Pandemia e territórios de espera

 Pandemia e territórios de espera

É frequente questionarmos o caráter disruptivo ou de continuidade da pandemia pelo SARS-Cov-2. Sabendo que esta deve ser pensada em múltiplos tempos e analisada segundo diferentes escalas geográficas, perguntamo-nos se, no médio ou longo prazo, seremos confrontados com uma realidade nova e inesperada ou se, pelo contrário, nos iremos deparar com uma aceleração de tendências que já se anunciavam no passado.

Sobre o futuro pouco sabemos. Ainda que se notem algumas linhas que se vão traçando e que podem perdurar, talvez possamos antecipar o menos arriscado, que este deverá ser incerto e imprevisível. Seja como for, com mais ou menos tecnologia, com um mundo mais fechado e regionalizado ou, pelo contrário, mais aberto e globalizado, as novas vivências continuarão a cruzar o tempo com o espaço, agregando temporalidades e espacialidades variáveis. Significa isto que continuaremos a experienciar a vida de múltiplas formas, a partir de lugares diversos, com cartografias pessoais individualizadas.

Estreitando o foco de análise no imediato, são muitas as evidências do que se alterou no nosso quotidiano. Em tempos de aceleração, fluxos rápidos e mobilidades espaciais, a pandemia levantou obstáculos ao movimento, ergueu barreiras, intensificou o efeito de atrito num espaço que é agora mais rugoso. Ainda assim, já antes das primeiras respostas securitárias à dispersão do vírus, o admirável mundo novo do movimento infinito era caraterizado por dinâmicas plurais. Os espaços de circulação do capital, da informação, das mercadorias ou das pessoas não tinham a mesma porosidade. Eram mais planos e fluídos nalguns casos, mais restritos e lentos noutros, em particular com as correntes migratórias de populações mais vulneráveis.

Neste mundo giratório mas fragmentado, geógrafos como Rogério Haesbaert já nos tinham alertado para as (i) mobilidades, que expressam a coexistência, por vezes mesmo a proximidade espacial, de quem se movimenta com facilidade e de quem não o pode fazer. A esta desigualdade no capital de mobilidade, a pandemia vem acrescentar uma outra: a desigualdade no acesso ao confinamento. É também Haesbaert quem nos orienta nestas geografias: para que alguns possam proteger-se e permanecer confinados, outros devem movimentar-se. A proteção dos que se podem fechar e abrigar-se nos territórios de proteção só é possível com a exposição e a deslocação de outros, nas áreas da saúde, em serviços básicos como a segurança, entregas ao domicílio, telecomunicações, manutenção de infraestruturas de água, saneamento, eletricidade, entre outras.

Antes da pandemia, também o geógrafo Alain Musset e o historiador Laurent Vidal nos ajudaram a entender a complexidade desse globo em movimento. Estes autores destacaram as heterocronias, as velocidades contrastadas, as interrupções, as barreiras e as espaço-temporalidades de paragem e espera que sempre se atravessaram nesse mundo simplificado que muitos reduziram à aceleração.

United Nations (Unsplash)

Destes autores, retenha-se o conceito de territoires de l’attente – lugares de paragem e interrupção dos fluxos. Trata-se de territórios e não simplesmente espaços de espera, porque não são realidades neutras, mas vividas, atravessadas por acontecimentos, relações de poder e, com frequência, pressões e potenciais conflitos. Nas experiências de paragem, inverte-se o sentido da globalização. Nesta, precisamos menos tempo para alcançar mais espaço. Nos territórios de espera e confinamento, encurta-se o espaço e estende-se o tempo. Assim acontece nos campos de refugiados ou nas colunas de migrantes bloqueadas por uma muralha de arame farpado. Assim aconteceu nas territorialidades tensas dos militares que, n’ O Deserto dos Tártaros (de Dino Buzatti), viveram uma longa espera por um inimigo incerto.

Os territórios de espera fazem parte do nosso quotidiano. A paragem em frente a um semáforo também o é. Nesse caso, na tecnológica smart city que parece tudo solucionar, a contagem eletrónica dessa espera pode aliviar a pressão sentida pelos automobilistas. Em tempos de pandemia, o confinamento em casa é isso mesmo: um encurtamento do espaço e um alargamento do tempo. Neste território de espera, aguardam-se o fim do recolhimento obrigatório e as garantias de segurança para lá do limite doméstico.

