Óscar Romão em Valquírias (2): A amêndoa de água da Rosinha

 Óscar Romão em Valquírias (2): A amêndoa de água da Rosinha

Lucas George Wendt (Unsplash)

Óscar e Sílvia já estavam há uma semana na quinta perdida, a que chamaram Rosinha, em homenagem a uma querida amiga que soçobrou demasiado cedo nas avariadas ondas da vida, enredada em algas negras, búzios afiados e plâncton oleoso, quando avistaram um trilho de pó rubro a serpentear pelos montes, aproximando-se aos soluços, vira aqui à direita, torce ali mais à frente, hesitante e tímido, como se pedisse desculpa, a Sílvia está aí?

Sim, estava, tinha acabado de fazer os 12 quilómetros da sua incrível Ténéré, muito perto de Valquírias, onde continuavam a ir buscar queijo de cabra, pão e mel. A tarde estava doce e lânguida. Teve de parar várias vezes porque os lagartos gigantes pareciam surdos e mortos, muito embora olhassem para ela com olhos arregalados, torrando ao sol.

Óscar ainda se recordava do seu arrepio de vertigem, daqueles que se tem quando nos abeiramos das Niagara Falls ou dum armazém de pneus usados a céu aberto com 300×600 m de barriga, ao chegar pela primeira vez à Rosinha, que aliás não seria só quinta, mas também um refúgio e atelier para artistas, traçadores de palavras, escultores de plantas, amantes de animais e outras almas perdidas. (Perdidas do mundo que não delas próprias, diga-se. Todas haveriam de saber muito bem o que procuravam.)

Havia um frágil mas poderoso núcleo de três casas destelhadas e esventradas pelo tempo, à distância de umas dezenas de metros umas das outras, roídas por figueiras que se contorciam nas cozinhas e salas, entre restos de lareiras e pedaços de fornos, ainda com ecos de passos de criança e murmúrios de velhos, entrelaçando as suas folhas viscosas com as pequenas irmãs dos medronheiros, também plantados pelo vento e pelos animais que por ali passavam. Uma das casas, a maior e mais subida, parecia comandar a equipa.

E havia escavações que tinham a marca de javalis. O pó ferroso cobria tudo com um manto rubro, entretecido com folhas e figos podres.

Não os podiam comer, mas eram úteis à mesma. As figueiras não pareciam sofrer, como outras que tinha visto por aí, vestidas com folhas amareladas. Haveria água por ali, à distância vertical de uma dezena de metros, talvez menos, vertida em bolsas rochosas por fios de humidade vindos dos montes. Logo veriam.

E poderiam medir o tempo pela espessura do manto rubro, até mesmo saber quando choveu pela última vez, se quisessem, mas não queriam, afinal tinham-no deixado para trás, era como se não existisse, chegava-lhes apenas em murmúrios de recordações soltas e nos ciclos de luz e sombra dos dias, e era quanto bastava. O tempo era um animal estranho. Por vezes hibernava.

Sílvia estava sentada num pequeno tronco, medindo casas e plantas, respiração suave para não desafinar o silêncio, que se media pelo pio ralo de um melro, pousado a uns 50 metros. Parecia um Klimt magnífico, suave e contemplativa, como se dormitasse, mas de olhos bem abertos e avermelhada dos pés aos cabelos, que devolviam as manchas de hematita da t-shirt, que já fora de um anjo. Cautela: se alguém lhe riscasse um fósforo poderia arder, levando a paisagem consigo.

Óscar passeava uma haste de salgueiro em V espetada na barriga, circulando aos Ss à distância de vinte casas, olhando desconfiado para as pequenas trepidações, seriam reais?, um amigo tinha-lhe jurado que um lençol de água a puxaria para baixo de supetão, se pusesse o pé em cima, e que pesquisasse perto de fetos e antigos riachos, em zonas baixas, que era o que tinha feito toda a manhã.

