Pão na porta de casa

 Pão na porta de casa

(© MDR)

Podem tirar o rapaz do campo, mas não podem tirar o campo do rapaz. Por isso, dei por mim a pensar nos tempos em que o padeiro passava e deixava o pão, ainda quente, num saco na porta de casa. Um luxo! Pão amassado nessa madrugada, por alguém que dedica a sua vida a isso, e não descongelado num forno anónimo de uma cadeia de supermercados. Resultado do esforço de alguém que aprendeu uma arte e que disso vive. Um serviço “rural” – quem vive fora de um centro urbano não consegue passar pelo supermercado – que hoje poderia ser vendido como uma coisa de luxo.

(www.jornalosemanario.com.br)

Aliás, já que a História é feita de repetições, até me surpreende que ninguém tenha pensado em fazer algo equivalente. Olhamos para fast food e pensamos em McDonalds ou em pizza, mas, se esticamos a definição para comida comprada na rua para consumo rápido, existe uma história imensa. Estando em Londres no século XIX, já se podia comprar um fish and chips. E, se continuarmos a caminhar no tempo, na Roma Antiga também já se podia comprar comida rápida. Imaginem o modelo de negócio Deliveroo/Uber Eats, mas em quadriga. Assim, a entrega de pão quente não seria mais do que um regresso ao passado.

(br.freepik.com)

Contudo, nem precisamos de ir tão longe: não saber quem nos presta serviços básicos é algo mais recente, pelo menos, para a classe média. Conhecer e ser conhecido por quem nos amassa o pão cria uma relação diferente do que uma compra sem falar com ninguém. Uma máquina a girar não se preocupa por quem vai comer o resultado. Uma pessoa que sabe que vai receber elogios – ou insultos – pela qualidade do seu labor, sim, vai preocupar-se. Esta ligação é a diferença entre uma relação e uma transação. O dono de um talho vai vigiar para que não lhe roubem nada, mas vai também ter a confiança de vender fiado toda a semana e cobrar ao domingo. Um supermercado, por outro lado, vai colocar alarmes na mais pequena das coisas quando chega o aperto.

Outra figura que hoje existe mais numa aplicação do que na vida real é a do biscateiro, alguém que faz pequenos arranjos em casa. Antigamente, era preciso conhecer alguém que viesse resolver problemas elétricos ou de canalização em casa. Hoje, abrimos uma app edamos uma vista de olhos nos comentários de desconhecidos online, assumimos que são de confiança e selecionamos alguém. Essa pessoa chega, entra, sai, sem sabermos nada dela.

Carteiro António Duarte, no Largo da Freiria, em Coimbra.
(questoesnacionais.blogspot.com / O Despertar)

Nunca recebemos tantas coisas em casa como hoje, mas nunca conhecemos tão pouco quem as traz. Com a covid-19, até se recomendou manter a porta fechada enquanto entregavam algo. O carteiro, que faz a sua ronda e sabe quem somos, é cada vez mais uma raridade. Cartas até nem são o principal, observando que a casa já nos chega tudo: roupa, computadores, comida. Nem isto é novidade. Ainda sou do tempo – como dizia o outro… – em que passavam senhores numa carrinha que servia de mercearia ambulante, para nem falar das carrinhas de gelados da Family Frost. A evolução tal foi que, agora, podemos pedir antes e receber só o que é preciso. Este tipo de vendedores prestava também outros serviços, desde passar novidades até transformar cheques em dinheiro vivo, sem ter de passar por um banco. Entre uma coisa e outra, ainda se trocavam dois dedos de conversa com os vizinhos.

Atuais caixas de correio do Reino Unido, em que o monograma real da II (caixa de correio à direita) e outro exemplo das caixas de correio ainda com o monograma real do Rei George V (caixa de correio à esquerda). (Foto por Mike Cattel – pt.astelus.com)

Nunca abrimos tanto a porta a desconhecidos, mas nunca os deixamos entrar, o que, de muitas maneiras, torna as nossas vidas mais pobres. Muito do que são novidades modernas, não passam de iterações de coisas que já existiam antes, se bem que cada vez mais automáticas e com menos contacto humano. No Reino Unido, era comum deixar um caixa com prendas ou uma gorjeta para o carteiro e para os homens do lixo, um pequeno gesto de agradecimento pelo serviço prestado durante o ano. Nada melhor que a quadra natalícia para recuperar estes sentimentos e viver com mais interações e menos transações.

05/12/2022

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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