Entretanto, não havendo transgressões, vive-se um quotidiano de saídas intermitentes e reguladas, com rearranjos territoriais no espaço familiar: onde se trabalha e coloca o computador? Qual o domínio de cada um dos membros do agregado (se for esse o caso)? Onde se garantirá alguma privacidade? Nestes territórios de espera, vive-se, trabalha-se, descansa-se, escreve-se, cria-se, comunica-se, gerem-se tensões e potenciais conflitos.

Ao mesmo tempo, as redes wireless mudaram a geografia da casa. Descentraram o espaço doméstico e permitiram a dispersão. Contudo, sobretudo nas áreas urbanas, este espaço pode ser curto, as distâncias estreitas e as possibilidades de expansão limitadas. Neste ponto de vista, a pandemia põe a descoberto outra desigualdade: a qualidade do confinamento. Nem todos os territórios de espera são iguais- em superfície útil, luminosidade, horizonte visual, espaço livre protegido do exterior, serviços básicos, acesso a redes.

Com efeito, mais que um perímetro muralhado que pode garantir a segurança perante as ameaças pandémicas, os territórios de espera mais privilegiados são nós ligados a redes topológicas, transnacionais e multiterritoriais. Ao mesmo tempo que, à porta, se recebe a refeição entregue pelo restaurante de proximidade (por um estafeta ‘móvel’ que não se pode confinar), pode estar-se numa sala virtual que reúne, no mesmo ecrã, outros territórios de espera dispersos pelo mundo.

Nesta pandemia, a casa não é o único território de espera, e não nos referimos ao semáforo, que ali continua, a regular um trânsito mais intermitente. Neste tempo já longo, a espera atravessa outras espacialidades, algumas efémeras, outras mais persistentes: nalguns dias em Portugal, doentes acamados em ambulâncias estacionadas em linha, nos caminhos de acesso às urgências dos hospitais; as filas de quem aguarda a entrega de botijas de oxigénio em países como o Perú e o Brasil; a espera confinada em automóveis na fronteira entre Portugal e Espanha ou na coluna de veículos pesados que aguardavam o atravessamento do Canal da Mancha em direção a França; a espera vivida pelos passageiros travados nos aeroportos por não transportarem um teste covid válido ou pelo cancelamento de um voo; a espera sem data marcada num território limite: os cuidados intensivos de uma unidade de saúde.

Mika Baumeister (Unsplash)

Esta espera vive-se também em espacialidades mais pulverizadas e líquidas: a espera por uma decisão judicial que agora se protelou; a espera pelo acesso aos serviços de saúde em doentes não covid; e, só mais um exemplo, a espera pela administração da vacina que protege da Covid 19. Neste caso, essa espera estará definida por um conjunto de critérios, mas é possível desenhar atalhos, imprimir velocidade e chegar mais cedo. O tempo longo da espera pode ser encurtado e acelerar o acesso. Nestes territórios de espera, as relações de poder, as redes de amizade, os strong ties (de Granovetter) que reforçam laços de filiação e favor, criam uma cartografia de acessibilidades paralelas e indevidas. O mundo hiper-regulado trouxe a infracção. Produzir a regra, implica gerar o transgressor.

As desigualdades de acesso à vacina abrem um mundo de ideias criativas. A partir de Inglaterra, uma empresa de turismo de luxo colocou no mercado uma viagem paradisíaca ao Dubai, destinada a potenciais viajantes com mais de 65 anos. O tempo de estada, num hotel de sete estrelas, será o suficiente para a toma das duas doses. Também aqui não há nada de novo. É certo que o turismo abriu oportunidades em muitos lugares do mundo. Também é verdade que a monocultura do lazer aumentou as vulnerabilidades e as viagens potenciaram a deslocação do vírus. Contudo, é um facto que esse mesmo turismo sempre reservou corredores privilegiados e abriu frentes de exceção.

Entre paragens e acelerações, esperas e avanços (devidos ou indevidos), a COVID 19 nada significou de novo num mundo que tende para a polarização. Ainda assim, trouxe acrescentos empíricos e veio enriquecer o corpo teórico dos territórios de espera. Quase sempre, as dinâmicas destes territoires de l’attente refletem o que de mais subterrâneo existe nas relações de poder. Sem o ter presenciado, Foucault antecipou muito do que hoje acontece.

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02/02/2021

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João Luís Fernandes

Geógrafo. Professor do Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade de Letras de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra.

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