Onde teria o homem de Ténéré ido buscar o salgueiro, não deveria ser antes a azinheira que percebia melhor as provações do sítio, ou seria ele próprio que não prestava para aquilo, talvez fosse melhor pedir outra vez ajuda à Sílvia, mas ela já lhe tinha dito, com poucas palavras, que precisava de um pouco de água para abrir os poros da pele, nem que fossem as borras de café do fundo de um poço seco, e que estava demasiado cansada para embalar salgueiros. Assim era fácil pintar um Klimt, pensou.

Antes de virem tinham partilhado um texto com os amigos e os amigos dos amigos. Começava assim: “Estamos a construir uma quinta num espaço belo e perdido na serra, no sul de Portugal. Será bem-vinda toda a ajuda para construir, plantar e obter energia do sol. Temos abrigo e comida…” Trocaram centenas de mensagens. O ponto de encontro final seria Ténéré, Valquírias.

Bem, parece que o primeiro podia vir agora mesmo a caminho. Não tinham tido visitas durante a semana. Sim, a Sílvia está aqui, é mesmo aqui. Óscar despiu a camisa e acenou com ela por instinto, como se o outro tivesse um telescópio.

Viram um homem dos seus 50 anos a descer um jeep velho, com ar suave e olhos negro-azeviche, com a pele acobreada, não sabiam se do sol se de nascença, que por vezes olhava de repente para trás, com um ar vagamente ansioso, como se tivesse despistado uma colmeia de abelhas.

«Marcelo, Marcelo Tabbara. Sou, como vos disse, especialista em redes. Vários tipos de redes. Também gosto de plantas e animais”. E apontou para caminhos de corta-mato, fiadas de pequenos pés de couves que já tinham pegado na pequena horta, uma sequência de stratocumulus no céu e, mesmo, aquilo que parecia ser um rasto de um jato, uma linha quase reta com uma estranha torção na ponta, lá bem em cima. Parecia estar a apontar para tudo à sua volta, com se já conhecesse tudo e tivesse alguma pressa, o que os divertiu um pouco.

Teria tempo para se explicar melhor, talvez com um branco fresquinho na mão, gelado não, porque ainda não tinham energia elétrica, mas já tinham montado um engenhoso sistema de evaporação que baixava a temperatura, à custa de uns litros de água salobra que conseguiram algures. Talvez logo à noite, quando viesse a brisa doce e pudessem ver os milhões de estrelas da Via Láctea, à luz de velhas lamparinas de azeite que tinham comprado em Valquírias.

«Marcelo, o nosso principal problema neste momento é conseguir água. Sabe alguma coisa disso?”

E ele fez um vago movimento de assentimento com a cabeça, como se não estivesse bem certo e precisasse de pensar. «Irei pensar nisso enquanto me mostram o sítio”. Bom, tempo para pensar era o que não faltava, pensou Óscar, com carinho, e passeou-o pelas ruínas, pela horta, pelas quatro tendas militares que já tinham montado, cor de caqui a condizer com o saibro e com as quedas de humor, e mesmo pelo pequeno jardim de aromáticas que Sílvia já tinha começado, pegando em pés de alecrim, alfazema, tomilho e segurelha, uns das redondezas e outros de Valquírias.

A estética dos cheiros de Sílvia parecia casar bem com as cores de Óscar. Queria fazer um sítio bonito, pois a alma precisava mais do belo do que do pão, desde que tivesse umas côdeas. Queria que Rosinha acolhesse as cores das almas e que as almas sentissem as cores e os cheiros da Rosinha.

À noite, enquanto bebiam o branco e mordiscavam o pão e queijo de cabra, Marcelo puxou do seu portátil. Tinha trazido consigo vários carregadores, que lhe dariam para dias de trabalho, se fosse necessário.

