, Vila Morena”.
A Revolução do 25 de Abril foi com a Rádio. Foi ela que mobilizou e pôs o país em festa antes das inesquecíveis manifestações do 1.º de Maio, em que, finalmente, a Televisão nos mostrou que a Revolução tinha triunfado. Que era irreversível, porque o povo assim o queria.
O meu amor pela rádio passou a grande paixão após o 25 de Abril de 1974. Oferecendo, em vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, sons de um mundo novo. Português. Alegre e fraterno.
Um Portugal onde as pessoas se julgaram livres como gaivotas a voar e papoilas a crescer na terra. E em cada rosto encontravam um amigo. E cantavam-no a toda a hora, na rádio e na rua.
A melhor rádio produzida em Portugal foi a dos anos setenta e oitenta. E, depois a TSF. Dela falarei numa outra crónica que será dedicada ao jornalista e poeta da rádio Fernando Alves.
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29/02/2024