José Carlos Xavier: “Proteção da Antártida terá de ser feita entre todos os países”

 José Carlos Xavier: “Proteção da Antártida terá de ser feita entre todos os países”

José Xavier durante uma das reuniões do Tratado da Antártida.

“O valor principal de Portugal estar muito ativo nas reuniões do Tratado da Antártida, é mostrar a qualidade da ciência/educação/política Antárctica Portuguesa a mais de 50 países, num contexto de cumprimento dos princípios do Tratado, dando visibilidade ao trabalho realizado pelas equipas portuguesas”. As palavras são do  chefe da delegação nacional naquela importante estrutura internacional, quando se celebra, a 1 de dezembro, mais um aniversário sobre a sua ratificação.

Dez anos após a adesão de Portugal ao Tratado da Antártida, José Carlos Xavier, em entrevista ao sinalAberto, passa em revista as vantagens da existência de uma política consensual sobre uma vasta área do planeta e destaca o papel do país nessa comunidade de nações.

Declaração do 25.º aniversário do Protocolo de Proteção Ambiental.

SinalAberto — O que simboliza este tratado e o que é que ele defende?

José Carlos Xavier — Portugal ratificou o Tratado da Antártida a 29 de Janeiro 2010, num contexto em que a região Antártica é cerca de 10% do planeta: possui muitos recursos, tem um papel essencial no estudo das alterações climáticas e com implicações planetárias (exemplo: existe 3-5km de gelo por cima deste continente com potencial de poder aumentar o nível do mar globalmente em mais 60 metros de altura). Neste contexto, o Tratado, baseado num número reduzido de artigos, assenta em três pilares principais: na Ciência, na Cooperação Internacional e na Proteção Ambiental da Antártida. Sendo considerado um dos Tratados mais bem sucedidos da História, fez com que a região fosse considerada uma área devotada para a ciência e para a Paz, onde não são possíveis ações militares ou exploração de recursos minerais. Mais, tem desenvolvido medidas firmes, como por exemplo, na gestão de recursos marinhos (através da Convenção para a Conservação de Recursos Marinhos Vivos Antárticos – CAMLR), na proteção ambiental (através do Protocolo para a proteção ambiental Antártica que levou ao estabelecimento do Comité para a Proteção Ambiental, e confirmando a proibição da exploração mineral). Atualmente, são mais de 50 países que se reúnem anualmente para debater questões relacionadas com o Tratado, de modo a que ele possa ser continuamente melhorado.

sA —  Como é que ele é posto em prática e quem assegura o seu cumprimento?

JCX — O Tratado defende que a região a sul dos 60 graus Sul não pertence a nenhum país. Neste contexto, qualquer país do Tratado pode fazer inspeções em bases científicas ou noutras instalações de outro país, de modo a demonstrar a abertura de cooperação entre estes. Assim, nas reuniões do Tratado da Antártida é normal haver relatórios sobre inspeções com sugestões/recomendações de como se pode melhorar o modo de fazer ciência na Antártida, sempre numa perspetiva positiva e cooperante. Resumindo, todos os países que subscrevem o Tratado asseguram o seu cumprimento.


sA – Como é que funcionam as reuniões, qual a sua periodicidade, como é que um país pode ter voz, se se quiser juntar ao Tratado?

JCX — As reuniões do Tratado da Antártida são anuais, organizadas pelos países consultivos. Os países não-consultivos, como Portugal (cujo programa ainda se está estabelecer-se),  podem apresentar determinados artigos sobre os temas em debate nas reuniões que se podem traduzir em leis (medidas/recomendações). Para aderir, um país tem apenas de demonstrar interesse oficial ao secretariado do Tratado da Antártida e publicar na sua legislação nacional a sua aceitação. As reuniões anuais duram mais de 10 dias e são muito intensivas, pois são apresentados dezenas de artigos sobre uma grande variedade de assuntos relevantes para o Tratado.

SA – Sendo Portugal um país temperado, relativamente afastado dos polos, que importância tem a Ciência Polar para Portugal?