Ao fim de duas horas, enquanto conversavam, conseguiu aprontar o programa e fazer uma simulação. Introduziu dados como a densidade de ocupação de solo pelas plantas mais sequiosas, elevação do solo acima de uma linha de água antiga, cor média da vegetação e, mesmo, a humidade da terra. Tinha sais higroscópicos que poderiam ser úteis. Na verdade, trazia consigo maletas e sacos de couro carregados com centenas de pequenos objetos, muitos deles em caixas e frasquinhos, que Sílvia e Romão não conseguiam identificar, pelo menos à luz do azeite.

A simulação dava-lhe um mapa de cores, que indicava a probabilidade de ter água a pouca profundidade. Sílvia já se sentia a nadar em lençóis azul-turquesa, como o peixe-cego das cavernas, que tinha visto em aquários de um centro comercial, vindo do México. Passou a mão pelo braço, como se afastasse mosquitos.

No dia seguinte, em Valquírias, arranjariam os poucos instrumentos necessários. Marcelo passaria o dia a fazer medições. Óscar disse que ajudava.

Marcelo teve a epifania quando viu, sem aviso, um meteorito a sulcar o céu. Já não via estrelas cadentes há décadas. Essa fora, provavelmente, a razão por que perdera a mulher, que chegou a amar, à sua maneira. Tinha colocado a ciência acima de tudo, e viveu pouco. Nunca percebeu se não tiveram filhos porque não podiam ou porque ela não queria. Ayla, querida, onde estás? Os sais higroscópicos não mediam o amor, principalmente o que teimava em se esconder, trancado em águas-furtadas, entre livros e tubos de ensaio.

«Não há internet por perto, pois não?”, perguntou, olhando de relance pelo retrovisor. Óscar negou com a cabeça. «Tanto melhor, assim não me sinto tentado”. E contou-lhes uma inacreditável história que envolvia carris, aves, desaparecimento de aviões e roubo de dados.

Não perceberam metade, mas pareceu-lhes ouvir que ele tinha conseguido furar a segurança e desaparecer sem deixar rasto. Queria manter-se assim. «Deu um pouco de trabalho, mas creio que consegui. E aqui estou”. Viu um segundo meteorito em fogo branco, pelo canto do olho. Sílvia, essa, parecia procurar os olhos, que tinham caído na taça.

De manhã apareceu um casal de israelitas jovens que tinham passado quase um ano na região. Foi Óscar quem os recebeu. Sílvia foi-se com Marcelo. Queria apanhar ervas, que depois secava e guardava em frasquinhos, para fazer chás, pós, comprimidos e pomadas. Também queria apanhar mexicanus.

Aviv começou por dizer que os velhos kibutzin tinham morrido e que gostavam muito do novo país, que agora era o seu, e beijou Maya e o pequeno Alon, que percorria o sítio, perplexo. Às tantas foram os soldados das tendas que destruíram as casas, pensou. Parecia imaginar as figueiras a defenderem valentemente as casas, enterrando bem as raízes no chão e utilizando as folhas como escudos. Algumas estavam roídas. Foram as setas… Parecia ter sete anos.

Eram ambos engenheiros agrónomos, feitos na Faculdade de Agricultura da Hebraica, em Rehovot. Tinha sido o dono de uma tasca que lhes falou neles e que os trouxe. Puseram uma taça de falafels acabados de fritar em cima da mesa. Alon comeu dois em poucos segundos e Maya piscou-lhe o olho com uma ruga na sobrancelha, que só ele entendeu. «Desculpa, estava com fome”, murmurou, virando-se para Óscar, num português perfeito. «Fez a escola todos os dias”, disse o pai, e quebrou uma romã ao meio, que se vingou com um esguicho bem para o centro da lente direita dos óculos, que eram retangulares e estreitos, emprestando-lhe o sorriso tímido de Grossman.

