Pandemia aprofunda a precarização e as desigualdades entre mães jornalistas no Brasil

 Pandemia aprofunda a precarização e as desigualdades entre mães jornalistas no Brasil

Markus Winkler (Unsplash)

Uma pesquisa efetuada durante o mês de agosto revela o esgotamento  das mães jornalistas, no Brasil. Os efeitos da pandemia mostram, ainda, as dificuldades em conciliar a vida profissional, o acompanhamento dos filhos e as atividades domésticas. O sinalAberto foi conhecer algumas dessas mulheres para lá da crueza dos números.

“Estafa decorrente do excesso de trabalho e atividades domésticas. Trabalho em tempo integral. As tarefas domésticas não têm fim. O isolamento é estressante e desgastante. Rotina pesada. Pressão extrema de todos os lados. Sobrecarga mental e psicológica”. Esses são alguns dos relatos apresentados durante uma pesquisa realizada pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) sobre as condições de trabalho das mulheres jornalistas que são mães durante a pandemia de Covid-19. De resto, 85,9% das mães jornalistas afirmaram sentir-se sobrecarregadas durante a pandemia.

A sobrecarga afeta mesmo as mulheres que compartilham responsabilidades com um companheiro.

A pesquisa realizada durante o mês de agosto revela que 82,3% das mães jornalistas têm filhos com idade inferior aos 11 anos, o que explica os relatos de esgotamento face à acumulação de tarefas e responsabilidades que têm de assumir, agora agravadas com a necessidade de acompanhamento do ensino em casa. A situação é tanto mais merecedora de atenção, quanto se ficou a saber que mais de 22% das mães jornalistas são as únicas responsáveis pelos filhos. E 26,7 % dessas mulheres são ainda responsáveis pelos cuidados de outras pessoas.

Juliana Marques pediu demissão da rádio em que trabalhava.

Coordenado pela Comissão Nacional de Mulheres da Federação, o levantamento contou com 629 participantes de todo o país e evidenciou um cenário vivenciado de maneira generalizada na categoria: o aumento da carga horária e o fato de as trabalhadoras estarem sempre à disposição dos empregadores como uma condição do home office (sem regulamentação suficiente), além da concentração do trabalho doméstico e do cuidado com os filhos.

Uma dessas mães jornalistas é Juliana Marques, 32 anos, que pediu demissão da rádio em que atuava, em março deste ano, para trabalhar em casa em função do aumento de casos de Covid-19 em Fortaleza, capital do Ceará. O Estado, que fica na região Nordeste do Brasil, é o terceiro no país em número de infectados e mortos pela doença causada pelo vírus SARS-COV-2.

Mãe do pequeno Levi, de 11 meses, ela temia ser contaminada e transmitir o coronavírus para seu filho. Mas assim como Juliana, pelo menos sete milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho brasileiro na segunda quinzena de março – de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) – demonstrando o quanto a pandemia tem aprofundado a desigualdade de gênero no país.

“Optei pelo desligamento por conta do medo de contaminação e também pela possibilidade de poder acompanhar meu bebê em trabalho remoto”, reforça a profissional, que teve dois abortos espontâneos antes do nascimento de Levi. Empregada numa agência de assessoria de Comunicação, Juliana completou seis meses em isolamento e teletrabalho, vivenciando, nesse período, a experiência da recente maternidade.

Juliana conta que tem adaptado sua vida aos novos tempos. Como o pai de Levi trabalha o dia inteiro, durante a semana, ela divide os cuidados sobre o filho com uma babá. Mas a rotina é puxada e inclui conciliar os afazeres domésticos com o trabalho. “Enquanto o neném ainda dorme, tento otimizar meu tempo para organizar a casa e limpar. Quando ele acorda, coloco no carrinho, faço café da manhã, a babá chega e vou para minhas atividades do trabalho”, relata. Entre um expediente e outro, tempo que seria de descanso, ela aproveita para lavar as roupinhas do pequeno. Apenas no fim de semana, as atividades são divididas com o companheiro.

