Papiniano Carlos (1918-2012): poeta livre e insubmisso
Papiniano Carlos esperou 56 anos pela Primavera. Aguardou pela Revolução dos Cravos (Revolução de 25 de Abril de 1974) durante mais de metade da sua longa vida, que começou lá longe, em Lourenço Marques, capital da então colónia de Moçambique, a 9 de Novembro de 1918. “Papi” partiu há 10 anos, no dia 5 de Dezembro de 2012. Tinha 94 anos. Deixou uma singular obra literária e legou-nos um exemplar e honrado combate pela Liberdade.
Filho de um militar, Papiniano Manuel Carlos de Vasconcelos Rodrigues deixou aquela que é hoje a livre e independente Maputo, quando tinha 10 anos. Acompanhado da sua mãe, passou a viver no Porto e aí frequentou sucessivamente os cursos de Engenharia, de Físico-Química (que conclui, deixando apenas por completar o estágio como professor, por se recusar a assinar a declaração em como não perfilhava ideais comunistas ou subservivos) e de Geofísica, este último em Lisboa.
A recusa de Papiniano Carlos em assinar tal declaração impediu-o de leccionar e fez dele um intelectual banido. OPortugal dos sem-instrução, dos sem-trabalho, dos sem-casa, dos sem-futuro perdeu um professor, mas ganhou um aliado.
Um cidadão-escritor insubmisso que “ergueu-se acima da oratória, com vibrante generosidade e algum desdém pelas artes poéticas, e teve larga influência em poetas ulteriores”. Tal qual assinalou Jorge de Sena, outro “intelectual banido pelo regime de Salazar, cunhado de Mestre Óscar Lopes, também ele acossado pelo regime fascista”.
“Esboço” (em 1942) foi a primeira obra de Papiniano Carlos a ver a luz do dia. Por pouco tempo, pois foi proibida, a mando de Salazar. A censura não calou o escritor. Bem pelo contrário! Assinou algumas das obras mais marcantes da nossa literatura. Eis algumas: “Estrada Nova. Caderno de Poemas”, com capa de Júlio Pomar, que a PIDE(1) também apreendeu; «Canto Fraternal”; “Canto de Amor em Hiroshima”; “Canto para Guevara”; “Ergue-te, Escravo!…”; “Camarada Morto na Cela”; “Caminhemos Serenos”; “Balada para um Menino Morto”; “A Ave Sobre a Cidade”; “Mãe Terra”; “Os Ciclistas”; “Os Olhos Me Doem, Federico”, dedicado a Lorca; “Canção do Semeador”; “Mãe Terra”; “Língua Imortal”; “Menino na Fábrica”; “O Bailado de Salomé”; “Os Companheiros na Manhã”; “Versos para o Primeiro Galo do Povoado”; “Sol de Fogo”; “Todos os Nossos Bombardeiros Regressaram à Base”; “Vossos Nomes”; “O Grande Lagarto da Pedra Azul”; “Sonhar a Terra Livre e Insubmissa”; “A Rosa Nocturna” e “Terra com sede”, que, como disse Baptista-Bastos, reúne alguns dos mais “belos contos do neo-realismo português”. Em 1997, o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, na cidade de Vitória (capital do estado de Espírito Santo, no sudeste do Brasil), deu à estampa “A Palavra Revelada”, um pequeno livro onde reuniu alguns poemas inéditos desse que “é um dos maiores nomes da moderna lírica portuguesa”.
Pouco dado a frequentar os “salões literários”, Papiniano Carlos influenciou, contudo, escritores e poetas. Foi e é admirado por muitos daqueles que fazem a História da Literatura Portuguesa. Luandino Vieira, que ganhou e recusou o Prémio Camões, em 2006, por “motivos íntimos e pessoais”, é um deles. Apesar de ter conhecido Papiniano Carlos a escassos anos antes da sua morte (que ocorreu em 2012), Luandino saudou-o assim: “Boa tarde, Poeta!”
O encontro entre Papiniano Carlos e o autor de “Luuanda” – a obra premiada em 1965, pela então Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), hoje Associação Portuguesa de Escritores (APE), que levou a PIDE a invadir e destruir a sede da SPE – aconteceu em Penafiel, creio que em 2009. Luandino e Papiniano eram os autores em destaque de uma feira do livro organizada por uma instituição de apoio a crianças diferentes daquela cidade. Cruzaram-se à entrada do recinto. Testemunhei o que agora e aqui conto.