«Acabei há pouco Até ao fim da terra e viajei com Ora até à Galileia”, comentou Marcelo, mordiscando um falafel. «Portugal é a nossa Galileia e trouxemos Alon connosco, Óscar. Posso tratá-lo por Óscar?” O sol levou-lhe a sombra, que o tinha tingido durante uns segundos.

«Se precisarem podemos ajudar na agricultura. E Maya cozinha bem. Foi ela quem fez os falafels”, riu-se. Ficou combinado que poderiam vir daí a uma semana. Ainda precisavam de água, de um gerador e de uma tenda maior.

Sophia chegou a Ténéré a meio da tarde. Guiava um velho Mercedes 190 sem ar condicionado e andava em círculos há duas horas.

Abria e fechava as janelas, mas não ajudava. Quando estavam abertas era como se soprasse o levante, soprado do Sahara, pensou, lembrando-se das Canárias, ou um vento diablo de Santa Ana, pelos relatos dos pais, que a tinham tido em San Francisco. Buddy, o pequeno labrador, tinha a língua pendurada, como num estendal de roupa. We’ll be right there, boy. E depois viu a espiral de fumo ao longe. Era só um traço, um tracinho bruxuleante, como se alguém fizesse um churrasco a 3 km, mas foi o suficiente.

Óscar tinha acabado de levar os novos amigos israelitas e passou por lá. Provava um branco às borbulhas, que lhe soube a água do mar gelada, e sentiu-se a furar as ondas bravas e geladas da Nazaré, de mãos dadas com a mãe, quando era puto. «Posso trazer-lhe também o pão e o queijo, senhor?”, sussurrou o dono. Entrou alguém e respondeu ao que parecia ser o seu nome, dito num inglês com um vago sotaque americano, que parecia envergonhado, talvez pelo desuso. «Óscar Romão, de Rosinha. Sou eu próprio. Encantado”.

E falaram durante umas boas duas horas. A primeira foi dedicada ao tempo, ao calor e a Buddy. Depois Sophia falou um pouco de si. Era médica e a decisão de deixar Sheffield foi lenta e dura. O ambiente no Departamento tornou-se irrespirável, depois de dois professores, o marido e um colega, Martin, nunca mais terem aparecido após um longo jantar. A história envolvia ainda um papagaio gigante, um chimpanzé, Tenerife e medicamentos tóxicos. Ainda hoje parecia que a chaminé deitava fumo, em dias com mais bruma, mas a polícia tinha esquadrinhado a cottage e só tinha encontrado restos de comida e garrafas de vinho vazias, uma delas meio-cheia.

Ninguém sabia para onde teriam ido, se é que foram para algum lado. Sim, conhecia bem Martin, e não era um psicopata. O marido era muito tradicional. Sim, claro que era possível. Ninguém sabia, na verdade. Fechou os olhos e viu Martin amarrado por um polvo gigante, no fundo do mar das Caraíbas, olhando espantado para cima, para os reflexos de uma palmeira, mas parecia respirar normalmente, como se fosse anfíbio, e esperar que lhe fosse servido um velho tinto Pauillac, que beberia durante todo o dia. Martin. Tinham-lhe dado leave por tempo indeterminado. Teriam querido apagar as sombras.

Bom, mas. Também gostava de tratar de pacientes. Ainda era nova e tinha mãos. Poderia fazer flores, casas, potes, batatas, ovos, mantas. Óscar abriu caminho e levou-a para Rosinha. Foi engolida por uma golfada de pó vermelho e não conseguiu ver o caminho. Mas viu um lagarto gigante a esconder-se rapidamente debaixo de uma árvore desconjuntada, com ar meloso e folhas amareladas. E foi tudo. Quase pararam perto de uma placa pintada à mão, dizia Rosinha, e tinha o perfil de uma mulher com ar intenso a beijar uma rosa, e umas palavras que gritavam “Deixem as sombras e sorriam. Tragam os vossos animais. Deixem os plásticos aqui”. E uma seta apontava para um pote castanho com um metro de altura, abraçado por catos.

