Pelo pão dos meus filhos: Catarina Eufémia (1954)

 Pelo pão dos meus filhos: Catarina Eufémia (1954)

Catarina Eufémia (Fonte: RTP)

Quintos, Beja – 1953

Catarina Eufémia, de 25 anos, está grávida. Caminha numa rua da aldeia com os seus dois filhos, um em cada mão: Maria Catarina, de cinco anos, e José Adolfo, de dois anos.

Hoje não tens trabalho, Catarina Eufémia. Ontem e anteontem também não. Na verdade, já não trabalhas há três semanas, mas, todos os dias, os teus dois filhos aguardam que lhes dês pão.

Aguardam, disse eu, mas não reclamam, porque, apesar da tenra idade, aprenderam contigo o que é ter fome.

Tu, Catarina Eufémia, quando eras criança foste privada da infância. Aos nove anos, já trabalhavas no campo para ajudar a família a dar-te comida.

Apesar de seres uma criança inteligente e espevitada, os teus pais nunca te mostraram o caminho da escola. O teu trajeto sempre foi em direção às tarefas da terra ou da casa. A equação é simples: se não trabalhas, não comes, mesmo que sejas uma simples menina.

Mas agora, Catarina Eufémia, em breve, nascerá mais uma boca e terás de ter mais pão em casa, que já é tão pouco.

Já não é possível esconderes mais a gravidez, Catarina Eufémia. Custa curvares-te e o teu trabalho é estares horas a fio arqueada na ceifa, na monda ou na apanha da azeitona.

Ceifa alentejana (Direitos reservados)

Além disso, aqui em Quintos, no concelho de Beja, aldeia do teu marido, onde moras, raramente te dão serviço, porque o que há vai primeiro para as mulheres da terra.

Enquanto a barriga te permitia, fazias 10 quilómetros a pé até à tua aldeia, Baleizão, também no concelho de Beja, para te darem trabalho.

Sais de casa às seis da madrugada para pegares na labuta às oito horas da manhã. As crianças ficam ao cuidado da tua sogra.

Só quem está cá é que sabe. O trabalho é duro, muito duro.

Tu, Catarina Eufémia, e as outras mulheres ao teu lado ceifam todo o dia, do nascer ao pôr-do-sol. Tal como as outras, trazes o almoço de casa. É quase sempre pão, seco ou com um pouco de azeite e açorda, uma sopa feita com o aproveitamento do pão ressequido, azeite, alho, coentros e um ovo escalfado, quando há.

Calças umas meias sem pés. Nos braços, tens uns mangos e, na saia, um regaço. Tens a cabeça coberta com um lenço e um chapéu. Usas umas dedeiras de cana para não te cortares com a foice.

E depois de longas horas de trabalho, regressas a casa. Mais 10 quilómetros a pé até Quintos, muitas vezes, com lenha à cabeça. Era assim antes da tua gravidez e voltará a ser quando deres à luz o teu terceiro filho.

Antes, casaste muito nova com o António Joaquim do Carmo, o Carmona, como todos lhe chamavam.

O teu marido conseguiu arranjar emprego como operário na Companhia União Fabril (CUF), no Barreiro. Um luxo para quem quer sair da miséria do campo.

Saída da fábrica da CUF, no Barreiro
(Créditos: Câmara Municipal do Barreiro)

Foste com o teu marido para o Barreiro, mas a aventura fabril apenas durou seis meses. Ele foi despedido.

De novo, o futuro incerto e a sombra da pobreza a perseguir-te.

Voltaste ao Alentejo. És novamente uma camponesa sem terra. Desta vez, vais para Quintos, a aldeia do António Joaquim, já que ele conseguiu emprego como cantoneiro.

Mas o salário de cantoneiro é baixo e não dá para pagar a renda da casa nem para alimentar a família.

Voltaste a trabalhar à jorna, Catarina Eufémia, aqui e acolá, onde te dão trabalho. E mudaste-te com a família para uma habitação mais barata ao lado da aldeia. Na verdade, não é uma casa, mas, sim, um velho celeiro.

Há uma fonte de água entre os lugares de Vale de Alcaide e Barroca, a meio das aldeias de Quintos e de Baleizão, no concelho de Beja.

Esta fonte não brota só água. As mulheres das duas localidades encontram-se aqui para levar os cântaros para casa, é certo, mas também para falar do proibido, longe dos ouvidos das esquinas.

Entre todas, és tu, Catarina Eufémia, a mais esclarecida das coisas do trabalho e da política.

Aqui, na fonte, onde ninguém de fora destas mulheres te ouve, falas da pobreza da tua gente, da miséria do salário e dos direitos que os trabalhadores devem ter.

Quando te perguntam de onde te vêm essas ideias, tu respondes que é do partido. Assim dito, só partido, discretamente, porque se a outra palavra se ouvir pode ser perigoso.

Mas toda a gente diz, à boca fechada, mesmos os patrões, que és comunista, Catarina Eufémia. Pelo menos, da fama não te livras, a começar pela tua aldeia, Baleizão, terra vermelha, como muitos dizem.

E também em Quintos, onde vives, a PIDE anda de olho aberto. E se, até agora, ninguém foi preso deve-se ao padre. O sacerdote não tem bom feitio, todos concordam, mas nunca denunciou ninguém da terra, embora saiba quem escreve as frases nas paredes.

“Aqui, em Quintos, não há comunistas. Dêem-lhes pão e vinho que é quanto basta”, diz o padre aos pides.

Sabes que tens de ser cautelosa, Catarina Eufémia. Cada vez mais, o povo anda desconfiado e a PIDE suspeita do povo.

Se a GNR vir três homens parados a conversar, suspeita de subversão. Manda “circular, circular”, como dizem.

Agora nem se pode cantar na rua, como antigamente. Era costume os homens, nas noites quentes, entoarem os cantares alentejanos, como só eles sabem.

Uns mais novos e outros mais velhos, encontravam-se na ponte, à entrada de Quintos, e soltavam os cantares pela planície.

Os guardas apareciam de surpresa, de um lado e de outro da ponte; e, de chicote na mão, varriam à chibatada quem estivesse lá, quer cantasse quer não.

Aos poucos, as cantorias na ponte acabaram. As noites ficaram mais escuras e os dias mais cinzentos. É assim Portugal em 1954, e assim será ainda por muitos mais anos

O teu bebé já tem uns meses, Catarina Eufémia, e está junto dos outros dois irmãos com a avó, enquanto trabalhas na monda.

De todos os trabalhos no campo, a monda é o mais leve e, por isso, feito com mais alegria. Consiste em arrancar as ervas daninhas das searas com o recurso a um sacho.

Mondadeiras (Arquivo da Câmara Municipal de Évora)

Chegadas à seara, tu e as outras mulheres fazem “calções”, que é atar a saia junto ao joelho para melhor coordenar os movimentos com a decência do traje feminino.

Faz muito frio em janeiro, mas chove pouco e isso já é uma bênção para quem trabalha no campo. Porque, se chover, o trabalho não pára e o corpo fica encharcado.

Mesmo assim, não é tão duro como a apanha da azeitona. Do início de novembro até ao fim de dezembro, ficas horas sem fim agachada a colher as azeitonas que se despregam das oliveiras. Os dedos ficam dormentes, por causa da geada e do frio das azeitonas, mas o trabalho não pode parar.

Apanha da azeitona (Fotografia de Artur Pastor)

Até que, no fim de maio, começa a ceifa. E vêm as favas, a cevada, a aveia e depois o trigo, até julho, mês de muito calor.

Mas tu, Catarina Eufémia, nem sempre tens trabalho. É conforme a necessidade e a ocasião. Pagam-te 12 escudos por um dia de trabalho, de sol a sol. O teu bebé já come. Um pão de quilo custa dois escudos. E como és a mais pobre dos pobres, Catarina, não tens forno caseiro. Tens de comprar o pão.

Vejamos esta mulher, de 34 anos. Está a amassar a farinha de centeio para a levar ao forno. É uma das amigas da Catarina, em Baleizão. O teu nome é Antónia e és mãe de sete filhos. À medida que iam nascendo, os filhos mais velhos cuidavam dos mais novos. A mais velha, a Mariana, saiu da escola quando estava na terceira classe para cuidar dos mais novos. Agora tem 13 anos e já trabalha no campo com mais dois irmãos.

O terceiro mais velho é o que toma conta dos outros, mas em breve irá trabalhar e a seguinte, na hierarquia, tomará o seu lugar.

Estás a amassar farinha de centeio para fazer pão, Antónia. Apesar de seres pobre, tens um forno em casa, onde, uma vez por semana, cozes 35 a 40 quilos de pão para toda a família. Fica mais barato cozer o pão uma vez por semana do que todos os dias ou de dois em dois dias. Gastas a mesma lenha e poupas tempo. No dia seguinte, o pão fica duro, mas todos estão habituados. Come-se com azeite e na açorda. E é, tantas vezes, a única refeição do dia. Estás a amassar a farinha, agora à noite, para o pão cozer devagar até ao fim da madrugada. Hoje, puseste um pouco menos de farinha, porque o Manel da Arruda, teu marido, foi outra vez levado pela PIDE. É a terceira vez que o Manel é preso por ter ligações ao Partido Comunista Português.

Lisboa – 1933

Com a entrada em vigor da Constituição de 1933, que restringe a liberdade e reforça a ditadura, Portugal entrou no Estado Novo.

António de Oliveira Salazar

António de Oliveira Salazar tornou-se presidente do Conselho de Ministros há um ano e, aos poucos, vai cimentando um regime autoritário e opressor.

Imediatamente, Salazar criou a Polícia Internacional e de Defesa do Estado que todos conhecem pela sigla PIDE. A polícia política vai ser responsável, ao longo de décadas, por inúmeros assassinatos, prisões, torturas e ameaças a todos os portugueses que discordem do regime ou que, no mínimo, sejam suspeitos.

Um ano depois, em 1934, a legislação restringiu a liberdade sindical. Como resposta, os sindicatos organizaram uma greve geral que teve pouca adesão no país, exceto na Marinha Grande, entre os operários vidreiros.

Os grevistas amotinaram-se, cortaram estradas e a via-férrea, ocuparam os correios e telégrafos e o posto da GNR local, apoderando-se das armas.

Só com a chegada das forças policiais e do regimento de infantaria, vindo de Leiria, é que os revoltosos se renderam. Foram detidas cerca de 130 pessoas.

Forças militares ocupam a Marinha Grande (Direitos reservados)

O Movimento Nacional Sindicalista foi ilegalizado e, no ano seguinte, em 1935, a Maçonaria e todas as sociedades secretas são proibidas.

Mocidade Portuguesa (Direitos reservados)

Quando se iniciou a Guerra Civil Espanhola, em 1936, foi criada a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa, organizações inspiradas nos modelos alemão nazi e italiano fascista da época.

Com o eclodir da II Guerra Mundial, em 1945, Portugal assumiu-se como um país neutral.

No mesmo ano, foi criado o grupo oposicionista Movimento de Unidade Democrática (MUD), que será ilegalizado em 1948.

Em 1954, a União Indiana ocupou os enclaves de Nagar Aveli e de Dadrá, seguindo-se Goa, Damão e Diu. É o princípio da queda do império colonial português.

Invasão de Goa pela União Indiana (Créditos: RTP)

Portugal viveu sob ditadura durante 48 anos. O regime do Estado Novo foi derrubado em 25 de Abril de 1974.

Baleizão, Évora – 1954

Tu, Catarina Eufémia, que és a mais interventiva das mulheres de Baleizão e de Quintos, começas a comentar com as outras ceifeiras o salário de miséria que o patrão paga: 12 escudos por jorna. Falas, discretamente, e asseguras-te de que não há “bufos” por perto.

Todas as ceifeiras com quem conversas concordam contigo. Trabalhar de sol a sol por 12 escudos é uma bagatela para tanto esforço. Instigas as outras trabalhadoras a pedirem um aumento ao patrão. Oito centavos, não é muito, mas sempre ajuda a disfarçar a pobreza.

Sim, todas concordam! Mas, quem vai falar ao patrão? Um grupo de voluntárias. Oferecem-se 14. É o número ideal, nem poucas nem demasiadas.

Há outro pormenor que é preciso aclarar. Quem realmente fala com o patrão? És tu, Catarina Eufémia, em nome de todas as mulheres. Está decidido.

Se o patrão não aceder pagar mais oito tostões, recusas-te a trabalhar. Tu e as outras ceifeiras. Está definido. Só falta ter a concordância dos homens. É fundamental que o marido de cada uma corrobore com esta ousadia de pedir mais uns tostões ao patrão e, caso seja negado, passar para a greve.

Esta é a primeira fase do processo. Convencer os vossos homens a apoiar-vos, no caso de ser necessária a greve.

Não é fácil, Catarina Eufémia. O Joaquim, teu marido, e os outros homens sabem que as greves podem trazer repressão, represálias e até desemprego.

Insistes, Catarina. É preciso tentar, é crucial não ficar parado ou a vida será sempre miserável.

Um pouco contrariado e ainda mais receoso, o Joaquim aprova a tua estratégia.

Ceifeiras alentejanas (Direitos reservados)

A Antónia e as outras ceifeiras, com maior ou menor dificuldade, convencem os seus maridos a apoiar a luta das mulheres de Baleizão.

Vai começar a diligência para as ceifeiras terem um pouco mais de dignidade.

Casa do patrão. Chegou o momento decisivo, Catarina Eufémia. Vais pedir ao patrão um aumento de oito centavos.

Perentório, o patrão recusa a subida da remuneração. Tentas argumentar: o salário é baixo, o aumento não é muito. A resposta é definitiva: não!

Mas estás determinada, Catarina. Agora, não podes recuar. Em nome das mulheres que representas, dizes que no dia seguinte ninguém se apresentará ao trabalho.

O proprietário da seara não perdeu tempo. Foi à aldeia vizinha de Penedo Gordo recrutar mulheres para a ceifa e não teve dificuldade em conseguir mão-de-obra barata.

A tua ameaça de greve não surtiu efeito, Catarina Eufémia. Em tempo de miséria e de desemprego, há sempre quem esteja disposto a trabalhar por menos dinheiro.

É urgente fazer alguma coisa. Sem trabalho, sem salário. E o patrão arranjou outras ceifeiras. Só há uma forma de evitar a desgraça total. É tentar convencer as mulheres de Penedo Gordo a ficarem ao lado da vossa luta e a não trabalharem por pouco dinheiro.

Tens de ir falar com elas, Catarina Eufémia. Além de ti, há mais 13 mulheres dispostas a encabeçar a luta.

O trabalho dos campos de Baleizão sempre foi para os filhos da terra. Mas, agora, vem gente de fora por menos dinheiro.

Estrada, Baleizão. Lá vais tu, Catarina Eufémia, com o teu filho de oito meses ao colo, acompanhada por mais 13 mulheres e um punhado de homens. Diriges-te para as searas onde estão as novas ceifeiras. Acreditas que, se explicares o que está em causa, elas possam passar para o vosso lado.

Alguns homens acompanham-vos. É um gesto solidário, sem dúvida, mas também de segurança, pois, nestes momentos, a tensão pode crescer e o imprevisível acontece.

As mulheres à frente e os homens atrás, porque a luta é vossa. E na liderança das mulheres vais tu, Catarina Eufémia, que foste nomeada porta-voz do grupo.

A GNR está à vossa espera. Mas tu não és mulher de desistir. Dás ânimo às demais. Não abrandas sequer o passo. O caminho é para a frente.

O tenente da GNR Carrajola já se mostrou. É um homem ruivo e sardento. Os militares barram o percurso das mulheres. Com a arrogância de uma autoridade que goza de impunidade, o tenente Carrajola pergunta:

“O que é que vocês querem, burras?”

E tu, Catarina Eufémia, respondes com uma voz firme, sem mostrar medo:

“Queremos trabalho e pão para os nossos filhos.”

Perante a forma audaz como retorquiste, o tenente Carrajola reage, dando-te uma violenta bofetada que te faz cair. O teu filho, também estatelado, começa a chorar.

Levantas-te, Catarina, pegas no teu filho ao colo, sobre o lado esquerdo, e proferes palavras de revolta:

“Não me bata! Respeite os meus filhos! Se me quer matar, mate-me de uma vez só!”

O tenente olha para ti altivo, carregado de ódio por tanta afronta que fazes. Aproxima-se de ti, dá dois passos para o lado onde seguras o bebé. Com o cano da pistola-metralhadora, lentamente, levanta os pés do teu filho e…

…dispara três tiros de rajada.

Cais prostrada no chão, Catarina Eufémia, com os olhos bem abertos e o corpo jorrado em sangue. O teu filho tomba pela segunda vez e está com ferimentos.

Longos segundos de silêncio. Ninguém sabe o que fazer. Até que a GNR avança com bastões em punho e corre com as mulheres e os homens.

Estamos a 19 de maio de 1954. Esta data será sempre lembrada como o dia da tua morte, Catarina Eufémia.

Um carro funerário, a uma velocidade média e escoltado pela polícia, transporta o corpo de Catarina Eufémia.

Cemitério de Quintos. Após a autópsia, temendo a reação da população, as autoridades realizaram o funeral às escondidas.

Fizeram constar que o corpo de Catarina Eufémia ia para o cemitério de Baleizão, sua terra natal, mas foi a enterrar em Quintos, sem que as pessoas soubessem quem era a defunta.

Além disso, anteciparam o funeral uma hora em relação àquela que tinham anunciado.

Algumas mulheres comentavam que estavas grávida, Catarina Eufémia, mas o médico que te autopsiou desmentiu, inclusive depois do 25 de Abril.

O relatório da GNR sobre o assassinato de Catarina Eufémia diz o seguinte:

“Casos Relacionados com a Ordem Pública:

No dia 19 de Maio, do ano de 1954, um rancho de ceifeiras, instigadas por agentes comunistas, dirigiram-se à herdade do Olival, a fim de por meio de ameaças obrigarem um outro rancho também de ceifeiras, que se encontravam trabalhando naquela propriedade, a abandonarem o trabalho, para exigirem salários exagerados e estabelecerem a confusão, dando por esse motivo origem a uma grande alteração da ordem pública, tornando-se necessário deslocar-se a esta localidade uma força comandada pelo então Comandante da Secção de Beja, Sr. tenente João Tomás Carrajola, a fim de por cobro aos acontecimentos.

Este Sr. Oficial, que estava armado de pistola-metralhadora, tentou persuadir as amotinadas a dispersarem e nesse momento, devido ao automatismo da arma, esta disparou-se sem qualquer interferência do dito oficial, cuja bala atingiu a referida Eufémia, ferindo-a gravemente, a qual veio a falecer no hospital de Beja.”

O tenente Carrajola não foi a tribunal nem castigado nem sequer foi alvo de um inquérito interno. Apenas foi transferido para Aljustrel, onde morreu, em 1964.

Só após o 25 de Abril de 1974, 20 anos depois do homicídio, os restos mortais de Catarina Eufémia foram, finalmente, trasladados para Baleizão.

A trágica história de Catarina Eufémia transformou-se num hino à resistência fascista do Estado Novo.

Estátua de Catarina Eufémia em Baleizão (Créditos: pcp.pt)

Vários foram os poetas que se inspiraram na ceifeira de Baleizão.

Sophia de Mello Breyner Andresen:

CATARINA EUFÉMIA

Sophia de Mello Breyner Andresen
(Direitos reservados)

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método obíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste
E a busca da justiça continua

José Carlos Ary dos Santos:

RETRATO DE CATARINA EUFÉMIA

José Carlos Ary dos Santos (Direitos reservados)

Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado
.

Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.

Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.

Meu amor. Minha espiga. Meu herói
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.

Carlos Aboim Inglez:

AO RETRATO DE CATARINA

Carlos Aboim Inglez (Direitos reservados)

Esses teus olhos enxutos
Num fundo cavo de olheiras
Esses lábios resolutos
Boca de falas inteiras
Essa fronte aonde os brutos
Vararam balas certeiras
Contam certa a tua vida
Vida de lida e de luta
De fome tão sem medida
Que os campos todos enluta

Ceifou-te ceifeira a morte
Antes da própria sazão
Quando o teu altivo porte
Fazia sombra ao patrão
Sua lei ditou-te a sorte
Negra bala foi teu pão
E o pão por nós semeado
Com nosso suor colhido
Pelo pobre é amassado
Pelo rico só repartido

Tanta seara continhas
Visível já nas entranhas
Em teu ventre a vida tinhas
Na morte certeza tenhas
Malditas ervas daninhas
Hão-de ter mondas tamanhas
Searas de grã estatura
De raiva surda e vingança
Crescerão da tua esperança
Ceifada sem ser madura

Teus destinos Catarina
Não findaram sem renovo
Tiveram morte assassina
Hão-de ter vida de novo
Na semente que germina
Dos destinos do teu povo
E na noite negra negra
Do teu cabelo revolto
nasce a Manhã do teu rosto
No futuro de olhos posto

Luísa Vilão Palma:

LAIVOS DE AQUENTEJO

Luísa Vilão Palma (Direitos reservados)

[…]

Já faz tempo que a ceifeira, na voz de todas as ceifeiras, deixou rolar a foice entre o trigal, desesperada. Foi por mor do acrescento de uns tostões à jorna.
Ficou tamanho eco no infinito da gente que lutou até à exaustão.
A tua foice, Catarina.
Alentejo, vestimos os teus panos. Tu matas-nos a sede.

Mas foi o poema de António Vicente Campinas, intitulado “Cantar Alentejano”, que se popularizou através da música e da voz de José Afonso, que levou mais longe o nome de Catarina Eufémia.

António Vicente Campinas (Direitos reservados)

Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p’ra si
O Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p’ra voar
O Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar

“Cantar alentejano”, de José Afonso

30/05/2022

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Luís Bizarro Borges

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