Programa Escola Digital não decorreu conforme o contratualizado (?)

 Programa Escola Digital não decorreu conforme o contratualizado (?)

Créditos: Gerd Altmann (Pixabay)

A conclusão é do Tribunal de Contas (TdC), que, no relatório de auditoria sobre a Fase Zero da aquisição de computadores e conectividade para alunos com Ação Social Escolar (ASE), publicado a 26 de julho, refere que, dos nove milhões de euros com o imposto sobre o valor acrescentado (IVA), ou 7,4 milhões de euros (7,4M€) sem IVA, previstos para a rede móvel, foram pagos apenas 6,6 milhões com IVA e que houve equipamentos entregues tardiamente aos alunos, apesar de terem sido faturados e pagos.

Face à desconformidade, estimada em 1,3 M€, com IVA, a Secretaria-Geral da Educação e Ciência (SGEC) empreendeu a pertinente verificação e esclareceu que, à data da entrega dos equipamentos “ainda se considerava possível financiamento pelo POCH (Programa Operacional do Capital Humano), inserido no Portugal 2020 [acordo de parceria adotado entre o nosso país e a Comissão, que reúne a atuação dos cinco fundos europeus estruturais e de investimento, em que se definem os princípios de programação numa política de desenvolvimento económico, social e territorial para promover, no território nacional, entre 2014 e 2020], motivo pelo qual continham a referência ao cofinanciamento por fundos comunitários”.  

A auditoria do TdC teve por objetivo verificar a conformidade legal dos procedimentos de contratação pública, os respetivos contratos e a sua execução material e financeira.

Na verdade, a SGEC celebrou, em 2020, seis contratos, três de aquisição de 100 mil computadores portáteis e três de conectividade para os alunos das escolas públicas abrangidos pela ASE, enquadrados no regime excecional de contratação pública e de autorização da despesa constante do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, ratificado e desenvolvido pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.

(© Pplware – SAPO)

A autorização para a realização da despesa com as aquisições foi, primeiro, em 2020, apenas para estabelecimentos públicos dos ensinos básico e secundário e condicionada a financiamento assegurado a 100 % por fundos europeus, e, depois, em 2021 (com efeitos a 2020), alargada a alunos com ASE, dos estabelecimentos de ensino particulares e cooperativos, com contrato de associação, permitindo o acréscimo de contrapartida pública nacional. Os contratos foram celebrados em 2020, sendo o montante total contratualizado, financiado por fundos europeus, de 31,8 M€ (s/IVA) – 24,4 M€ relativos aos computadores portáteis e 7,4 M€ à conectividade. E as dotações do Orçamento de Estado alcançaram 318 mil euros.

A distribuição dos computadores portáteis e da conectividade às escolas decorreu em desconformidade com o estabelecido nos contratos, já que abrangeu estabelecimentos de ensino particulares e cooperativos, com contrato de associação (para alunos com ASE)

Na Fase Zero, a que respeitam os contratos auditados, previu-se a distribuição dos 100 mil computadores pelos alunos dos ciclos do ensino básico nas regiões de Lisboa e do Algarve e pelos alunos do ensino secundário de todas as regiões (Alentejo, Algarve, Centro, Lisboa e Norte) dos estabelecimentos públicos de ensino. Porém, a distribuição dos computadores portáteis e da conectividade às escolas decorreu em desconformidade com o estabelecido nos contratos, já que abrangeu estabelecimentos de ensino particulares e cooperativos, com contrato de associação (para alunos com ASE), o que se previra. E, apesar de, indevidamente, estes estabelecimentos não terem sido considerados (pois a distribuição de computadores deveria incluir todos os alunos com ASE), verificou-se que o âmbito do objeto dos contratos foi alargado, resultando na alteração do modo de execução das prestações assumidas pelas partes, modificando, assim, o seu conteúdo obrigacional. Mas houve alguma correção, ainda que atamancada.

