Pano cru
Esta é uma profissão múltipla. Crescemos com o pano cru e o engradado, a lutar contra a cedência ao mau-trato, pode enfolar, por vezes, enfunar. Foi o caso do engradado rosa, da casa do Dandin, que dandinava a cauda como os patos, criatura já da estirpe do Lopakine – andam aí na campanha, em grande, são seus herdeiros e querem crescer. Os pós-modernos descobrem que, afinal, os Lopakine eram o futuro necessário – o pragmatismo é manteiga no focinho do dono –, assassinos de árvores, o progresso – há lopakines encenadores, enceradores ou o que seja, e encenações mediatizáveis, luxuosamente provocatórias e dedilhadas de modo interactivo, assim era o elefante que workshopava danças de salão no Novo Banco.
Todos têm direito à vida, aconteça o que for às arribas, à paisagem, à formatação das cabeças, ao passe social para fazer passar a mensagem da igualdade tupperware. Já os apertos se fazem na distância social a que a intimidade obrigada oblige.
Foram muitos anos de pano cru até dar com o ciclorama democratizado. O que era peça única de algodão, tecido em teares que teriam tamanho para 16 metros de largo, desaparecera, agora eram plastificados. E o que não será? A começar pelos sorrisos em distribuição de empatias obrigatórias. Como se fazem carreiras e empregos, e subidas aos cumes da fama? A glória é uma coroa de palha metalizada na cabeça dos marqueteiros de ocasião, sempre à procura da nova pasta de dentes, do novo PRODUTO pessoa.
O que não poderá ser mais branco que o branco? Não esquecendo o marfim, a cor marfim. O elefante é outro, nas reservas já não há canho suficiente para se embebedar e perder a memória, a famosa memória de elefante – refazer o mesmo trilho de 2000 quilómetros no regresso a casa, vindos do Malawi, depois do silêncio das G3… Não pensem que pinto, foi mesmo assim. Mesmo que o calar das armas nunca venha para ficar, o negócio não cessa, o fluxo da violência está indexado ao dólar, aos recursos, ao modo imperial de saquear terceiros.
Esta é uma profissão do caraças, os nossos aristocratas são marceneiros, as nossas rainhas costuram, os nossos corpos dançam em arames solitários, equilibristas de aventuras próximas e guardamos na memória as vertigens coleccionadas.
Andamos pelo mundo tanto quanto os seus mapas são textos, a última rapariga escritora é canadiana e ensina as antígonas a fazer caminhos de excepção nas rotinas quotidianas. Assalariada de ensinar Grego. Vinha de dialogar com o meu sócio judeu sefardita argelino, cuja irmã nova-iorquina se mudou para a Califórnia, será porventura mais argelino de aspecto o seu sol. Isso bate-nos na mente. Ficção? Isso escreve ele sobre a violência imanente. O assédio que convém à notícia não é excepcional, é comum e a notícia necessita de excepcioná-lo. O que regra a normalidade é a violência, de todos os tipos – o que cria profissões –, que estatui o dia-a-dia; é o seu resultado, a violência dá forma ao real, forma-o. A das imagens não é a menor em intensidade, em insanidade, o que uma coisa é leva a outra. Apanhas com um cachorro-quente gigante à entrada de uma auto-estrada e espirras, pois, logo que te chega a mostarda ao nariz. É assim. E alçar a perna e mijar onde a lei proíbe é só para privilegiados. São livres de morrer pelo traço que, em arco, o dourado que a urina transporta desenha no vazio. Atenção que a videovigilância estava lá, gaita multada. É o imposto do fora de sítio. Este estado de sítio normalizado é o único que dita regras. Há semáforos para todos os passos e decisões. As indecisões são doença, psicanalisam-se, psiquiatrizam-se, psicologizam-se, vulgarizam-se psicoterapias várias. Os baptismos nas pias já se fazem sem água-benta, qualquer pH serve a santidade futura, o negócio é subliminar e mete-se no que respiras: vives em estado de consumo permanente, os olhos são escravos de imagens; só estragando-as, não de traço négligé, mas de arte bruta. Isto de penteados é bom para sebes.
