Paulina Chiziane pediu a descolonização da Língua Portuguesa

 Paulina Chiziane pediu a descolonização da Língua Portuguesa

Paulina Chiziane (entre o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e o primeiro-ministro, António Costa) recebeu o Prémio Camões 2021, numa cerimónia em Lisboa. (Créditos fotográficos: António Pedro Santos / Lusa – jn.pt)

O Dia Mundial da Língua Portuguesa ficou marcado, em 2023, pela entrega do Prémio Camões 2021 à escritora moçambicana Paulina Chiziane, que enunciou a necessidade de se proceder à descolonização da Língua Portuguesa, na convicção de que, para ser de todos os povos que a falam, precisa de “tratamento, limpeza, descolonização”.

Efetivamente, a laureada com o Prémio Camões 2021, no seu discurso da cerimónia da entrega da respetiva distinção, no Picadeiro Real, em Lisboa, a 5 de maio de 2023, Dia Mundial da Língua Portuguesa, assinalou a existência, na língua de Camões, de “algumas especificidades” que, por vezes, a assustam, dando como exemplo a maneira como algumas palavras surgem definidas em alguns dicionários. É o caso de palavras, como “catinga”, “que vem como cheiro nauseabundo caraterístico da raça negra”; “matriarcado”, que aparece definida como “costume tribal africano”, em contraposição com “patriarcado”, “tradição heroica dos patriarcas”; e “palhota”, que surge como “habitação rústica caraterística dos negros”.

Na verdade, o cheiro a catinga tem a ver com o produto e o ambiente, não com quem é por ele envolvido. O matriarcado atual, em África, existe sobretudo na região Norte de Moçambique, mas não é exclusivo de africanos, nem de deitar fora, como se fosse coisa repugnável segundo critérios machistas. E palhota é, segundo a escritora, habitação ecológica.

A escritora moçambicana Paulina Chiziane defendeu que a língua portuguesa, para ser de todos os povos que a falam, precisa de “tratamento, limpeza, descolonização”. (Créditos fotográficos: Lusa – noticiasaominuto.com)

Julgo que Paulina Chiziane tem alguma razão em fazer tais observações, não quanto à generalidade dos cultores da língua, nem mesmo dos dicionaristas atuais, mas relativamente a algumas mentalidades e a algumas práticas de falantes e de escritores. Contudo, não me parece justo que se faça uma limpeza a nível diacrónico, queimando ou ostracizando dicionários, gramáticas e obras literárias. O tempo não perdoa e, às vezes, é mordaz, nas suas medidas. Mas as coisas também têm o seu tempo, importando que não se vertam para outros tempos

Não obstante, é possível e desejável libertar alguns conceitos e alguns dos termos que lhes dão corpo em certas categorias coloniais e neocoloniais. E, de igual modo e até mais do que isso, é de combater um outro colonialismo que se vem apoderando da Língua Portuguesa, com a apetência e o agrado de tantas pessoas, entidades e instituições: temos o Português repleto de anglicismos na língua corrente, nas academias e até nas linguagens do Estado.

Temos de libertar o Estado, as instituições de ensino e as empresas da prática dos trabalhos académicos em Inglês, das designações de institutos politécnicos e de faculdades em Inglês, bem como de termos, como coaching, outsourcing, chaiman, master, business, suite, CEO, CFO e tantos outros anglicismos desnecessários, quando temos, para as mesmas atividades, profissões ou misteres, designações e termos bem portugueses. Prefiro ver na versão europeia da Língua Portuguesa nomes das versões brasileira, europeia e asiática aos anglicismos desnecessários. Antes, era a moda francesa; agora, é a moda inglesa. Ora, mais do que proceder à descolonização diacrónica da Língua Portuguesa, é preciso fazer a sua descolonização sincrónica. 

