Plano Geral de Drenagem de Lisboa como solução para as cheias?
A 7 de dezembro, o gravoso temporal que se abateu sobre a Grande Lisboa deixou as autoridades e a população em pânico. Há muito que não tinha chovido tanto em tão pouco tempo. Os prejuízos terão sido avultados e houve algumas vítimas humanas. Porém, o temporal não desistiu e, na semana seguinte, a dose dos prejuízos, tendo atingido praticamente todo o país, repetiu-se com veemência inusitada na martirizada região.
Face ao ocorrido, o apelo das autoridades era para a permanência das pessoas em casa. Ao mesmo tempo, emergiram das abundantes e barrentas águas as habituais explicações da inevitabilidade da catástrofe e do desordenamento do território – a que se juntaram os fenómenos meteorológicos extremos por via das alterações climáticas. E as críticas atingiram a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), que não avisou a população, e a não concretização do Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL), por desinteresse dos políticos.
Embora convenientes, os avisos da ANEPC não resolvem. O que resolve é a prontidão de resposta às ocorrências. E o PGDL sofre das vicissitudes das grandes obras: é complexo, caro, incómodo, não dá votos e, provavelmente, não bastará para conter o ímpeto dos temporais.
A ocorrência de cheias e inundações é recorrente no Alentejo, na Beira Litoral, no Ribatejo e no Algarve, mas é crónica e devastadora na Grande Lisboa. Quem não sabe o que se passou em 1967, com a onda de destruição e de mortandade que assolou o concelho de Lisboa e os limítrofes?
O PGDL é o primeiro plano geral de saneamento da capital das últimas cinco décadas, depois dos estudos de Eduardo Arantes e Oliveira, em 1941, e de Pedro Celestino da Costa, em 1955.
Entre 2002 e 2022, Lisboa conta seis presidentes de câmara – Santana Lopes, Carmona Rodrigues, Marina Ferreira, António Costa, Fernando Medina e Carlos Moedas –, alternando entre Partido Social Democrata (PSD) e Partido Socialista (PS), mas com este a governar em 14 destes 20 anos.
Em fevereiro de 2006, Carmona Rodrigues anunciou a elaboração de um plano de drenagem (ideia iniciada em 2002), para melhorar a gestão das redes de esgotos e minimizar problemas como as inundações e a poluição, sendo o primeiro plano geral de saneamento da capital dos então últimos 40 anos. Em março de 2008, com António Costa, o executivo discutia um plano de drenagem e estudava se a equipa do consórcio Chiron/Engidro/Hidra iria ter luz verde para desenvolver as soluções para a rede de saneamento da capital, com um custo estimado em 140 milhões de euros.
O estudo apontava para a construção de quatro grandes reservatórios e de um túnel entre a Avenida Almirante Reis e Santa Apolónia, classificando como prioritárias as intervenções na zona de Alcântara, área da cidade particularmente afetada pelas cheias.
Em outubro de 2010, após a ocorrência de inundações na cidade, o PSD acusou António Costa de “não considerar as obras no saneamento de Lisboa uma prioridade” e exigiu a implementação urgente do Plano Geral de Drenagem, recordando que o mesmo foi pedido em 2006, quando a autarquia era liderada pelo PSD, e a elaboração ficou concluída em 2008. E o edil justificou o atraso na implementação do plano de drenagem com a falta de condições da Câmara para assegurar o investimento de 160 milhões de euros.
Três anos depois, em 2013, o presidente socialista afirmou que era “preciso executar” o plano, não tanto pelas cheias – que disse não terem causado problemas graves nos últimos anos –, mas pela “gestão mais ecológica e eficiente” da água. E, em 2014, admitiu recorrer ao Fundo de Coesão (FC) para financiar o plano, que envolveria o referido investimento. Nesse ano, em outubro, houve inundações na cidade e, em resposta às críticas da oposição, afirmou: “O plano de drenagem não faz desaparecer estas situações. A solução não existe.”
A 13 de julho de 2015, com Fernando Medina, foi apresentado o Plano Geral de Drenagem de Lisboa 2016-2030, para construir, até 2019, dois túneis, um entre Santa Apolónia e Monsanto e outro entre Chelas e o Beato, para combater as inundações na cidade, envolvendo um custo de 170 milhões de euros.
Após a discussão de como financiar a obra sem fundos da União Europeia (UE), a alteração do investimento e o lançamento de concursos públicos para a implementação do PGDL, o município aprovou, em 2017, a contratação do empréstimo de 100 milhões de euros com o Banco Europeu de Investimento (BEI), o primeiro de um total de 250 milhões de euros.
O engenheiro José Silva Ferreira, coordenador do projeto, disse, em fevereiro de 2019, que as obras começariam no primeiro semestre de 2020 e estimou, em setembro de 2019, que os túneis entre Monsanto e Santa Apolónia e entre Chelas e o Beato estariam concluídos em 2024. Em dezembro de 2020, a Câmara aprovou a adjudicação da empreitada de construção dos dois túneis, no valor de cerca de 133 milhões de euros.
Após as eleições autárquicas de 2021, o executivo municipal requereu ao Governo a declaração de utilidade pública, “com caráter de urgência”, da expropriação de imóveis e da constituição de servidões administrativas, para a implementação do Plano Geral de Drenagem 2016-2030.
Em julho deste ano, a autarquia viabilizou a contratação, junto do BEI, de um empréstimo de até 90 milhões de euros, a última parcela do empréstimo-quadro de 250 milhões. Depois, a Câmara informou que as obras para a construção dos dois túneis começariam em setembro, na zona de Campolide, sem indicar datas concretas, mas antecipando condicionamentos no trânsito.
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É de registar que, em 2008, o arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, em declarações à agência Lusa, defendia a recuperação das ribeiras e a retenção a céu aberto das linhas de água através de pequenas barragens. Sem comentar as soluções propostas, por desconhecer o plano, adiantava que a “manutenção das ribeiras, a céu aberto, e não como canalizações, é uma solução barata” para a prevenção de cheias. Além disso, propunha a construção de uma bacia de retenção à saída de Amadora, para acabar com as frequentes inundações na zona de Alcântara.
O plano de drenagem, então apresentado, previa a construção de um túnel com a extensão de um quilómetro, com profundidade de 65 metros, entre o Martim Moniz e Santa Apolónia, como expôs o engenheiro José Saldanha Matos, da Hidra. Era solução de “transvase” devido à impossibilidade de se fazer um reservatório na zona. A par disso, previa a construção de quatro grandes reservatórios “para atenuação dos caudais máximos”, assim como a construção ou reconstrução de coletores com falta de capacidade de escoamento, aumento da capacidade elevatória da zona ribeirinha, entre outras medidas.
Na bacia de Alcântara, previa a construção de um reservatório, na zona de Benfica-Campolide, e de outro no ramal das Avenidas Novas. Previa a construção de quatro comportas, junto do centro comercial Fonte Nova, próximo do largo General Sousa Brandão, junto da rua Inácio de Sousa e em São Domingos de Benfica. E previa a construção de reservatórios no Intendente, no Vale de Chelas e na zona da Avenida de Berlim e da Avenida Infante D. Henrique.
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O PGDL é apontado como uma obra importante para enfrentar cheias e inundações na capital, mas as grandes intervenções, como a construção de túneis, só arrancaram este ano. “Nós não evitamos cheias. Temos é que estar preparados para elas”, dizia, em outubro de 2002, Carmona Rodrigues, então vice-presidente da Câmara Municipal, referindo que o município estava a preparar um plano para minimizar os efeitos das cheias em Lisboa. Porém, as inundações da noite de 7 de dezembro de 2022 na capital, em particular nas zonas de Alcântara, da Baixa, do Campo Grande, do Campo Pequeno e de Benfica, voltaram a trazer à tona a importância da concretização do PGDL, com o atual presidente da Câmara, Carlos Moedas, a prometer a construção dos dois túneis até 2025, considerando que, se a empreitada já tivesse sido feita, as situações de cheias registadas não teriam acontecido.
Com um período de execução de 2016 a 2030 e um investimento total de cerca de 250 milhões de euros, o PGDL é a obra invisível que protegerá a cidade para os impactos das alterações climáticas, nomeadamente para evitar cheias e inundações; permitir a reutilização de águas para alimentar e reforçar a rede de rega de espaços verdes, a lavagem de ruas e as redes de combate a incêndios; e diminuir a fatura da água potável. Considerada a obra municipal de maior envergadura alguma vez concretizada pela Câmara, o PGDL prevê a construção de dois grandes túneis de drenagem para transvase de bacias, numa empreitada de cerca de 133 milhões de euros e que se prevê concluída no início de 2025. Um deles começa em Campolide (na Quinta José Pinto) e sai em Santa Apolónia, com a extensão de cerca de cinco quilómetros, e o outro será construído a partir do Beato, na Avenida Infante D. Henrique (perto da Rua do Açúcar), até Chelas (perto do Convento de Chelas), com a extensão de um quilómetro. A obra terá sete estaleiros (Campolide, Avenida da Liberdade, Rua de Santa Marta/Barata Salgueiro, Avenida Almirante Reis/Rua Antero de Quental, Santa Apolónia, Chelas e Beato) e apresentará condicionamentos à superfície.
Dada a sua complexidade, garantem-se as condições possíveis em termos de condicionamentos (mantendo circuitos pedonais, acessibilidades, mobilidade suave) e serão atenuados os impactos no trânsito da cidade, em particular, garantindo condições de operação aos transportes públicos, corredores de emergência e de socorro. O trabalho – feito em ligação com a União de Associações do Comércio e Serviços (UACS) e com a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) – é acompanhado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC).
Sobre os impactos da perfuração nos edifícios à superfície, a edilidade lisboeta sustenta que a tuneladora opera à profundidade média de 30 a 40 metros e não se prevê qualquer dano em qualquer imóvel. A construção dos dois túneis será feita com a tuneladora H2OLisboa, fabricada na China, que tem 130 metros de comprimento e “avança cerca de 10 metros por dia”.
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São múltiplas as causas das cheias: a forte pressão urbana, sobretudo desde 1960, traduzida pelo aumento da área construída, incluindo as áreas urbanas ilegais; o desordenamento do território daí resultante; o aumento do escoamento superficial e da carga sólida transportada (destruição do coberto vegetal, aumento de erosão das vertentes, impermeabilização dos solos); o incremento da vulnerabilidade decorrente da ocupação indevida dos leitos de cheia (areias e outros inertes) e, dos leitos menores dos cursos de água; maior impermeabilização do solo; tempestades com origem no mar; degelos nas serras; e a diminuta altura e espessura do molhe do Tejo.
Por isto e porque a Grande Lisboa precisava de um plano intermunicipal, pois as linhas de água impedidas e atreitas ao transbordo têm muitas proveniências, o PGDL não será suficiente. Todavia, é de saudar que, a par do escoamento das águas, se montem mecanismos eficazes de retenção e de reutilização das mesmas. Aguardemos em crítica ativa e cooperante.
19/12/2022