À luz das disposições legais aplicáveis, nomeadamente alínea a) do no n.º 1 do artigo 311.º do CCP (Código dos Contratos Públicos), qualquer alteração contratual não pode revestir forma menos solene do que a do contrato celebrado, pelo que se devia ter procedido à outorga das respetivas adendas, o que não sucedeu. Além disso, os computadores distribuídos àqueles estabelecimentos, com contrato de associação, não beneficiaram do financiamento de fundos europeus e a sua aquisição foi suportada pelas dotações do Orçamento do Estado.

A distribuição dos computadores portáteis e da conectividade também não respeitou os prazos contratualmente previstos (10 de setembro e 15 de outubro, para os computadores, e 25 de setembro e 15 de outubro, para a conectividade, todos de 2020), pois as entregas às escolas ocorreram em finais de 2020 e as entregas aos alunos ainda se alongaram pelos primeiros meses de 2021, o que levou a um ajustamento, em baixa, dos valores contratuais. Entretanto, o Ministério da Educação (ME) vinha anunciando a entrega de mais computadores.   

(aevp.net)

No atinente aos contratos de conectividade, observou-se que os pagamentos, no total de 6,6 M€, com IVA, ficaram aquém do montante contratualmente previsto de 9,0 M€, com IVA (7,4 M€, sem IVA). Nestes contratos foi estabelecido que as respetivas prestações eram devidas desde a data da ativação até 31 de agosto de 2021, mas foi paga a prestação de serviços de conectividade de equipamentos entregues às escolas, não aos alunos, pelo que sem qualquer ativação. A conclusão da verificação, entretanto empreendida pela SGEC, da desconformidade dos montantes faturados à luz das obrigações contratuais e da faturação emitida, que a auditoria estima em cerca de 1,3 M€, mais IVA, é crítica para determinação de eventuais pagamentos indevidos.

As verificações efetuadas e as situações sinalizadas pelas escolas levaram a identificar várias deficiências e insuficiências, designadamente: deficiente identificação do financiamento nos equipamentos; fraca qualidade dos computadores, computadores recusados, por afetar e mal acondicionados; deficiente funcionamento da plataforma de registo dos equipamentos. Tais situações suscitam a necessidade de se examinar a concreta afetação do financiamento envolvido, o adequado funcionamento dos equipamentos e a eficácia dos sistemas de acompanhamento, gestão e controlo, tendo em vista a boa gestão dos recursos públicos aplicados e dos equipamentos fornecidos, o aperfeiçoamento dos respetivos sistemas e, consequentemente, o sucesso da Escola Digital e a modernização do sistema educativo.

O TdC recomendou à SGEC que prossiga o apuramento de desconformidades entre os montantes faturados e pagos no âmbito dos contratos de aquisição de hotspots e serviços de conectividade e os montantes devidos à luz das obrigações contratuais

Neste contexto, as conclusões do Relatório da auditoria à “Aquisição de computadores e de conectividade para alunos com Ação Social Escolar – Fase Zero” suscitaram a formulação de recomendações dirigidas à SGEC para prosseguir o apuramento de desconformidades no âmbito dos contratos de conectividade e para adotar as medidas necessárias à melhoraria dos sistemas de acompanhamento, gestão e controlo dos equipamentos.

Assim, o TdC recomendou à SGEC que prossiga o apuramento de desconformidades entre os montantes faturados e pagos no âmbito dos contratos de aquisição de hotspots e serviços de conectividade e os montantes devidos à luz das obrigações contratuais; e que adote as medidas necessárias para suprir as deficiências e insuficiências identificadas na auditoria e melhorar os sistemas de acompanhamento, gestão e controlo dos equipamentos.