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Porém, esta efeméride também ficou assinalada pela intervenção do primeiro-ministro, António Costa, que acentuou a dimensão de universalidade da Língua Portuguesa: “De Camões, retemos o exemplo como criador de uma nova língua portuguesa e da sua universalidade. Em vez de uma visão estática da língua, Camões revela a possibilidade de expandir os limites dessa língua. O que torna a Língua Portuguesa universal é a multiplicidade de formas de utilização e de expressão de todos os que a falam, que a escrevem ou cantam”, afirmou o chefe do Governo, na presença do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, dos ministros dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, e da Cultura, Pedro Adão e Silva, e do corpo diplomático.

O primeiro-ministro, António Costa, associa a universalidade da língua
portuguesa à luta pela liberdade. (Créditos fotográficos: António Pedro
Santos / Lusa – jm-madeira.pt)

Destacando que a entrega do Prémio Camões ocorreu, pela primeira vez, no Dia Mundial da Língua Portuguesa, disse que este dia “deve ser sentido, verdadeiramente, como celebração e valorização da comunidade dos países e dos povos que a falam, que, antes de ser uma realidade política, era já uma realidade afetiva”. “Uma língua que não se restringe às formalidades e às decisões dos governos. Mas uma língua que os povos seus falantes usam para comunicar. E, ainda que a falem com múltiplas variantes ou sotaques diversos, a falar se entendem. O Português é, hoje, a língua de várias pátrias, uma língua que navega e se recria em cada porto, permitindo conhecermo-nos melhor na diversidade das nossas múltiplas identidades nacionais, mas também sentirmo-nos menos estrangeiros na casa de cada um”, explanou.

Citando a escritora moçambicana, segundo a qual Luís de Camões foi “um indivíduo para quem o mundo era a sua morada”, para salientar a universalidade da nossa língua, António Costa destacou “a força da tradição oral própria da sua cultura”: “Na sua obra, a língua ganha novas possibilidades, novas estruturas gramaticais, novas sonoridades, revelando uma expressividade linguística que não é dominante e uma liberdade criativa”.

O primeiro-ministro frisou ser esta “uma feliz ocasião para entregar a Paulina Chiziane o Prémio Camões, ele próprio um símbolo maior de uma grande comunidade linguística”, até porque a escritora pertence à geração de autores moçambicanos que emergiu a seguir à independência.

Depois, António Costa referiu que os romances de Paulina Chiziane retratam “as diferenças culturais entre o Norte e o Sul, os traumas da guerra civil, as tradições ancestrais, os dilemas do povo moçambicano, os seus modos, as suas aspirações”. E acrescentou: Como toda a grande literatura, eles permitem aos seus leitores aceder a mundos que lhes são distantes, mas que, ao mesmo tempo, têm uma dimensão universal.”

O primeiro-ministro português citou a escritora moçambicana Paulina Chiziane, segundo a qual Luís de Camões foi “um indivíduo para quem o mundo era a sua morada”. (Créditos fotográficos: António Pedro Santos / Lusa – bomdia.eu)

Vincando que, há 50 anos, nem Portugal, em ditadura, nem Moçambique, sob colonialismo, deixavam falar ou escrever em liberdade, o primeiro-ministro apontou: “Foi nesta liberdade partilhada que nos reencontrámos, que nos reencontramos e que seguimos. Paulina Chiziane faz parte dessa geração que viu na literatura um lugar de emancipação pessoal e coletiva e cuja criação literária corresponde a uma necessidade profunda de interpretar e representar a cultura do seu povo. Pioneira a vários títulos, foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique e é agora a primeira mulher moçambicana e negra distinguida com o prémio Camões.”

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A ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes. (portuguese.people.com.cn)

É de referir que a ministra da Cultura do Brasil, que não esteve presente, mas participou por videomensagem. Margareth Menezes fez, inicialmente, uma referência a Chico Buarque e, depois, enfatizou a importância da entrega do prémio a Paulina Chiziane: “Para mim, como primeira mulher negra a assumir o ministério da Cultura do Brasil, também é muito simbólico e significativo vivenciar este momento em que, pela primeira vez, temos uma escritora negra premiada com Camões.”