Marcelo e Sílvia tinham acabado de chegar. Os bornais estavam cheios de plantas e folhas com etiquetas. As de Sílvia eram um pouco diferentes: tinham nomes em latim. Não se viam restos de mexicanus. Marcelo trazia dezenas de amostras de terra, que espalhou sobre uma mesa, ao lado de frascos com reagentes, blocos cheios de notas, mapas militares e rolos de fita métrica. Ainda trazia a máquina fotográfica ao pescoço.

Saudou Sophia, mas não falou muito. Trabalhou até ao jantar, com a ajuda de Sílvia. Por vezes paravam, para discutir cores e introduzir números intermináveis em folhas de cálculo, no portátil. Faziam ainda estranhas medições de áreas em fotos calibradas, no ecrã, tomando pedras e árvores como referências. Afagaram Buddy, que cheirava intensamente um dos bornais. «Óscar, vê se arranjas um biscoito a este jovem”. Sílvia não percebia uma das fotos. «Quais são as coordenadas desta, Mars?”. A língua já se lhe dobrava, quando pronunciava o nome. Passou a chamar-lhe sempre Mars.

A expetativa estava no ar, e o jantar foi simples e rápido. Acabaram por não saborear convenientemente o salteado de vegetais de Sophia, que tinha trazido mantimentos para uma infantaria. «Delicious, Sophia”, disparou Óscar. O jarro de branco fresquinho circulava de mão em mão, em pezinhos de lá, para não magoar o portátil. A noite punha-se, e acenderam as lamparinas.

Marcelo mostrou-lhes o mapa de cores. A área coberta tinha a forma de um pepino. Estava toda pintada a azul. Frio, demasiado frio. Azul, ali, não queria dizer rio, queria dizer seco. O pepino não tinha água. Mudou várias vezes os parâmetros e o azul só variava de tom, de azul-real a azul-céu, no máximo.

Não havia água. No water. Ninguém quis arriscar uma palavra e o tempo hibernou de novo. Não se ouvia um pirilampo. Uma estrela cadente caiu em cima da cigarra.

«Onde fizeste as medições?”, arriscou Óscar. «Lá em baixo, no vale. Descemos pelo carreiro, passámos a casa-fantasma e marcámos uma área onde está o riacho seco, 50 metros para cada lado. Pareceu-me o local mais provável”, disse Marcelo, enfiando o dedo no pepino. «Fica a cerca de 300 metros daqui”.

«E não poderemos estar bem em cima de um depósito de água, sem comunicação com o vale?”, arriscou Óscar novamente, mais para não deixar que o animal hibernasse de vez do que por convicção. «A floresta do lado sul pode estar seca e não alimentar o vale. Aqui parece haver água. Olhem para as figueiras». E todos, instintivamente, se abeiraram das árvores e passaram os dedos pelas folhas, pondo a nu o verde intenso, à luz das lamparinas. Óscar colheu amostras e deslisou para a mesa dos reagentes. «Sim, é possível”.

Óscar contou-lhes que tinha escolhido aquele sítio depois de ter varrido a pé hectares e hectares de terreno, olhando para árvores e arbustos e estudando os animais. Ouviu, cheirou e chegou mesmo a dormir em vários pontos. Aquele, onde estavam, tinha sido o sítio onde dormiu melhor.

«Amanhã podemos analisar este sítio e esta vertente a norte. Pode ser que a água escorra pelo monte e se acumule aqui”, e Marcelo apontou para o monte, onde as árvores, no entanto, eram mais raras e secas. Rosinha, de facto, era uma extensa massa ovoide, como se fosse uma enorme amêndoa pousada sobre um planalto, ancorada pelo monte e debruçando-se sobre o vale. No limite, a Rosinha podia ser uma extensa bolsa impermeável, obrigada por contorções tectónicas a ficar com a água só para si.

