Primavera e cultura: ambas para todos?

 Primavera e cultura: ambas para todos?

(© VJS – sinalAberto)

Com o advento da Primavera, com os dias mais quentes e com a “passagem” da Páscoa que, ao menos por uns dias, traz os filhos da diáspora, explodem eventos culturais e “animatórios” por todo o lado. Em Coimbra, o oásis de abril sofre ainda de uma contração especial pelo facto de a “queima”, logo a seguir, ensurdecer a cidade e sugar todas as atenções. É, pois, uma boa época para refletir sobre os caminhos da cultura que temos e que queremos.

Aquando da elaboração da candidatura a capital europeia da cultura, o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC) fez um estudo sobre os hábitos culturais da população. Os trabalhos, coordenados pelos professores Paulo Peixoto e Claudino Ferreira, decorreram entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020 e revelaram um “desinteresse e distanciamento cultural da população”, mesmo entre aqueles que possuem níveis de instrução superior e médio.

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Seria útil, no final deste ano, voltar a avaliar – já sem a pressão da competição entre cidades – em que medida e em que sentido esta realidade se alterou. Ou não. Dificilmente nos podemos contentar com uma situação em que mais de metade da população não acede aos bens culturais existentes fora de casa e da televisão ou do “online”. É um pouco como querer fazer andar uma viatura com duas rodas gripadas ou, se preferirem, tocar guitarra com metade das cordas; ou, ainda, ler só as páginas ímpares de um livro. Tudo pela metade.

Uma boa e nova política cultural, numa cidade que se pretende luminosa e capaz de irradiar para a região das Beiras, não pode desperdiçar dezenas de milhares de concidadãos. Não apenas por razões democráticas, mas também porque, entre aqueles que, neste momento, não acedem aos bem culturais, estão memórias preciosas, dos próprios e das suas comunidades; estão jovens talentos nas escolas e nas empresas; estão pessoas com invulgares potencialidades culturais. Sem eles – todos –, permaneceremos todos mais limitados.

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Perguntareis: como? Começo por bons exemplos, que aí estão a apontar os caminhos. O Teatrão tem vindo a desenvolver, junto das comunidades vizinhas da Oficina Municipal de Teatro, um importante trabalho de motivação e de ressurgimento de orgulho próprio das pessoas, através da dramatização das suas estórias pessoais e grupais. Com a participação dos próprios, nos seus locais, lado a lado com atores, músicos, artistas, os resultados são muito interessantes. Não se trata, pois, de injetar dinheiro no “ranchinho” do bairro, para fazer aquilo que alguém decidiu que “é do que eles gostam”. Trata-se de dar instrumentos às pessoas concretas para que elas possam participar numa criação qualificada e igualmente sua, da qual nascerão novas relações com os agentes culturais que se tornaram próximos e até amigos. Novos públicos? Pois, não me admira que muitas daquelas mulheres e homens da Arregaça passem a ir aos espetáculos do Teatrão algumas vezes por ano.

Algumas escolas do município de Coimbra, estimuladas pelo Plano Nacional das Artes, estão a conseguir que os jovens alunos participem em espetáculos e eventos musicais e teatrais, bem como em visitas a museus e em ações ambientais. Vencendo dificuldades de toda a ordem, desde o transporte que não lhes é facilitado, até às autorizações parentais que não chegam a horas, estes professores estão a alargar os horizontes culturais da população juvenil. Assim, precisam de (e merecem) mais apoio e reconhecimento.

Alguns outros agentes culturais estão a iniciar processos de participação com base em redes de proximidade dentro da malha urbana mais densa do centro de Coimbra. Na Baixa está a nascer um coro de mulheres, por iniciativa do ateliê “A Fábrica”. Na Praça da República, uma rede aberta de organismos académicos e de estabelecimentos comerciais, envolvendo o Teatro Académico de Gil Vicente e bares muito diversos, está a preparar a reedição da “Festa da Praça” para o próximo 5 de outubro. 

(© VJS – sinalAberto)

Há, seguramente, outros exemplos, que não conheço tão bem. Mas o que verdadeiramente importa é a necessidade de consolidar e de multiplicar estas iniciativas e redes, alargando-as a muitos outros territórios e escalões etários, designadamente a muitos idosos terrivelmente isolados nos lares e nos centros de dia, ou nas suas casas.

A Relvinha e o Bairro do Brinca anseiam pelo centro social e cultural, lançado em 2003, com o projeto “Relvinha.CBR_X”, promovido pela Associação Cívica “Pro Urbe”, durante a Coimbra Capital Nacional da Cultura. No planalto do Ingote, o centro cívico projetado por Carrilho da Graça pode mudar a vida de milhares de pessoas e demonstrar que a democracia também é capaz de somar a cultura e o desporto à habitação, não ficando atrás do que a ditadura fez no hoje denominado Bairro Norton de Matos.

Civic Center, Planalto do Ingote (Coimbra, 2004), de Carrilho da Graça (concurso por convite – 1.º prémio). (carrilhodagraca.pt)

Uma nova política cultural tem de nascer de uma nova conceção democrática da cultura e do poder que ela confere àqueles que a praticam. Quanto mais cultos, mais exigentes. Quem é que tem medo disso?

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06/04/2023

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Jorge Gouveia Monteiro

Exerceu funções de direcção política no Partido Comunista Português. Foi vereador da Câmara Municipal de Coimbra, entre 1997 e 2009. Ajudou a fundar e a desenvolver múltiplas associações de moradores e culturais, bem como a Associação Grupo Gatos Urbanos. É coordenador da Direcção do Movimento Cidadãos por Coimbra (CpC) e sócio-gerente do bar e espaço cultural Liquidâmbar.

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