Panteão elitista?…

 Panteão elitista?…

Eça de Queiroz no Panteão Nacional? (cnc.pt)

A casa da democracia entendeu (e bem) dar guarida nacional de Panteão aos restos mortais do escritor Eça de Queiroz, expoente máximo do realismo de feição naturalista em Portugal.

Sendo o Parlamento o intérprete fiel da democracia portuguesa, entende-se a sua decisão como justa, por se tratar de alguém que elevou o nome da Pátria aos níveis da excelência, projectando-a no Mundo, através da tradução das suas obras em várias línguas.

Sendo assim, António Eça de Queiroz deixaria a sua segunda morada póstuma no cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião (a primeira foi no Alto de São João, em Lisboa), para se juntar à imortalidade espiritual do Panteão Nacional, justificando a honra de uma vénia aos visitantes da História.

O Panteão Nacional, situado na zona histórica de Santa Clara, na cidade de Lisboa, ocupa o edifício originalmente destinado para a igreja de Santa Engrácia, acolhendo os túmulos de grandes vultos da História Portuguesa. (patrimoniocultural.gov.pt)

A trasladação ficou marcada para depois de amanhã (27 de Setembro de 2023), passando a data a figurar nos anais honoríficos de quem cuida das suas memórias e do passado ilustre de um país que pretende dar aos vindouros razões sobrantes de orgulho e de honra.

No entanto, apesar de a maioria dos descendentes directos de Eça de Queiroz ter optado pelo “sim” à trasladação dos restos mortais do escritor, uma minoria optou por se opor, por meio de uma Providência Cautelar1, decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo, que suspendeu o acto.

A razão invocada (soube-o através de uma entrevista com um dos seus netos, transmitida num canal de televisão) é que não faria sentido que Eça de Queiroz, figura ilustre da nossa literatura, ficasse ao lado de uma fadista (Amália) e de um futebolista (Eusébio)!…

Adaptação televisiva do romance homónimo de Eça de Queirós, “A Tragédia da Rua das Flores”. História da trágica paixão de Vítor e de Genoveva, no quadro do meio burguês da sociedade lisboeta dos finais do século XIX. (arquivos.rtp.pt)

Pareceu-me pobre a razão, para além de triste e doentia. Pareceu-me, também, que este descendente do escritor interpreta o lado mau da História e, provavelmente, não terá lido com atenção “O Crime do Padre Amaro”, “As Farpas”, “A Tragédia da Rua das Flores” ou “A Capital”, porque se o tivesse feito descobriria as virtudes do realismo (ou, melhor, do naturalismo): a escrita sem medo da verdade; a palavra simples e directa de quem não teme pela revelação da vida escondida; a importância que Eça de Queiroz teve na “transformação” da escrita, fazendo com que ela passasse a ter as vantagens acacianas do discurso do Conselheiro e as imagens invulgarmente nítidas e expostas do padre “pecador”; para além da crítica social que escorre das brilhantes páginas que escreveu.

Já agora, porque vem a talhe de foice, lembro quem me lê que o Panteão Nacional alberga, entre outros, os restos mortais de escritores como Almeida Garrett, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro, João de Deus, Sophia de Mello Breyner Andresen e de outros imortais de várias áreas que ajudaram a escrever a História de Portugal.

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Nota da Redacção:

1 – O Supremo Tribunal Administrativo considerou, hoje (25 de Setembro), sem efeito a providência cautelar apresentada por seis descendentes de Eça de Queiroz para evitar a trasladação do escritor para o Panteão Nacional, mas a Assembleia da República vai suspender a cerimónia que estava marcada para depois de amanhã.

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25/09/2023

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Fernando Correia

Fernando Lopes Adão Correia nasceu em 1935. É jornalista, autor e comentador de rádio e de televisão. Começou na Emissora Nacional, aos 19 anos, e passou pelo Rádio Clube Português, pela RDP, pela TSF-Rádio Jornal, pela TVI, pelo jornal vespertino A Capital, pelo jornal O Diário, pelo Record e pelo Jornal de Notícias, com textos publicados em vários outros jornais e revistas. É autor de 43 títulos, entre os quais se destacam os recentes livros: “E Se Eu Fosse Deus?”, “O Homem Que Não Tinha Idade”, “Piso 3 – Quarto 313”, “Diário de Um Corpo Sem Memória”, “São Lágrimas, Senhor, São lágrimas” e “Um Minuto de Silêncio”. O seu próximo livro (a publicar) chama-se “A Mística do Tempo Novo” e é um ensaio filosófico, de auto-ajuda e acerca da construção do Homem Novo. Dos programas que realizou e apresentou na rádio destacam-se: “Programa da Manhã”, “De Um Dia Para o Outro”, “Falar é Fácil”, “Lugar Cativo” e “Bancada Central”, título que, agora, recupera no jornal sinalAberto. Deu aulas de Ciências da Comunicação e de Sociologia da Comunicação no Instituto Piaget, na Universidade Autónoma de Lisboa (como convidado), no centro de formação Palavras Ditas e na Universidade do Algarve (também como convidado).

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