Sophia foi percorrida por um frémito de excitação e ofereceu-se para ajudar. Já se via a percorrer a área com bornais, máquina fotográfica e mapas. Pensou com nostalgia no telemóvel, mas logo afastou a ideia. Poderia usar a fotografia, mas não o GPS. Há vida para além do telemóvel, Sophia, e pensou em Martin, que também não teria o seu.

Marcelo, pensou, era um pouco parecido com Martin. Martin era britânico, é certo, e Marcelo era brasileiro, é certo, mas Martin era também escocês, tinha um avô turco e houve tempos em que tinha a pele escura. Os técnicos do Departamento chamavam-lhe mesmo, às escondidas, o pele-mogno. Pelo que Sílvia lhe tinha contado, os pais de Marcelo eram libaneses. Tinha uma pele acobreada, que pegava fogo aos olhos negros. Sim, os dois eram parecidos.

Recolheram às suas tendas, entretidos com a ideia de que amanhã seria o dia D de Rosinha. Ninguém, a não ser Sophia, reparou nos meteoritos que continuavam a cair, ou nos pirilampos que cortavam a noite, deixando traços esverdeados que pareciam frases em morse. O jogo, belo, podia degenerar em batalha, por vezes fatal. Algumas fêmeas atraiam os machos, para os comer.

Sophia deixou Buddy do lado de fora, dentro de uma caixa de cartão com uma camisola velha de lã a servir de forro. Deixou-lhe água e um par de biscoitos. Despediu-se com uma longa carícia. Nessas alturas ele oferecia-lhe os lábios molhados e beijavam-se.

Demorou tempo a adormecer. Levantou-se, abriu uma nesga da tenda e contemplou o céu. A Via Láctea varria-o de leste a oeste, com o seu arco de manchas prateadas, arroxeadas e azuladas, como se o pintor tivesse derramado tinta da paleta e gatinhado por cima dela, tossindo e espirrando bolas de cristal. Buddy levantou-se e tentou beijá-la de novo.

Ali estaria Martin, algures, ou pelo menos o seu espírito. Talvez se tivesse libertado do polvo e voado até ela, pairando na aragem morna e doce, lá em cima. Talvez, quem sabe, descesse por uns momentos. Beijou Buddy e voltou a entrar.

E sonhou.

Alguém, lá fora, estava a cheirar o pano da tenda. Raspava suavemente o chão e respirava pesadamente. Talvez fosse um animal de grande porte. Tinham-lhe falado em javalis, mas os ruídos vinham de cima. Não, não era um javali. Parecia o pónei que a tinha visitado à noite, enquanto acampava na New Forest, perto de Ringwood quando era jovem. Mas podia ser Martin. Ou o marido. Martin parecia estar preso por um polvo, lá bem longe nas Caraíbas. Parecia ouvi-lo a pedir-lhe ajuda. Ou seriam os suaves sussurros do amor? Teria descoberto a vida secreta do marido, lá na cottage? O marido parecia gostar de mulheres, mas, por aquilo que lhe tinha feito, já não sabia bem. Não, Martin não seria capaz. Tinha-lhe falado sobre İstanbul, a dança do ventre, Zehra… Tinha amado Zehra… Seria Marcelo? Marcelo era um verdadeiro explorador e poderia andar por aí, procurando água, procurando-a. Pareceu-lhe ver uma mão a entrar na tenda. Não, não era a pata de um cavalo. Martin, Martin! Quis gritar, mas não pôde. Não se podia mexer. Parecia presa, entalada entre duas tábuas. Tentou rolar e chegou à porta da tenda. Deu uma dentada no fecho. Buddy ladrou então, uma vez, várias vezes. Buddy estava ali! Socorro, Buddy!

E acordou.