Mães, jornalistas, professoras e cuidadoras

Val Rodrigues: é difícil conciliar o trabalho de jornalista.

No Norte do Brasil, na capital do Tocantins, Val Rodrigues relata que com tantas demandas acumuladas, já está sofrendo abalo emocional e psicológico. Ela é mãe de Laura, 10 anos. “O imediatismo do mundo virtual, já tão exigente na nossa  profissão, tornou-se ainda mais intenso nesse contexto de pandemia. Somado a isso, tem o papel integral de mãe ampliado para o de auxiliar da professora nas aulas remotas. Agora, imagina lidar com tudo isso: trabalho, casa e escola, tudo ao mesmo tempo e no mesmo ambiente, e ainda ter que se organizar dentro de uma parafernália de telas e aplicativos para dar conta? Enfim, se já era necessário discutirmos essa normalidade construída em torno da sobrecarga de atividades no cotidiano das mulheres, agora se tornou ainda mais urgente”, conta.

Patricia Lucini, jornalista terceirizada em um jornal diário em Ponta Grossa, no Estado do Paraná, região Sul do Brasil, conta que trabalhou em home office somente por duas semanas, em abril. Desde então, se divide entre os cuidados com o filho Mateus, de quatro anos, as atividades domésticas e a jornada de trabalho presencial. Como as atividades escolares estão interrompidas por conta da pandemia, ela recebe ajuda da cunhada, que atualmente está em teletrabalho. “Eu fico com o meu filho de manhã, enquanto ela consegue adiantar o trabalho dela. Assim, à tarde, o meu filho fica com ela e eu vou para o jornal”, relata a jornalista.

Patrícia acompanha as atividades escolares do filho Mateus.

Para Patrícia, essa preocupação em relação ao bem estar do filho tem interferido muito na rotina. “Estou sempre tentando me organizar para que durante o tempo em que passo com ele, eu não fique tão preocupada com as coisas da casa e do jornal. Eu me preocupo também em manter as atividades que a escola envia e para fazer com que a rotina dele não se torne cansativa. Tudo isso acaba também impactando na minha rotina de trabalho. Quando chega a hora de ir para o jornal, eu já estou cansada antes mesmo de começar a trabalhar”, desabafa.

A pesquisa revela ainda que além de cuidar dos próprios filhos, 26,7% das jornalistas que são mães também passaram a cuidar de outras pessoas durante a pandemia, inclusive de idosos e acamados. Uma parte significativa das mulheres que respondeu ao questionário, 22,4%, é de mães solo, ou seja, que são as únicas responsáveis pelos filhos.

De acordo com Paula Zarth Padilha, diretora executiva da FENAJ, integrante da equipe de sistematização dos dados e entusiasta da pesquisa, o levantamento ilustra o quanto a atividade de cuidado é quase que exclusiva das mulheres. “Ressaltando que entre as mães jornalistas que contam com rede de apoio, a maioria das pessoas com quem dividem os cuidados com relação aos filhos é do gênero feminino”, lembra, observando que mesmo entre as mulheres que estão compartilhando a responsabilidade sobre os filhos com os pais, quase 86% das participantes afirmam estar sobrecarregadas.

Precarização do trabalho feminino

A pesquisa com as mães jornalistas revela que pouco mais de 59% dessas profissionais estão trabalhando em home office (59,78%), mas uma boa parcela destas mulheres também estão exercendo suas atividades profissionais em regime misto, mesclando trabalho remoto com atividades presenciais – condição que acaba potencializando a exposição ao risco de contágio pelo novo coronavírus.

Esse medo, Patrícia conhece bem. “Além do trabalho ter aumentado, a carga psicológica e de estresse sobre nós, mulheres, é muito maior. Isso sem considerar o medo que a gente tem de estar trabalhando, saindo e se expondo ao risco. Existe um medo de acabar pegando a doença e de afetar as pessoas que moram com a gente, principalmente, o filho. Então, a gente trabalha diariamente com esse risco e esse medo”, declara.