Margareth Menezes destacou os “temas universais” da escritora, que contribuem para a partilha da cultura moçambicana.

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Também é de vincar que a escritora (nascida em Manjacaze, Moçambique, em 1955), vinda “de lugar nenhum”, que “aprendeu a escrever na areia do chão” e usou “o primeiro par de sapatos com dez anos”, não se ficou pela necessidade da descolonização da Língua Portuguesa. Antes se mostrou “muito feliz” por receber o Prémio Camões, “um prémio tão importante, exatamente no Dia Mundial da Língua Portuguesa”.

“Para quem vem do chão, estar aqui diante do Governo português, do Governo brasileiro, do corpo diplomático e de várias personalidades é algo que me comove profundamente. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lugar, que é este prémio”, enfatizou.

Dos seus vários agradecimentos, o maior foi para os seus leitores, “em Moçambique e em todos os países que falam Português”.

É de vincar que a escritora Paulina Chiziane (nascida em Manjacaze,
Moçambique, em 1955), vinda “de lugar nenhum”, “aprendeu a escrever
na areia do chão” e usou “o primeiro par de sapatos com dez anos”.
(maisribatejo.pt)

Confessando-se a “primeira negra a receber tão alto prémio”, partilhou que “um dos primeiros aspetos, para um bom escritor, tem de ser a originalidade”, pois “a dignidade de um povo é feita pela sua originalidade”. E, salientando o orgulho que tem por ser africana, destacou a importância do sentido de afirmação. “Se queres ser alguém na vida, no mundo, deves deixar marcas do teu pé gravadas de forma indelével, para que todos digam: por aqui passou alguém”, afirmou.

Observando que a afirmação é questão “muito séria”, recordou que, quando começou a escrever, lhe diziam que os seus escritos “não eram bem, bem, bem em Língua Portuguesa” e que tinha de “escrever bem, bem, bem em Língua Portuguesa”. Contudo, achou que devia mostrar quem era, a sua identidade como mulher, como negra, como africana, através da Língua Portuguesa.

Paulina Chiziane, cujo percurso linguístico se iniciou pelo Chope, passou ao Ronga e chegou à língua de Camões na escola (Maputo), faz-nos registar um dado muito importante: “Cada povo africano recebeu uma língua, que tem que preservar, guardar”, pois é “herança divina”; mas, depois, por “circunstâncias da História”, receberam outras línguas, “uma herança humana”, que, “no caso do povo moçambicano, é a Língua portuguesa”.

E a escritora, convidando todos a aprenderem línguas africanas, pôs-nos a todos em questão: “O império colonial dizia ‘eu tenho, mas tu não tens’, e não é justo. Tenho uma língua materna e uma que me foi dada. Por que tenho de aprender a que me é dada? E por que não aprendem a minha?”

No final do discurso, disse: “Sou da tradição oral. Gosto de contar histórias. Por vezes, escrevo.”

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Carlos Mendes de Sousa (independent.academia.edu)

Na altura da atribuição do prémio, em 2021, o júri justificou a escolha, por unanimidade, com a “vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento académico e institucional da obra” de Paulina Chiziane. E, referindo a importância que a escritora dedica, nos seus livros, aos problemas da mulher moçambicana e africana, sublinhou o seu trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras artes.

Agora, o presidente do júri, Carlos Mendes de Sousa, disse que “a voz, a claridade, a poesia, o puro encantamento das palavras ditas por Paulina Chiziane mostram uma estreita ligação entre o oral e o escrito”: “Paulina Chiziane escreve como fala. Voz e escrita brotam do mesmo chão, onde vislumbramos a essencial pertença à cultura Bantu, à voz de África, que na sua voz ecoa.”

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Em suma, queremos a Língua Portuguesa descolonizada naquilo que tem de ser (na diacronia e na sincronia), universalizante, inclusiva, mobilizadora, diversificada, rica, livre e libertadora.

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08/05/2023

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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