Pássaros – 1 de Janeiro
Nunca me esquecerei do primeiro dia em que acordei no Brasil.
Era de madrugada e foi um momento surpreendente. Não estava no campo, mas em plena cidade, daquelas enormes, em que se perde a noção dos milhões de habitantes, sempre com um trânsito imenso e caótico. Porém, não tinha sido isso que me acordara. Nem pessoas, nem carros. Acordei com uma enorme barulheira e, num primeiro momento, sem conseguir perceber o que se estava a passar. Demorei algum tempo a dar-me conta de que eram apenas os pássaros. Pássaros cujos pios e chilreada eram, além de intensos, totalmente irreconhecíveis.
Certamente isso já me teria acontecido noutros lugares, quero dizer, acordar com outros pássaros. Todavia, era a minha primeira vez nos trópicos e o som daqueles pássaros era outra coisa. Um som massivo, esmagador na sua alegria, mas também na sua ameaça. Digamos que, por causa daquela experiência, nunca mais voltei a ouvir madrugadas sem prestar atenção à diferença dos pássaros.
Lembrei-me de tudo isto recentemente por causa de um encontro online sobre escrita e leitura em que, além de portugueses/as, estavam representantes de vários outros países europeus e da América Latina.
Num painel sobre bibliotecas públicas e bibliotecas escolares, uma jovem bibliotecária da Colômbia levanta um problema fulcral que, percebi depois, era igualmente fulcral para muitos outros países da América Latina, incluindo o Brasil. Foi esse problema, que, em Portugal, não é sequer concebível como problema, que me trouxe de volta à questão dos pássaros. Perguntava a jovem bibliotecária: quais são os livros que devem estar nas bibliotecas públicas ou escolares?
Queixavam-se aqueles e aquelas bibliotecários/as da América latina de que os saberes da comunidade local, da sua comunidade mais próxima, ficam fora do espaço das suas bibliotecas.
Como se as comunidades locais não possuíssem qualquer saber; como se as suas narrativas, muitas delas da tradição oral — mais do que parte de uma literatura, parte de uma “oratura” —, não pudessem contribuir para o conhecimento que é riqueza cultural da comunidade mais ampla, nacional ou outra, em que se encontram incluídas. De fora das bibliotecas ficam os saberes dos nativos, dos negros, dos economicamente menos favorecidos, dos que não têm poder. Estas comunidades locais só podem passivamente receber e absorver os saberes que lhes chegam de cima.
A metáfora do meu acordamento no Brasil regressou: para ler/ouvir ficam assim, apenas, os sons dos pássaros que qualquer ocidental, judaico-cristão, branco e, estou tentada a dizer, masculino considera audíveis (leia-se: compreensíveis, ou legíveis).
A verdade é que, também em Portugal, os/as autores/as locais são ignorados/as, quer no seu espaço quer, sobretudo, no espaço nacional. Num estudo recente percebe-se até que para estes e estas autoras portugueses se tornava mais fácil passar do local ao transnacional do que do local ao nacional. A pergunta passa então a ser: o que faz com que o local passe a nacional?
Muito haveria a dizer sobre o assunto, mas, para já, o que é claro é que, na América Latina, o centralismo sistémico (cultural e não só) se funde com questões de pós-colonialismo e de racismo, que, afinal, limitam os sons que podemos (e deveríamos) ouvir. Perde-se assim uma experiência como a da minha primeira madrugada no Brasil, um acordamento que me deu o direito e a liberdade de ouvir os sons daqueles pássaros, tão diferentes e tão belos na sua irredutibilidade ao real que eu era, até então, capaz de reconhecer.
Boaventura de Sousa Santos escreveu que a nossa Modernidade não passa de uma vasta teia de reciprocidades negadas, algo que herdámos do primeiro encontro fundador dos, ditos, Descobrimentos. Diz o sociólogo que aqueles que têm o poder designam/nomeiam o Outro e, a partir desse momento, passam a ficar encobertas outras visões do mundo. A narrativa dominante silencia e invisibiliza os outros sons. Perante a violência da linguagem que se impõe, tapam-se os sons do irreconhecível, tornados cada vez mais longínquos e cada vez mais ausentes. Talvez num silêncio que acabará por ser resistência à visão dominante do mundo — e que a todos/as nos salvará um dia?
Como acontece com a tapeçaria e os chamamentos das mulheres — ou terão os pássaros acordado? — deste extraordinário poema, que ora traduzo, da poeta norte-americana Elizabeth Bishop, que viveu muitos anos no Brasil e que nos devolve a esse outro primeiro dia do mês de Janeiro:
Brasil, 1 de Janeiro de 1502
…natureza bordada… paisagem de tapeçaria.
– Landscape into Art, Sir Kenneth Clark
Janeiros, a Natureza saúda os nossos olhos
exactamente como deve ter saudado os deles:
a preencher cada centímetro quadrado de folhagem –
folhas grandes, folhas pequenas e folhas gigantes,
azuis, verde-azulado, verde-oliva,
aqui e ali com uma nervura ou fímbria mais clara,
ou um acetinado reverso à mostra;
fetos monstruosos
em atenuante cinza-prata,
e flores, também, como nenúfares gigantes
erguidos ao ar – ou antes, erguidos nas folhas –
roxas, amarelas, dois amarelos, cor-de-rosa,
vermelho-ferrugem e brancas esverdeadas;
sólidas mas etéreas; frescas, como se recém-terminadas
e tiradas das molduras.
Um céu branco azulado, uma teia simples,
respaldo para detalhe emplumado:
arcos breves, uma roda partida em verde-claro,
algumas palmeiras, morenas, atarracadas, mas delicadas;
e ali empoleirados, de perfil, bicos abertos,
os grandes pássaros simbólicos ficam calados,
deixando apenas ver, inchado e fofo,
meio peito sarapintado ou de uma cor só.
Porém, em primeiro plano, está o Pecado:
cinco dragões cobertos de fuligem junto de enormes rochedos.
Os rochedos estão ornados de líquenes, lunares crateras cinzentas,
espalhados e sobrepostos,
ameaçados pelo musgo que vem de baixo
em belas chamas verde-inferno,
atacadas do alto
por trepadeiras em escada, oblíquas e claras,
“folha sim, folha não” (em português).
Os lagartos mal respiram: os olhos todos
no mais pequeno, a fêmea, que seguem,
a terrível cauda dela levantada e acima,
vermelha como um arame em brasa.
Assim também os cristãos, fortes como pregos,
pequenos como pregos, e reluzentes,
em armadura rangente, vieram e descobriram tudo aquilo,
não desconhecido:
não os passeios dos amantes, não as latadas,
não as cerejas por apanhar, não a música dos alaúdes,
mas antes correspondendo
a um sonho antigo de riqueza e luxúria
já fora de moda quando tinham saído de casa –
a riqueza e mais um prazer novinho em folha.
Logo depois da missa, talvez cantarolando
L’Homme armé ou outro tema assim,
lançaram-se a rasgar o pano dependurado
cada um atrás de uma índia para si –
aquelas mulherzinhas irritantes sempre a chamar
a chamar-se umas às outras (ou será que os pássaros acordaram?)
e a recuar, a recuar sempre, para trás dele.
Graça Capinha (Americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)