Papiniano e Luandino ficaram por ali, largos minutos, à conversa. E vi-lhes admiração mútua, apesar de até aí as suas vidas nunca se terem cruzado. O escritor luso-angolano conhecia bem e tinha profunda admiração pela Obra do Poeta-Cidadão, que, tal como ele, tinha raízes africanas.
Por esses dias, eu era um dos editores de Papiniano Carlos. Tinha reeditado “O Cavalo das Sete Cores” e “O Navio” (em 2006), com ilustrações de Fedra Santos. E, um ano depois, também reeditei “A Viagem de Alexandra”, com ilustrações de Elsa Lé. Duas obras essenciais da Obra de Papiniano Carlos para a infância. Livros em que, segundo Ana Margarida Ramos (2), “realidade e fantasia” se entrelaçam e o Poeta revela “um olhar enternecido e sempre cheio de esperança sobre as gerações mais novas”.
A apresentação de “A Viagem de Alexandra”, que ocorreu na portuense Farmácia do Padrão, foi feita pelo escritor César Príncipe, que foi meu camarada na Redacção do Jornal de Notícias e amigo pessoal e instramissível de Papiniano. Dela cito a seguinte passagem: “A Viagem de Alexandra faz-nos mergulhar nas águas buliçosas e profundas que nos correm nos vasos capilares, nas veias e artérias e que nos poderão transportar de Lourenço Marques de 1918 ao Porto de 2008, seguindo a existência do autor. Quem quiser identificar um capitão-de-mar-e-paz de pulso férreo nos Cabos das Tormentas da História e do Quotidiano, deve escutar os seus cânticos de todas as idades. Deste Poeta de Utopias Realizáveis e deste Prosador de Encantamentos Demandáveis se poderá dizer: nunca vacilou ante a afirmação do Homem Íntegro e Integral. Não decepcionou os que (há milhões de anos) encetaram a senda da verticalidade. Ele, Escritor Erectus e Cidadão Alevantado.”
Contudo, “A Menina Gotinha de Água” é a sua obra mais conhecida junto dos seus “queridinhos amiguinhos”, tal qual Papiniano Carlos gostava de considerar os seus leitores mais jovens. O que não espanta, se se tiver em linha de conta o que escreveu José António Gomes em “Papiniano Carlos – Para o teu aniversário mando-te um cravo vermelho”, livro editado pela “Modo de Ler”, em 2008, e que serviu para assinalar os seus 90 anos de vida, numa homenagem pública que teve como entidades parceiras a Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP), o Ateneu Comercial, o Círculo de Cultura Teatral/Teatro Experimental do Porto–TEP, que “Papi” serviu como dirigente, a Cooperativa Árvore, a UNICEPE–Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, a União dos Resistentes Antifascistas e o Sector Intelectual do Partido Comunista Português.
Diz José António Gomes: “Convém lembrar que a atracção de Papiniano Carlos pelo universo infantil não se manifesta apenas nos livros que escreveu para o público mais jovem. A criança marca presença ao longo de toda a obra, quer em poemas como a Infância – comovida evocação da meninice do poeta vivida em África – quer noutros versos em que deparamos com imagens de meninos recém-nascidos, os quais representam, para o sujeito lírico, a firme certeza da renovação da vida, um sinal de esperança num futuro melhor (veja-se A um recém-nascido e Os meninos nascem…)”
Após a edição de “O Cavalo das Sete Cores” e de “A viagem de Alexandra”, passei a privar, amiudadamente, com Papiniano Carlos. Entre um e outro cigarro, “Papi” ia desfiando episódios de uma longa e singular vida tendo como companhia o enorme e robusto cacto plantado no jardim da sua casa, em Pedrouços, na Maia. E muitos foram os quilómetros que percorremos para participar em sessões com grandes e pequenos leitores. Apesar da sua idade e do cansaço provocado pelas deslocações e sessões de apresentação dos seus livros, nunca ouvi a Papiniano um só lamento. Bem pelo contrário!
“Papi”, que (como membro do Conselho Português para a Paz e Cooperação) realizou inúmeras viagens internacionais, privou e fez amizade com alguns dos mais conhecidos nomes da cultura e da política: Pablo Neruda, que conheceu em Paris, quando o Nobel da Literatura ali foi embaixador do seu amado Chile; bem como Amílcar Cabral e Isabel Allende, viúva do presidente chileno Salvador Allende, assassinado às ordens de Pinochet; além de Luís Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, e de Marcelino dos Santos, o Poeta Kalungano, então embaixador itinerante da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).
