Para que serve uma entrevista?
O jornalista João Adelino Faria tem sido alvo de sucessivas críticas e ataques devido ao modo e ao tom com que, na RTP, tem vindo a fazer as entrevistas aos candidatos à presidência da República. O conselho deontológico do sindicato dos jornalistas já teve de apreciar, de resto, três queixas que apoiantes da candidatura de André Ventura lhe fizeram chegar. Durante as entrevistas, os candidatos pedem menos interrupções e que os deixem terminar o raciocínio. O jornalista insiste em intervir e cortar a palavra aos seus interlocutores, para discordar do que dizem, ou para pôr em causa afirmações dos entrevistados. No essencial, importa discutir se uma entrevista é um combate entre entrevistador e entrevistado, e até onde e como deve o jornalista comportar-se durante esse encontro; em suma, perceber o que se pretende com uma entrevista e para que é que ela serve. E ainda o que pode perder-se com ela.
O escritor Jorge Luís Borges, que não apreciava muito dar entrevistas, disse certa vez numa delas: “avaliam-me pelas entrevistas […], mas o que se diz depende mais ou menos das circunstâncias, do momento, do humor, mas eu sinto-me responsável, sobretudo, pelo que escrevo e não pelo que digo ou me fazem dizer.”
A expressão “me fazem dizer” tem implícita a ideia de que a entrevista é um jogo, em que alguém, o entrevistador, quer forçar ou levar o seu interlocutor, o entrevistado, a dizer ou assumir algo que ele não deseja. Por outras palavras, essa tal afirmação, esse dizer à força, corresponderá, no fundo, a uma declaração feita contra a própria vontade.
Embora respeitando quem assim pensa e, sobretudo, o seu direito a apenas dizer aquilo que quer expressar, o que importa saber é qual o objetivo e razão de ser de uma dada entrevista e que informação e conhecimento novos se pretendem obter com ela. Isto, na perspetiva de que se olha para a entrevista jornalística como uma oportunidade para se conhecer mais e melhor as ideias, o pensamento e o trabalho do entrevistado. Nesta perspetiva, “uma entrevista não é a busca da verdade absoluta, antes a busca da verdade do entrevistado”, como escreve Adelino Gomes, no prefácio ao livro de entrevistas feitas por Carlos Vaz Marques aos microfones da TSF, em “Pessoal e transmissível”, e posteriormente editadas em livro. Uma entrevista, em síntese, deve ser entendida como uma oportunidade em que o jornalista deseja saciar a sua sede de conhecimento do entrevistado, no pressuposto de que essa motivação não é um fim em si mesmo, mas um laborioso processo através do qual são revelados aos cidadãos — para quem o jornalismo é feito — os detalhes mais relevantes e, eventualmente, menos conhecidos, do entrevistado.
Não há nada de especialmente novo no que se está a afirmar. Em 1913, quando esteve a cobrir a revolução mexicana, John Reed fez sete extensas entrevistas com Pancho Villa, em Chihuahua, que publicou na revista Metropolitan e no New York World, através das quais deu a conhecer aspetos desconhecidos da personalidade e caráter do revolucionário mexicano. Das entrevistas feitas por Reed sobressai, evidentemente, o lado cruel de Villa para com os rivais, mas, ao mesmo tempo, são evidenciados outros aspetos, como o seu “lado bondoso e democrata, para quem estar do lado dele era estar do lado do povo”.
Para John Reed, que foi um revolucionário, como se sabe, o trabalho jornalístico não visava ser um processo ou instrumento de confirmação das convicções e ideias próprias, mas antes um caminho que iluminasse os acontecimentos sobre os quais escrevia ou, como no caso de Pancho Villa, mostrasse através das entrevistas realizadas a complexidade e as contradições de um líder que até então era uma mera caricatura jornalística reduzida a alguns clichés e slogans, como o de “Napoleão mexicano”.
O seu objetivo, portanto, foi ir além das aparências, das frases feitas e do consenso que via naquele líder uma figura patusca e risível, para procurar nele a essência do seu caráter e personalidade. A boa entrevista, portanto, é a que se preocupa em conhecer a fundo o pensamento do entrevistado, e não deseja travar um debate com ele. Caso contrário, para que se quer ouvir uma pessoa, se não for para a escutar e perceber o que pensa e tem a dizer? O que implica, evidentemente, que se façam todas as perguntas que se impõem e que sejam relevantes. Mais: “o entrevistador inteligente aceita de bom grado que o protagonista da entrevista não seja ele, mas o entrevistado”, aconselham as boas práticas profissionais e defende o investigador Niceto Blázquez, na sua obra, “Ética e meios de comunicação”.