Outro aspecto preocupante para as mães jornalistas é o financeiro. Embora 57,82% das mulheres que participaram da pesquisa não tenham sofrido alterações salariais durante a pandemia (no Brasil, uma lei federal autorizou a redução da jornada associada a cortes salariais pelos empregadores) cerca de 7% delas estão desempregadas. Algumas, inclusive, chegaram a mencionar, durante a pesquisa, a necessidade de abdicar da própria atividade profissional para preservar o trabalho e a renda do companheiro nesse período.

“Mães jornalistas apontam que o acompanhamento escolar dos filhos e as atividades domésticas contribuem para gerar sobrecarga”.

Entre as participantes do estudo, 15,1% também revelaram que precisaram recorrer ao benefício da renda emergencial oferecida pelo governo brasileiro devido à pandemia. Entretanto, uma parcela significativa das jornalistas acabou solicitando o auxílio financeiro, mas sem ter conseguido o acesso ao recurso.

A falta de suporte para o exercício das atividades jornalísticas também foi relatada pelas mães jornalistas que estão em teletrabalho. Não bastasse a ampliação das horas dedicadas ao trabalho, a rotina de cobranças, cursos e de uma infinidade de reuniões, muitas trabalham com os próprios recursos sem qualquer ressarcimento por parte dos empregadores; o que inclui computadores, smartphones, internet, energia elétrica, entre outros.

Sobrecarga invisível

Ainda conforme o relatório da Comissão Nacional de Mulheres da FENAJ, uma das principais questões evidenciadas pela pesquisa é a maneira como a invisibilização da sobrecarga de gênero penaliza as mulheres, especialmente, em face à ausência de políticas públicas e de ações práticas de enfrentamento.

Sobre isso, Paula Zarth Padilha enfatiza que as condições de trabalho modificadas pela pandemia escancaram a necessidade de regulamentação do home office, de buscar a equidade no ambiente de trabalho e de reflexão sobre os rearranjos familiares. “Mesmo com tantas dificuldades, a maioria dessas mães jornalistas não é favorável ao retorno das atividades escolares de forma presencial neste momento. Por isso, olhar para as condições de trabalho das mulheres, neste momento, acaba sendo também um esforço de proteção ao trabalho e de preservação dos direitos da infância e juventude. São questões muitos amplas para continuarem sendo ignoradas”, manifesta.

A Comissão Nacional de Mulheres da FENAJ encaminhou os resultados da pesquisa aos Sindicatos a ela filiados para que possam orientar possíveis medidas que tenham também como objeto a preocupação com as questões de gênero no trabalho. A pesquisa foi enviada ainda a órgãos de proteção ao trabalho como um esforço para chamar a atenção para a realidade das mulheres trabalhadoras, que não é exclusiva, mas se acentua, no contexto da pandemia.

O valor da informação e a pandemia

Se por um lado a pandemia evidencia a sobrecarga sobre as mulheres, por outro, é preciso reconhecer que, mesmo em meio de tantas dificuldades, muitas das jornalistas ouvidas durante a pesquisa têm contribuído ativamente para tentar reverter o cenário de desinformação. Medida que se configura como um esforço de enfrentamento ao que a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem chamando de ‘infodemia’, em referência à onda de fake news, mentiras e boatos envolvendo o novo coronavírus.

A jornalista Patrícia Lucini, assim como outras participantes da pesquisa, acredita que as pessoas têm passado a compreender a importância de obter informações mais precisas durante a pandemia. “Embora muitos governos, muitos políticos e mesmo algumas pessoas estejam buscando cada vez mais atacar jornalistas e o jornalismo em si, eu acredito que o jornalismo vem para mostrar que a informação ainda é uma das maiores ferramentas que a gente tem; que a informação realmente pode mudar a nossa vida no dia a dia, porque ela pode ajudar a transformar a nossa realidade a curto e longo prazo”, reflete.

Texto integral do relatório e conclusões do inquérito: https://fenaj.org.br/maes-jornalistas-sao-mulheres-esgotadas-pela-sobrecarga-de-trabalho-na-pandemia/

Colaboraram na reportagem Rose Nogueira e Samira de Castro.

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Aline Rios

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