Por cá, Papiniano Carlos esteve sempre na primeira linha de combate contra a ditadura. Foi o clandestino “Garcia”, que socorreu e acolheu perseguidos políticos em sua casa. E foi um daqueles bravos que integrou, em 1969, a lista de candidatos da Oposição Democrática ao lado de nomes como os de Teixeira de Sousa, de Francisco Hortas, de Joaquim Felgueiras, de José Cardoso, de João Arnaldo Maia, de Virgínia Moura, de Zeferino Coelho e de Armando Castro, advogado e investigador cujo centenário do seu nascimento foi assinalado em 2018.
Papiniano orgulhava-se da sua amizade sem mácula com Virgínia Moura e António Lobão Vital. Também com Ferreira de Castro, Miguel Torga, José Régio, Jorge de Sena, Fidelino Figueiredo, Arnaldo Mesquita, Amândio Silva, Ruy Luís Gomes e Joaquim Namorado, entre outros; e que foram intelectuais brilhantes num país a preto-e-branco, recheado de um povo sem instrução, faminto e miserável.
O poeta era um humanista, um “Poeta de Utopias Realizáveis”, como diz César Príncipe. E a quem eu via um brilhozinho nos olhos quando confessava a sua alegria em ter poemas seus musicados por Fernando Lopes-Graça e cantados por Carlos Mendes e Luís Cília; igualmente, com a gravação de “A menina gotinha de água”, a que Carmen Dolores deu voz, e com o filme realizado por Alfredo Tropa, numa produção da RTP.
Papiniano também disse alguns dos seus poemas em disco vinil editado por Arnaldo Trindade – esse bom burguês, comprometido com a vida, a quem devemos a gravação de muitas das canções do Zeca Afonso, do Adriano Correia de Oliveira ou do Samuel, quando era necessária coragem para o fazer.
Conheci Papiniano Carlos no, há muito, extinto Café Rialto, no Porto. Ali, “Papi” partilhava a mesa com Egito Gonçalves, Daniel Filipe, António Rebordão Navarro, Ernâni Melo Viana e Luís Veiga Leitão. Todos eles grandes poetas e cidadãos exemplares, que nos deram “Notícias do Bloqueio” – cadernos de poesia, de que foram editados seis fascículos até a PIDE os tirar de circulação.
Papiniano Carlos foi um grande escritor e a sua obra é um “Arado Luminoso”, que – conforme escreveu José Viale Moutinho – lhe garante “um lugar de destaque nessa extraordinária arte, que Daniel Filipe tão bem sintetizou como sonhar a terra livre e insubmissa”. Foi isso que ele foi: livre e insubmisso.
Um homem inteiro (ou íntegro) que enfrentou a censura e a repressão; e que, tendo nascido dois dias antes do fim da Primeira Guerra Mundial, escutou os ecos da Guerra Civil Espanhola, os da Segunda Guerra Mundial, os das guerras da Coreia e do Vietname, os das lutas dos povos pela emancipação do jugo colonial e do imperialismo, em Moçambique, em Angola, na Guiné-Bissau e noutras regiões do Mundo.
Urge ler e reler a sua obra. Dar a conhecer os seus livros às novas gerações. Sobretudo, agora que as aves negras do fascismo voltam a ameaçar-nos. Só assim seremos dignos do seu legado e honraremos o seu exemplo. “Caminhemos Serenos”, com Papiniano Carlos:
Ao tempo, Olívia de Vasconcelos foi a terna e eterna companheira de Papiniano Carlos. Uma força da Natureza que, numa das vezes em que “Papi” seria interrogado, na sede da PIDE, no Porto, ali ficou à porta, gritando para quem passava: “O poeta Papiniano Carlos está aqui preso!” Perante a denúncia firme de Olívia de Vasconcelo, os “pides” outro remédio não tiveram do que o libertar algumas horas depois.
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Notas da Redacção:
1 – Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), em acção entre 1945 e 1969, que reprimia todas as formas de oposição ao regime do Estado Novo. Entretanto, a 24 de Novembro de 1969, foi oficialmente criada a Direção-Geral de Segurança (DGS), que manteve as mesmas funções da antiga PIDE.
2 – Ana Margarida Ramos é doutorada em Literatura e professora catedrática do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro.