Para que vivam o maior número de anos saudáveis

 Para que vivam o maior número de anos saudáveis

Existem dois tipos de discussão sobre a saúde, o que se passa dentro dos gabinetes e o que se passa cá fora, ao jantar, à mesa do café, entre amigos ou só conhecidos, entre trabalhadores, entre aposentados, entre mulheres e mulheres, entre homens e homens, entre homens e mulheres, e as mais combinações que se queiram arranjar. Nos gabinetes, embora se possa partir do princípio de que as discussões são atravessadas pelo que se passa cá fora, pelo menos implicitamente, os temas giram em torno da sustentabilidade, da eficiência, do orçamento, da rentabilidade, do equipamento, da lotação, da referenciação, das altas, dos recursos humanos, das escalas, das faltas, dos concursos, dos défices. Consoante a natureza do tema, isto passa-se tanto nos centros de saúde como nos hospitais, sejam os autores prestadores diretos ou indiretos.

Quando passamos as portas dos gabinetes e regressamos à rua, os temas são outros e são muito menos. Primeiro vem a doença de que se sofre, depois a espera para se ser tratado, este mais nos hospitais do que nos centros de saúde, embora não estejam imunes às filas que se começam a formar a formar a partir das seis da manhã; mas já vão rareando estes casos. Também entram às vezes nas conversas o modo como se foi atendido, desde que se entra no edifício até que se sai com a previsível solução no bolso.

Ambas os temas são pertinentes e embora não andem desfasados um do outro, raramente as velocidades com que são equacionados e resolvidos são aquelas que se exigiria para problemas com as características da doença. Embora a morte seja uma inevitabilidade universal, no momento da ocorrência é essa hipótese que se quer evitar porque se parte do pressuposto de que existem soluções ou para resolver ou para atrasar o desfecho fatal do problema em causa. Daí a viagem, desde a tomada de decisão, própria ou de outrem, de nos dirigirmos aos serviços de saúde, seja a pé, de carro ou de ambulância. E ao franquearmos a linha que divide o mundo tal como o conhecemos de uma organização muitas vezes desconhecida e onde se pode ir jogar o restabelecimento da saúde ou a morte, inicia-se um processo complexo porque, tratando-se de hospitais, se perde quase por completo a autonomia e a capacidade de escolher e decidir.

Mas ao tomar-se a decisão de se fazer a viagem, a tentativa de resolução do desconforto, da dor, da alteração da perceção do que ainda no dia anterior eramos iguais aos que nos rodeavam, foram tentadas várias maneiras de pôr termo ao que inquieta e se torna no foco de toda a atenção. São os designados auto-cuidados que, em muitos casos, põem termo à alteração percebida, noutros, ao cabo de várias tentativas, acabam por obrigar à viagem até um estabelecimento de saúde.

Tal como estão organizados, só se entra dentro dos estabelecimentos hospitalares públicos se os médicos de medicina geral e familiar dos centros de saúde tiverem esgotado todas as suas competências e meios para resolver o problema de doença, salvo se a entrada se fizer em transporte de ambulância, em que geralmente se é imediatamente atendido, ou por iniciativa própria, ficando-se sujeito a uma avaliação prévia do risco para ser atendido, ou porque a situação exige resposta imediata. O principal critério é, nestes casos, a avaliação que é feita do risco para a saúde da pessoa.

Porém, ao longo dos tempos, e não só dos últimos tempos, analisando de uma forma indiscriminada tanto o SNS como a grande maioria dos sistemas de saúde, tudo poderia levar a crer que estes começam quando alguém necessita de cuidados por razões de doença. É verdade que o sistema para prestar estes cuidados tem o seu principal défice no tempo de espera para se ser atendido, num elevado número de especialidades. E que essa espera tem efeitos sobre a saúde das pessoas, que de uma situação relativamente benigna pode passar para um estádio em que a situação se agrava ou ser mesmo fatal.

