Planície, peneplanície e pediplanície

 Planície, peneplanície e pediplanície

(sorumbatico.blogspot.com)

Florbela Espanca (3.bp.blogspot.com)

Sempre que me afasto da ficção em torno da cultura alentejana, em que o “ver ao longe”, facultado pela planura das suas paisagens, é um dos temas mais apetecidos e exaltados por poetas e prosadores, e me concentro nos ensinamentos que a geografia ou a geomorfologia colocaram à minha disposição, interrogo-me sobre a longa e complexa história geológica desta vasta superfície levemente ondulada por suaves outeiros (colinas) e abertos valados que inspirou Florbela Espanca. “Ó minha Terra na Planície Rasa”, são belas palavras suas, no livro “Charneca em Flor”. Antunes da Silva, José Saramago, Manuel da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues, Miguei Torga, Vergílio Ferreira e tantos outros aludiram, cada um no seu modo de sentir, à “planície” alentejana.

A fim de abordar uma explicação plausível para esta vasta superfície, há que precisar os conceitos de planície, peneplanície e pediplanície.

“Planície” aparece, aqui, entre comas porque, se bem que a palavra tenha perfeito cabimento como figura de estilo no discurso literário, não o tem na abordagem geográfica ou geomorfológica. Na origem, o termo planície, que nos chegou vindo do latim planitie significa, simplesmente, superfície plana. E, em rigor, plana é a superfície da água em repouso.

Lezíria do Tejo. (Créditos fotográficos: André Luís – portugaldelesales.pt)

Todavia, como vocábulo do léxico geográfico, “planície” refere uma extensão maior ou menor de terreno aplanado, de notada horizontalidade, limitada por vertentes, que dela sobem para as áreas envolventes, e, na maioria dos casos, a muito baixa altitude, onde a sedimentação supera largamente a erosão.

Campos do Mondego. (tastecoimbraregion.pt)

Planícies são, por exemplo, a lezíria do Tejo, os campos do Mondego ou os do Sado. Ora, no âmbito da geografia ou da geomorfologia, a chamada “planície alentejana” não corresponde, minimamente, a este conceito.

Peneplanície, versão portuguesa do inglês peneplain, foi descrita pelo geógrafo norte-americano William Morris Davis (1850-1934) como sendo um tipo de aplanação por acabar, a relativamente baixa altitude, fruto de um longuíssimo desgaste, durante centenas de milhões de anos, por parte da erosão fluvial. Corresponde, segundo ele, à superfície de vastas extensões de terreno no final de um ciclo de erosão, dito normal (no sentido de padrão, como base de comparação com outros processos de erosão) concebido para as regiões de clima temperado húmido.

O elemento de origem latina “pene-”, que Davis escolheu para antepor à palavra “planície”, significa “quase”, pelo que, para o autor, peneplanície quer dizer uma planície inacabada, em vias de o ser, cujo limite teórico, ainda não foi atingido, por ele entendido como uma “superfície plana e horizontal, ao nível do mar”. Este tipo de aplanação fez história na Geografia Física portuguesa relativamente à paisagem alentejana, sendo muitos os nossos geógrafos e os livros de ensino que citam ou tratam, com mais ou menos pormenor, a “peneplanície alentejana”.

Planície alentejana com a Serra do Caldeirão no horizonte. (Desenho de João Alveirinho Dias –dererummundi.blogspot.com)

Diga-se que o pensamento de Davis relativamente a este tipo de aplanação não é, de todo, original. Tem raízes antigas. Desde há muito que a ideia segundo a qual a erosão destrói o relevo e tem por meta a aplanação a muito baixa altitude faz parte do pensamento racional. No século X, os membros de uma fraternidade de filósofos ismaelitas, conhecida por “Irmãos da Pureza” (Ikhwan al-Safa, em árabe), que se admite ter estado sediada em Bassorá, no Iraque, escreveram, numa enciclopédia que nos legaram: “[…] os continentes, uma vez arrasados pela erosão, ficam ao nível do mar”.

Pediplanície, versão portuguesa do inglês pediplain, defendida por Lester Charles King (1907-1989), é bem mais original. Este geomorfólogo sul-africano concebeu-o e divulgou-o, em 1962, como sendo uma vasta superfície talhada em regime subárido, desenvolvendo superfícies muito bem aplanadas de muito leve inclinação (“pediments”) limitadas por vertentes abruptas, em recuo, paralelas a si próprias.

A denominada superfície de Beja, ainda sujeita a rasgos de erosão, desenhando os suaves outeiros e os abertos valados que marcam o seu ondulado característico. (tripadvisor.com.br)

Em minha opinião, grande parte da superfície de erosão alentejana (mais bem conservada na chamada superfície de Beja) não está por acabar, no conceito de peneplanície. Penso, sim, que já foi algo próximo de uma pediplanície, talhada há umas três ou quatro dezenas de milhões de anos, retocada, no mesmo tipo de ambiente climático, há uns dois e que está, agora, sujeita a rasgos de erosão, desenhando os suaves outeiros e os abertos valados que marcam o ondulado característico da sua bela paisagem.

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27/02/2023

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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