Com demasiada frequência, no entanto, considera-se a entrevista como se ela fosse um jogo em que uma das partes está interessada em arrancar tudo do outro, independentemente dos contextos e das circunstâncias — e do próprio entendimento sobre essas mesmas circunstâncias. O que interessa, nesses casos, é o efeito final: a frase-panfleto, o juízo precipitado, a exclamação assassina, a contradição distraída, em suma, a entrevista como entretenimento ou espetáculo e menos como oportunidade para um conhecimento mais qualificado acerca da pessoa — do que ela é e o que ela representa.
Parecem coexistir nesse jogo dois tipos de atores: o profissional, aquele que vive de fazer perguntas, e o amador, o que é procurado como matéria-prima para a moldagem desse produto ou conteúdo chamado entrevista, cujos contornos estão, muitas vezes, antecipadamente esboçados.
De um lado, portanto, temos o predador, aquele que vai à caça das falhas, das contradições e é capaz de provocar erros no discurso ou pensamento do seu interlocutor, e, do outro, a presa acossada que, face aos ataques que lhe movem e às armadilhas no percurso, esconde como pode as suas fragilidades, ensaia uma frase menos penteada, exibe o gesto defensivo não estudado, as hesitações… etc. O profissional assim retratado corresponde, como se sabe, a uma forma indesejável, dir-se-á mesmo anti-deontológica, desprestigiante e nada ética do jornalismo, porquanto descura a essência da sua profissão, que é melhorar a qualidade do conhecimento e da informação, para se dedicar à prática de atos acessórios, incluindo a sua autopromoção, que nada têm que ver com o ADN da sua atividade profissional.
É sabido, no entanto, que há várias tipologias de entrevista. Aquela sobre a qual estamos a falar é a entrevista política, por incidir sobre atores e protagonistas que têm nela a sua principal atividade. Mas certamente não estaríamos agora a focar-nos no tema, caso ele não tenha vindo a suscitar na opinião pública as mais diversas e contraditórias reações e leituras, em consequência do modo como João Adelino Faria vem conduzindo, na RTP, as entrevistas aos candidatos à presidência da república.
O assunto, aliás, já mereceu a apreciação por parte do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, em consequência de três queixas que lhe chegaram contra a atuação do jornalista. No essencial, as críticas e acusações feitas classificam o jornalista de “hostil”e “agressivo”, sublinhando que ele interrompia frequentemente o candidato (referindo-se a André Ventura, de cuja candidatura partiram as referidas queixas) e fazia “repiques provocatórios”.
Do mesmo, aliás, já os apoiantes de João Ferreira e de Marisa Matias se tinham queixado publicamente nas redes sociais — com mais expressão no FB da candidatura de Marisa —, embora nenhum dos candidatos tenha visto no comportamento do jornalista motivos para apresentarem queixa ao Conselho Deontológico. No caso de Marisa Matias, sublinhe-se, ela mesmo referiu várias vezes durante a entrevista, com alguma paciência e espírito desportivo, perante as constantes interrupções, que se a deixassem concluir o raciocínio… E o mesmo, é justo dizer, se passou com João Ferreira.
Ora, é justamente isto que tem de estar em causa: tempo e espaço para a expressão de ideias e conclusão do raciocínio. A ansiedade que o entrevistador coloca em cada pergunta e em cada interrupção, fazendo uma espécie de zapping a meio de cada resposta para introduzir um comentário, uma nova pergunta, um trejeito, um olhar maroto para a direita baixa (refiro-me ao tique nunca corrigido de olhar de soslaio para a câmara) sempre num tom e intensidade de voz pouco adequadas, chegam até a cansar o telespetador que raramente consegue ficar a saber o pensamento completo e estruturado de cada entrevistada(o). Há momentos em que a entrevista é um autêntico bombardeamento de frases e perguntas, como se fosse um torneio de trivial pursuit, um combate discursivo, uma luta pelo uso da palavra.
Tal espírito de intervenção de João Adelino Faria é, de resto, confirmado pelo Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas que, no comunicado emitido no sábado (dia 19/12), em resposta às queixas apresentadas, argumenta que “o entrevistador assumiu em todas elas um posicionamento bastante interventivo”.
Quer isto dizer que o jornalista tem mantido um comportamento coerente, pelo que a sua atuação corresponde a um traço impressivo da sua forma de fazer entrevistas, e não a uma qualquer animosidade para com algum(a) dos candidatos, o que significa que o modo ríspido com que interrompe e se dirige aos seus interlocutores, entre outros detalhes, traduz o seu entendimento sobre esta prática profissional. Donde, se insiste na questão central que colocamos: para que serve uma entrevista política? Mesmo sabendo que diante do jornalista está alguém que se preparou para aquele momento e que é uma parte muito interessada no processo.