É uma profissão do caraças. Não é apenas esta coisa de soletrar Grego num parque em que os baloiços são para adultos; é, num estrado, pôr o mundo transladado em rotação neuronal. Alguns monólogos são como a água que os furos procura e que vai fugindo para mais fundo. Falam lá de um profundo escuro e são cegos à luz do dia, pensam táctil e os pensamentos aquecem esse frio polar que a solidão traz, mesmo no extremo tórrido do magma fabril do interior da crosta; sob a crosta e sob a camada que se lhe segue. Civilizações por camadas, os arqueólogos sabem disso, nem todos são da CIA, como no Touche pas à la femme blanche!, ali ao Les Halles. Aí, nesse interior absolutamente irrespirável e negro, a cabeça monologante escrutina a biografia no baço do espelho da cegueira esclarecida. O que vê um cego? O que o não cego não vê por estar ofuscado pelas luzes que comandam; os faróis são como lanternas, têm mãos acopladas.
Também nos damos com projectores. Portanto, são a nossa luz, manejamo-los. Nesse caso, não somos os coelhos ofuscados – bem, já não há, morreram de chumbo e febres hemorrágicas!
Somos nós que a parimos, a penumbra, como as sombras; o chapão, como o rosto sem feições que se leia, os sem-rosto, os rostos dominantes, os ecrãs que os cabeleireiros e as mises – em place cimeira – tecem para engodo da massa olhante, mais folhada ou menos folhada, amassada. O mundo dos fãs é um formigueiro caótico, as migalhas já não são o que eram.
O que mais custa – custa? – é andar como o caracol que toca violino, o do Chagall, com a casa às costas; não para morar, mas para fingir que lá se mora o tempo do espectáculo. Nos cenários minimalistas, podemos contar sempre com o nada; é suposto que alguém construa a casa na sua cabeça. Os alicerces são responsabilidade espectadora. Uma gaveta faz o móvel, uma lâmpada o lustre, o remo a travessia do Atlântico, um trapo uma bandeira, o chão um palmo de terra, uma cova, o futuro.
Aprendemos desde cedo as medidas, o que cabe e o que não cabe; a fazer contas ao vazio; a medir o espaço somando mão e passos, o famoso metro que todos têm entre pernas. Há nisso alguma magia, pois o pernilongo e a perna curta só com algum diálogo convencionam a mesma medida na perna diferente. Isso é o sentido da complementaridade, da equipa, a traçar vias. O que se faz neste emprego em que os corpos ficcionam a partir das suas imperfeições – não é feio/bonito, é o a mais ou a menos, o sem, o foi-se, o nunca teve medida.
As medidas imperfeitas é que nos fazem felizes. Felizes? Que pífio andar, essa palavra no meio da saliva, a luzir estrelinhas de pechisbeque – pechisbeckett? Não, eu não, não há, há.
Os nossos prazeres são mais terrenos e sem horizontes de expectativa, de pôr-do-sol requentado e nada redondos, gema de ovo biológico. Orgasmos? Os não síncronos e polilogados. Nada mais tribal que esta profissão. Um tribalismo ecuménico, sem tribo. As complementaridades electivas são de livre encontro. Como o movimento do paquete na borda do cais. A acostagem explica-se pela atracção dos corpos.
Somos um barco e quarteladas, o Quixote e o Pança, Buster Keaton, Groucho, End of the beginning e o silêncio da estepe. AMãe e Marccucio, oPai, A Dança da Morte, um sistema de vasos comunicantes, o que não seremos? E somos a morte de regresso nos diálogos de mortos, do Luciano à A Paixão do Jardineiro, escrita a partir de um trágico fait-divers. E a actriz que fazia de judia, será estranho, mas era tão real que sofria de xenofobia. Devia ter sido ela a envenenar o skinhead tosco que a mata. Estranhas curvas tem esta estrada sempre por fazer.
Estranho, mesmo quase impossível, é dar a ver a extraordinária inteligência afectiva daquele que nasceu sem defesas, sem violência, numa pura entrega ao respirar e à palavra umbilical.
Também por aí entramos. Segredo. Segredo é, de facto, dar voltas aos mundos numa casca de noz. E inventar salários.
28/01/2022