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Já em 22 de julho de 2021, o TdC criticava o atraso do desenvolvimento do Programa Escola Digital. Na verdade, uma auditoria do TdC ao Ministério da Educação (ME) revelava, em 2021, que, embora o ensino à distância durante a pandemia de covid-19 “tenha sido implementado em todas as escolas e anos de escolaridade”, não estavam reunidas as condições para a sua eficácia. Em questão estava a existência de alunos e professores com carências em competências digitais, sem computadores, dificuldades no acesso à Internet e de escolas com meios obsoletos.

(© Pplware – SAPO)

No relatório da auditoria realizada para determinar se o ME assegurou – aos 1,2 milhões de alunos dos ensinos básico e secundário – o acesso ao ensino à distância, o TdC detalhava que, apesar de a falta de meios digitais (vista como o “obstáculo mais significativo”) ter sido mitigada por apoios de autarquias, associações e entidades privadas, “não foi solucionada, subsistindo um número não quantificado de alunos sem os meios apropriados”.

Foram também identificadas “insuficiências na recolha de informação” sobre o impacto da pandemia no regime de ensino presencial, misto ou à distância em cada escola, incluindo dados como o número de alunos sem um ou mais professores e sem meios digitais, o número de professores em ensino à distância ou as horas letivas previstas, mas não lecionadas.

Não havia um “plano estratégico para a substituição dos meios digitais adquiridos para as escolas”, nem a implementação de “procedimentos centralizados de controlo preventivo da duplicação de apoios em meios digitais”

Segundo o TdC, a autorização para a aquisição de 386 milhões de euros em meios digitais para as escolas foi tardia, acontecendo só no final do ano letivo 2019/20, e estando condicionada à aprovação de fundos comunitários. Por sua vez, os meios digitais em questão só começaram a chegar aos alunos no ano letivo de 2020/21 e a mais de 60% só iria chegar no ano letivo seguinte, como explicava explica o TdC, recordando que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) prevê investimentos de 559 milhões de euros na Escola Digital.

Também não havia um “plano estratégico para a substituição dos meios digitais adquiridos para as escolas”, nem a implementação de “procedimentos centralizados de controlo preventivo da duplicação de apoios em meios digitais”, retirando eficácia à distribuição prioritária entre os alunos mais carenciados e aumentando o risco de desperdício do dinheiro público.

Por isso, o TdC recomendava ao ME que se concretizasse o programa de investimentos para a digitalização das escolas; que fosse elaborado um plano de substituição dos meios digitais; e que o sistema de gestão escolar fosse aperfeiçoado, bem como sistema de gestão e controlo de meios digitais de modo a prevenir a duplicação de apoios.

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Clamar, como o fizeram alguns jornais, que o Estado pagou 1,3 milhões de euros por ligações-fantasma à Internet não passa de alarme inexato, pelo que só a leitura dos respetivos relatórios, embora alguns de teor verrino, permite esclarecer cabalmente o que se passou.

Provavelmente, em circunstâncias destas, concorrem empresas que não estão preparadas para o encargo, não resistem a priorizar clientelas mais fiéis ou com menor volume de encomenda, aproveitando-se da fragilidade da gestão pública e do excesso de burocracia. Depois, em tempo de pandemia, os materiais não abundavam e eram caros, como sucede agora em ambiente de guerra.

(© Tekcore)

Talvez o ME (que fez muito e depressa) – enquanto complexa e extensa máquina na administração pública – não disponha, aliás como outros departamentos do Estado, de um número avantajado de técnicos superiores, visto que o setor público paga mal, em comparação com o privado; e não oferece perspetiva atraente de carreira, embora tenha garantido estabilidade no emprego. Como, não raro, muita gente pensa mais no que o presente lhe oferece do que num futuro de qualidade em situação de incapacidade ou de velhice, é tentador deixar-se levar por quem hoje pague mais. 

Além disso, os decisores políticos têm um tempo de lentidão que não se compadece com a pressa ditada pelas circunstâncias. E, se acrescentarmos a morosidade acentuada da administração… Mas já a vi em empresas privadas a entregar matérias para eventos, quando eles já estavam concluídos.

28/07/2022

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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