Nos anos 70, quando William Colby era diretor da CIA, a jornalista italiana Oriana Fallaci (cujos trabalhos foram marcantes entre as décadas de 60 e 80 do século passado) iniciou assim o diálogo:
— O senhor Colby é religioso?
— Sim muito. Sou um escrupuloso católico praticante.
— Dos que assistem à missa todos os domingos de manhã?
— Isso mesmo. Desde sempre.
— Dos que acreditam no paraíso e no inferno?
— Claro, evidentemente. Acredito em tudo o que diz a Igreja. Porquê?
— Por nada. Fale-me da Mafia. Do uso que a CIA faz da Mafia.
E perante a surpresa e hesitação do entrevistado, Fallaci contra-ataca com firmeza diplomática: “não me vai mentir, precisamente quando acaba de me confessar a sua condição de crente”.
Ou ainda, quando a mesma jornalista entrevistou Henry Kissinger, durante a administração Nixon, e iniciou assim a entrevista, a propósito da guerra no Vietname:
— Está dececionado, como a maioria das pessoas, senhor Kissinger?
— Porque haveria de estar dececionado?
— Porque embora tenha dito que a paz estava ao alcance da mão, a guerra continua como antes e pior que nunca.
Também temos bons exemplos, em Portugal. O mais representativo, atendendo ao grau de dificuldade e à especial sensibilidade que o tema e o entrevistado exigiam, é o encontro em fevereiro de 1998, de José Pedro Castanheira com o antigo inspetor da PIDE, Rosa Casaco, que era, de resto, procurado pelas autoridades policiais portuguesas. O repórter do Expresso consegue fazer uma entrevista notável, colocando todas as perguntas que se impunham e que os leitores desejariam que fossem feitas, mas sem jamais ter ocupado o papel de juiz. E, todavia, tinha à sua frente um criminoso responsável pelo assassinato de Humberto Delgado e da sua secretária.
Que dizer, ainda, dos muitos encontros e entrevistas de Truman Capote com os dois assassinos da família Clutter, na pacata Holcomb, no Kansas, que viria a dar origem à sua mais conhecida obra, “A sangue frio”? O que moveu Capote para esta empreitada que lhe levaria seis anos de trabalho foi menos o crime de uma família inteira, mas antes entender aqueles dois homens: quem eram e como eram, para, no fundo, nos mostrar como é ténue e complexa a fronteira entre o crime e o que se designa por uma vida normal. Será que, hoje, o tempo da informação ansiosa é incompatível com a respiração de um pensamento pausado? Será que o jornalismo mais preocupado em perceber o que está verdadeiramente em causa, e menos no espalhafato de uma frase ou de um gesto, como se tudo não passasse de um normal show de televisão, está irremediavelmente ultrapassado?
Sendo a entrevista jornalística uma “invenção” de meados do século XIX, a entrevista política tem a sua primeira experiência conhecida com Andrew Johnson, que sucedeu a Lincoln, e que foi o primeiro chefe de Estado a aceitar submeter-se às perguntas de um jornalista. Daí para cá, com muitas mudanças de estilo e de forma, a entrevista política ganhou uma relevância indiscutível, que ganha especial destaque em períodos eleitorais. Mais uma razão para querermos saber para que serve e, por extensão, o que se pode perder com ela.
No atual contexto de pré-campanha eleitoral, cumpre-se o ritual e a exigência democrática de perguntar e ouvir aos diferentes candidatos o que propõem e como se posicionam perante diversos aspetos da vida nacional e internacional. Importa, assim, questioná-los sobre matérias que preocupam os cidadãos e que os jornalistas, no lugar deles, têm o dever e a responsabilidade de colocar. Nesse sentido, talvez seja mais profícuo querer saber como um candidato a presidente, sendo eleito, pensa lidar com fenómenos como a xenofobia, o racismo e a ascensão da extrema-direita na sociedade portuguesa, do que andar às voltas sobre se se daria ou não posse a um hipotético governo coligado com o Chega!. Aos milhares de desempregados e precários talvez interesse mais saber se vai haver no Palácio de Belém uma pessoa verdadeiramente preocupada com as situações dramáticas que vivem e as suas causas, do que debater filosoficamente o futuro da TAP com base em cenários especulativos. Por muito relevante que o assunto possa ser — e é. Mas como discutir seriamente e tão insistentemente uma matéria de cujos detalhes se sabe ainda tão pouco, além de que o seu destino e rumo pouco dependem da ação do presidente.
