Paradoxos e equívocos, “once again”
Não haja ilusões. O país que o Ocidente decidiu apoiar, a despeito de o fazer contra uma invasão ilegal, é, desde há uns anos, uma ditadura. É o país onde foi ilegalizada mais de uma dezena de partidos políticos, onde se exerce uma violenta repressão religiosa e se mantém um inqualificável nível de corrupção estrutural. Isso parece não ter demovido a generalidade dos países europeus de, numa irmanação sem precedentes, lutarem por aquilo que consideram a defesa do direito à soberania dos povos e aos mais elementares direitos democráticos, de que a União Europeia pretende ser modelo universal. Tudo teria sido tão mais fácil se a Ucrânia fosse, na prática, semelhante a qualquer democracia nórdica.
É uma maçada, mas é bem possível que esta conglomeração de esforços – na prática, instigada do outro lado do Atlântico – nasça de um equívoco: o de que, antes da invasão, as regiões do Donbass fossem um exemplo de harmonia. E de um outro: o de que a promessa norte-americana de não expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) aos territórios do leste europeu tivesse sido cumprida.
Há dias, o New York Times veio admitir a possibilidade de o mercado de Konstantinovka, no Donbass, ter sido bombardeado por um míssil ucraniano, ao contrário do que a imprensa ocidental prontamente concluiu. É curioso serem alguns órgãos de comunicação, conselheiros militares e jornalistas norte-americanos – e nada putinistas – a tentarem recuperar, para o direito à informação justa e para os valores democráticos, os méritos que lhes pertencem, e que as democracias neoliberais têm espezinhado, com o mesmo oportunismo com que os endeusa.
Quando, na cimeira de entrega do Atlantic Council Prize que agraciou a OTAN (na presença do primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida), a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, discursou, aludindo às bombas atómicas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki, todo o seu discurso foi cirurgicamente concebido para evitar qualquer referência aos Estados Unidos da América (EUA) e, habilmente, insinuar que a Rússia “ameaça usar armas nucleares uma vez mais”. Neste ambíguo once again, nem todos alcançam a verdade dos factos e, assim, cada vez mais, quase todos nós nos tornamos cúmplices de uma revisão da História e da ética da Humanidade.
Os Norte-americanos perderam em Bunker Hill, em Alamo, em Pearl Harbour, em Corregidor, mas Ingleses, Mexicanos e Japoneses foram por eles vencidos. Voltaram a perder em Cuba e no Vietname, mas ganharam a Guerra Fria. Desde aí, talvez tenham apenas fracassado no Afeganistão. E, de república passaram a Império. Agora, a “sua” guerra faz-se sem botas no terreno e com os filhos dos outros. Esse não é um equívoco.
É também um jornalista norte-americano, Seymour Hersh, que, citando fontes não identificadas, afirma que os serviços de “inteligência” dos EUA não consideram possível que as Forças Armadas da Ucrânia (FAU) rompam a defesa russa, que a vitória da Rússia está a ser dissimulada pela Casa Branca e pelos media do país, e que as contínuas afirmações sobre o progresso gradual das FAU na ofensiva não passam de uma mentira.
Sobre se aquilo que se passou no parlamento do Canadá, com o aplauso unânime a um ex-combatente nazi, e as declarações de Benjamin Netanyahu relativas a Hitler podem ser considerados lapsos legitimados por uma cultura de branqueamento ou somente equívocos, ainda veremos.
Em 1991, para justificarem o fim dos bombardeamentos no Iraque e evitarem outros constrangimentos, Clinton e Blair acordaram num uníssono “os objectivos foram cumpridos”. Mas Gustavo Petro, presidente da Colômbia, no seu mais recente discurso da sede da ONU, desfez uma série de equívocos, quase como se proferisse um insulto. Disse ele: “Os mesmos que hoje falam sobre combater invasões, esqueceram que invadiram o Iraque, a Síria e a Líbia por causa de petróleo.”
É essa a questão: preferimos ultrajar a nossa inteligência consentindo o equívoco e o paradoxo. Já não há indignação.
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Nota do Director:
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28/09/2023