No dia seguinte chamou Marcelo à parte e tomou o pequeno-almoço com ele, antes de partirem. Não lhe disse porquê. «Sophia, alguém se aproximou da tua tenda durante a noite? Ouvi o Buddy ladrar e pensei que… Pergunto isto porque senti algo estranho na minha. Alguém a respirar mesmo em cima da tenda…”, e olhou pelo retrovisor com um tique nervoso, como se fosse seguido. Sophia estremeceu e quase deixou cair o chá. Não tinha sido Marcelo. Good gracious, não tinha sido Mars! «Ia perguntar-te o mesmo, Mars. Também senti, mas pensei que tivesse sonhado. O Buddy ladrou, mas só depois de eu ter rebolado na tenda. Às tantas não foi nada, Mars, fui só eu a sonhar. Ou foi um pesadelo, não sei…”

Marcelo parecia inquieto. «Também não sei, Sophia. O Óscar contou-me que o teu marido desapareceu sem deixar rasto…”

«Pois, Mars, foi muito estranho”, e contou-lhe detalhadamente a história da cottage.

De repente sobressaltou-se. «Mars, acabei de pensar que pode ter havido mais. O Martin tinha-me contado, muito tempo antes, que pensava ter desaparecido durante uns dias numa estadia em İstanbul. Não o dava como absolutamente certo, mas tinha uma sensação muito vívida… Esqueci-me por completo disso!”, e engasgou-se com a excitação.

«O Martin nunca chegou a saber o que aconteceu exatamente, entre um jantar com uma bailarina no Bósforo e uma conversa com o dono de uma loja de especiarias no Grande Bazar. Apareceu simplesmente lá…” E descreveu-lhe a recordação, sem omitir detalhes.

«Chegou a dizer-me que admitia que o mundo está cheio de portas que não se veem, por onde algumas pessoas entram e saem… Que uma pessoa pode transitar para outra dimensão durante algum tempo… Na altura não liguei muita importância. Pensei que estava confundido…”

«Não é totalmente implausível, Sophia. Admito que possa acontecer a pessoas especialmente sensíveis e imaginativas, sujeitas a uma tempestade anímica… Penso que normalmente acontece durante períodos tão curtos que a grande maioria das pessoas à volta não se apercebe de nada… As outras não o referem porque têm receio de ser consideradas malucas…” E falou-lhe detalhadamente das suas investigações sobre o movimento de vesículas nas células, obre o efeito-túnel, sobre trajetórias de aves migratórias e, mesmo, sobre o desaparecimento súbito de pequenas naves aéreas.

“Tempestade anímica… Poderia ter sido uma espécie de alucinação coletiva?” Lembrava-se agora claramente de Zehra e da espantosa cena da dança do ventre.

«Sim, creio que sim, Sophia”.

«E o que é que pensas que pode ter acontecido na cottage, Mars?”

«Não sei muito bem, Sophia, mas pelo que me contaste pode ter sido uma revelação súbita, um sentimento de grande alívio, um choque de grande felicidade… Ou uma tremenda deceção, ou… O teu marido era de confiança?”

«Era um homem convencional, Mars. Mas sempre pensei que gostava de manipular as pessoas… Era neurologista e conhecia todos os detalhes do cérebro. Senti muitas vezes que me tentava manipular, mas nunca resultava bem…”

«Não sei, usava o olhar, a voz, as palavras, as mãos… Até mesmo os cheiros! Finalmente recorreu a drogas… Quase morri, Mars”. Os arrepios e flash-backs sucederam-se rapidamente, enquanto olhava fixamente para Sílvia, que preparava o equipamento.

«Pode ter sido algo desse tipo, Sophia. Parece que não sabes exatamente o que aconteceu quando saíram da cottage…”

«Não, ninguém sabe, Mars”. Fechou os olhos e viu de novo Martin abraçado pelo polvo, que agora se assemelhava ao marido, só que com mais braços e pernas, como o poderoso deus azteca Huitzilopochtli.

«Sabes uma coisa, Sophia?»