Claro que não descuramos o óbvio: a política feita por profissionais é hoje pensada, preparada e encenada com minúcia de cirurgião. Em fevereiro de 2002, o The Guardian publicou um relatório secreto feito pelo gabinete de imprensa de Tony Blair, sobre as simpatias políticas e o capital de influência de perto de 30 jornalistas e comentadores britânicos que mais escreviam sobre ele e o seu governo. Mesmo em Portugal, há muito que os “homens do Presidente” ou do primeiro-ministro, antes de importantes prestações televisivas, discutem ao pormenor as posições das câmaras, como cada líder pode ou não ser mostrado, como deve vestir-se e até como mostrar-se descontraído e sorridente. E, por vezes, discutem-se e negoceiam-se ainda os temas que fazem ou não parte do debate ou da entrevista.
Na verdade, as assessorias preparam e treinam o político antes de cada entrevista. Sobretudo se for televisiva. Tais cuidados deveriam merecer do entrevistador igual cuidado e preparação. Se cada candidato é um caso, isso implica que o jornalista tem de saber ler cada caso, traduzindo isso na estruturação da respetiva entrevista e tendo em devida conta as especificidades do entrevistado, desde a sua capacidade de argumentação (e manipulação) ao tipo de personalidade que representa. Sem nunca perder de vista que a entrevista política não é um concurso televisivo, mas um espaço onde o objetivo é conseguir obter o máximo útil de cada um dos entrevistados, cuja opinião é a única que conta. Porque é para isso que é suposto os cidadãos desejarem ouvi-los — não contamos, aqui, com os apaniguados de cada candidato, cujos objetivos e análise da respetiva performance depende de critérios alheios ao jornalismo.
Se a razão de ser de uma entrevista (mais ainda em período eleitoral) é procurar, justamente, informar os cidadãos sobre questões relevantes da vida do país e do candidato, o jornalista deve em primeira instância saber ser um gestor qualificado e inteligente do tempo da entrevista — é incompreensível a normalidade com que se queixam da escassez de tempo. Depois, deve ter a perceção acerca da relevância e interesse público dos temas que escolhe levar para cada entrevista e como deve orientar o respetivo questionamento. Finalmente, mas não menos importante, quanto mais agressivo e ríspido for o entrevistador, mais defensivo ou fechado tenderá a ser o seu interlocutor.
Larry King, que entre 1985 e 2010 teve um programa diário de entrevistas na CNN, ao qual assistiam mais de um milhão de pessoas, exemplificou um dia numa conferência na universidade de Washington qual o pior início de uma entrevista. O entrevistado, disse ele, seria Osama Bin Laden e a pior forma de iniciar a conversa era esta: “Por que é que decidiu atacar as Torres Gémeas, matando tantas pessoas inocentes?”. Uma pergunta assim, tão agressiva, mesmo que justificada, argumentou King, iria matar a entrevista. A alternativa, exemplificou, seria usar um tom de voz cordial e curioso para perguntar: “Por que é que o senhor, nascido numa família privilegiada da Arábia, decidiu abandonar tudo e ir viver para as montanhas, em tão precárias condições?”…
Com esta fórmula, explicou Larry King, o entrevistado não se sentiria acossado e, mais importante, observaria como eu estava interessado na estória dele, em o conhecer; como ele era importante para mim.
Uma entrevista não deve ser, entenda-se, uma conversa de amigos, como se estivessem na esplanada do bairro. Pode ser, é desejável que seja, uma boa e interessante conversa. Porque no momento em que o registo deixa de ser esse para passar a ser a troca acalorada de argumentos ou as vozes se sobrepõem na tentativa, falhada, de se fazerem ouvir, o clima aproxima-se do combate verbal. E se numa entrevista há sempre muito a ganhar, a verdade é que quando ela não é bem dirigida e gerida, também se pode ficar a perder muito, com prejuízo evidente para os cidadãos.
O entendimento que este texto procura fazer sobre a entrevista jornalística e a sua razão de ser afasta-se, claramente, do estilo e tom até agora utilizados por João Adelino Faria. Estilo que se admite continue a manter, até porque no comunicado divulgado sábado passado, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas “insta a RTP e o jornalista em causa a seguir para as restantes entrevistas o mesmo estilo de questionamento e a assumir a mesma postura interventiva”.
Perante esta sugestão e incentivo, a ideia que subitamente ocorre é uma conhecida frase do professor Philippe Meyer: “Errar é humano, persistir no erro é jornalismo.”