Mas para que um sistema de saúde, principalmente um sistema público de saúde como o SNS português, cumpra cabalmente a sua missão e represente um acréscimo de valor para o bem-estar das populações, torna-se necessário que ao mesmo tempo que trata previna o aparecimento de doença e promova a saúde. Sem a presença destas duas componentes os serviços apresentam um défice de visão sobre as responsabilidades que recaem sobre eles, acabando por reforçar a dimensão centrada na resposta à doença. É que sendo da saúde que se trata e não quase exclusivamente do restabelecimento da saúde, o horizonte temporal abarcado é muito mais amplo do que aquele que tradicionalmente é considerado.

Tudo começa na vida intra-uterina, no bem-estar tanto do feto como da grávida, e continua no parto, no primeiro ano de vida, na infância e adolescência, na idade adulta, na velhice e na morte. Todas estas etapas da vida são outras tantas alturas em que se verificam alterações fisiológicas, de comportamentos, de hábitos e de exposição a riscos, sejam eles laboral, domésticos ou do dia-a-dia, de que os hábitos alimentares e o sedentarismo são dois dos melhores exemplos. Portanto, é sobre o ciclo vital que incide o foco tanto da prevenção como da promoção.

Agora que vivemos em tempo de pandemia devido à presença e elevada contagiosidade de um vírus, nunca é demais lembrar que tem sido a vacinação a tecnologia que tem evitado milhões de mortes em todo o mundo. Se hoje a esperança de vida está particamente em todos os países acima dos 60 anos, uma fração importante dessa longevidade deve-se à vacinação nos dois primeiros anos de vida, a qual teve como efeito a drástica diminuição da mortalidade infantil. Mas também nos podemos referir á utilização do preservativo na prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e nas gravidezes indesejáveis, nomeadamente nas adolescentes. Ainda estamos lembrados do HIV/SIDA e do elevado número de óbitos que causou nos finais do século passado. E quanto às gravidezes indesejadas além de serem uma das principais causas do recurso ao aborto, têm frequentemente como consequência a alteração do percurso escolar e a perda de oportunidades de melhor as condições de vida.

Quando se trata da promoção da saúde queremos com isso significar a capacitação das pessoas para lidar com a sua saúde, ou seja, para tomarem as melhores decisões no dia a dia das suas vidas. Existem alguns aspectos que dizem indirectamente respeito às decisões que tomam, uma vez que fazem parte das políticas de cada governo: a habitação, o emprego, a remuneração disponível, a instrução, as acessibilidades, os espaços de lazer, entre outras necessidades que isoladamente não podem ser satisfeitas. Mas existem outras para as quais sem o contributo individual e coletivo, sem a intervenção das comunidades, dificilmente se conseguem desenvolver, alterando rotinas e hábitos adquiridos. São elas a higiene pessoal, a amamentação, a alimentação, o exercício físico, a inserção em redes sociais, os hábitos tabágicos, os hábitos alcoólicos, o consumo de substâncias ilícitas. São os designados determinantes da saúde, sobre os quais se tem controlo variável consoante do que estamos a designar.

A promoção da saúde exige a presença de informação e conhecimento, daí a importância da escola e do contexto comunitário. Enquanto na família se adquirem sobretudo os valores sociais, a escola é o instrumento social que está em melhores condições para explicar a causa das coisas, contribuído dessa maneira para se tomarem decisões informadas, decisões, tanto quanto possível, baseadas na evidência científica. Trata-se também de se aprender combinar várias áreas do conhecimento e com elas proceder-se às sínteses adaptadas a cada escolha. Contudo, para que este paradigma faça vencimento e se torne num hábito sem o qual se instala a estranheza e o desconforto, torna-se necessário que os determinantes políticos favoreçam as mudanças de hábitos, e nestes está presente a necessidade da diminuição das desigualdades socias

Portanto, um bom sistema público de saúde será amigo das pessoas se, além de as tratar quando estão doentes, contribuir para que não adoeçam precocemente e gravemente, para que vivam o maior número de anos saudáveis.

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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