«Não, Mars. Diz…»

«Parece-me que o que temos de fazer é esquecer. Tu esqueceres Martin e eu esquecer Ayla».

«Mas o Martin pode precisar de mim, Mars…»

«Não, Sophia, nenhum precisa de nós. Creio que somos nós que precisamos deles…»

«O Martin…»

«O Martin pode ter querido desaparecer, Sophia. E sem deixar rasto. Tinha recursos para isso… Muita gente o faz, Sophia… Muitas pessoas não aguentam o papel que a vida lhes atribui. Como um mau papel numa peça de teatro…»

«Essas pessoas têm de mudar de vida, Sophia. Sem perder a face».

«Mas era a mão dele que entrava pela minha tenda, Mars».

«Impossível, Sophia. O Buddy teria dado por isso. Também a Ayla me bateu à tenda, mas não era ela…»

Era tarde e Sílvia esperava. Estava tudo pronto. Percorreram a grande amêndoa das casas e a vertente norte. Fizeram medições, tiraram fotos, escreveram notas e recolheram amostras. Tudo foi mais rápido desta vez.

A meio da tarde já tinham resultados. O primeiro mapa de cores deu-lhes uma enorme mancha vermelho-rosa. Quente. Havia água… Otimizaram parâmetros e apareceu-lhes uma amêndoa rubra. A água parecia estar confinada ao miolo das casas, da pequena horta e do jardim de aromáticas. A vertente norte estava seca. Discutiriam os resultados ao jantar.

Ao final da tarde apareceu o dono do Ténéré com uma mensagem curta que tinha acabado de receber. Dizia: “Sílvia e Óscar. Sou Julián, de Espanha. Sou arquiteto e estou um pouco cansado de fazer projetos já feitos. Aceitam colaboradores para construir? Posso fazer de tudo um pouco. Constroem em adobe e madeira? Posso levar alguns materiais comigo? Julián Canario”.

Óscar escreveu uma nota, para ser enviada do Ténéré. Que sim, que viesse e logo se veria. De preferência daí a uma semana, pois provavelmente já teriam água. Que a poupança de água seria a questão número um. Que a energia solar seria a questão número dois. Que todas as construções seriam feitas com materiais naturais, limitando os materiais industriais ao mínimo. Que não haveria plásticos. Que seria bem-vindo.

Pediu ao dono do Ténéré para lhe arranjar alguém para abrir um poço na amêndoa da Rosinha. Dar-lhes-ia a água doméstica. A Marcelo, Sílvia e Sophia pediu que alargassem a pesquisa de água à zona leste do vale, onde a vegetação era mais verde e onde poderiam construir a horta principal, evitando a contaminação do lençol da amêndoa. Até aí tinham vivido das suas poupanças para avançar com o projeto. Talvez pudessem, num futuro próximo, começar a trocar ou mesmo vender alguns produtos no Mercado da Comunidade.

Ao jantar comeram um prato feito por Sílvia e passaram a jarra de branco fresquinho de mão em mão. Beberam um pouco mais desta vez. Utilizaram tachos, garrafas vazias e colheres de pau para acompanhar a flauta de Óscar. Cantaram e dançaram. Alguns faziam-no pela primeira vez, mas resultou.

O portátil, no centro da mesa, projetava uma amêndoa rubra gigante. A água era mais dura do que se pensava. Festina lente sicut aqua…

Nessa noite não apareceram animais a cheirar as tendas. No entanto, pelo sim pelo não, tinham mantido uma fogueira acesa.

Buddy dormiu tranquilo e foi o primeiro a dar os bons dias.


Nota final: Com a história de hoje, José Pratas-Young encerra a primeira temporada da sua rubrica, “Olho de Hórus”. sinalAberto espera que em breve o autor esteja de volta com novas histórias e novas ficções da sua literatura fantástica.

Pode contactar o autor através de pratas-young@theyeofhorus.net .

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José Pratas-Young

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