JCX — Na minha perspetiva, a Antártida é relevante para Portugal a 3 grandes níveis:

1. Vertente Científica: – Com a Antártida a ter um papel fundamental em questões planetárias (como as alterações climáticas, gestão de recursos e o degelo), Portugal precisa de ter massa crítica sobre como estes fenómenos globais podem afetar o país, mesmo que estejamos bem longe (tal como muitos outros países, como o Canadá, Suíça ou a Noruega). Possuindo equipas científicas a trabalhar internacionalmente nestas questões com outros países, poderemos não só adquirir métodos e técnicas aplicáveis em Portugal/Europa, mas também contribuir ativamente para um melhor conhecimento global da região Antártica num contexto planetário, com inúmeras vantagens. Existe também a excelente oportunidade de formar gerações de novos cientistas Portugueses com uma capacidade e qualidade muito maiores.

Uma reunião do Tratado da Antártida (Créditos: José Xavier)

2. Vertente política:  Com Portugal nas reuniões do Tratado da Antártida, é possivel dar voz ao que Portugal faz, em que possamos tirar dividendos ao nível cientifico, geo-político e obtenção de conhecimentos sobre questões importantes para o nosso país (como por exemplo, o impato das alterações climáticas nos ecossistemas, legislação aplicada a áreas protegidas, implicações do degelo no resto do planeta e medidas a tomar, compreender a vertente diplomática nas decisões por unanimidade).

3. Vertente Educacional: Com Portugal a ter membros de mais 10 equipas de Universidades e Institutos a fazer ciência Antártica, permite uma preparação elevada dos cientistas em promover a importância da ciência na sociedade, a importância da Antártida para o planeta, como se trabalha na Antártida e como pode inspirar gerações de jovens para serem melhores cidadãos. Através da Associação dos Jovens Cientistas Polares (APECS), Polar Educators International (PEI), com a chancela do Programa Polar Português, inúmeros projetos e iniciativas (exemplo das SEMANAS POLARES, com  objetivos de levar cientistas polares às escolas) já tiveram lugar com escolas de todo o país.

sA —Acha que que Portugal demorou demasiado tempo a fazer parte deste Tratado? Qual o valor que este proporcionou a Portugal e, mais em concreto, aos cientistas portugueses?

JCX — Julgo que Portugal aderiu ao Tratado da Antártida na altura certa, pois até ao fim dos anos 90 havia apenas casos isolados de cientistas portugueses a trabalhar em equipas de outros países. Só com a preparação para o Ano Polar Internacional 2007-08 é que se compreendeu que possuímos já algumas equipas suficientemente estruturadas para desenvolver um programa polar, que hoje chama-se Programa Polar Português. O valor principal de Portugal estar muito ativo nas reuniões do Tratado da Antártida, é mostrar a qualidade da ciência/educação/política Antárctica Portuguesa a mais de 50 países, num contexto de cumprimento dos princípios do Tratado, dando visibilidade ao trabalho realizado pelas equipas portuguesas. Mais, pode permitir abrir portas para novas colaborações internacionais.


sA — Há quanto tempo está indigitado como embaixador por Portugal no tratado? Durante estes 10 anos em que Portugal faz parte, o que é que se conseguiu alcançar?

JCX — Sou o chefe da delegação de Portugal nas reuniões do Tratado desde 2013, quando Portugal possuiu representantes presenciais nas reuniões pela primeira vez, cuja delegação inclui também elementos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os resultados destes primeiros anos são muito fortes e estão traduzidos em mais de 20 artigos apresentados nas reuniões do Tratado, em áreas como alterações climáticas, gestão ambiental, toxicologia, monitorização e educação. O objetivo atual é reforçar a qualidade do trabalho realizado.


sA — O que acha que Portugal poderia fazer para ajudar mais na proteção da Antártida?

JCX — Continuar a focar-se na excelência da ciência, cooperação internacional e em contribuições nas reuniões do Tratado para que melhorem ainda mais o funcionamento e eficácia do Tratado da Antártida.

sA — No início, quando da criação do tratado, este não previa a indústria crescente do turismo. Entende que deveria ser atualizado, de forma a regulamentar esta indústria emergente?

JCX — O papel do turismo é debatido todos os anos, e tem havido avanços na legislação aplicada a turistas e ao modo de chegar à Antártida. Aliás, através da IAATO (International Association of Antarctica Tour Operators) tem sido possível ter avanços significativos. Com o aumento significativo de turistas nestes últimos anos, irá certamente exigir-se uma maior avaliação de como se poderá ter turistas na Antártida  de um modo seguro, sustentável e sem impatos significativos nos ecossistemas no futuro. O Tratado da Antártida tem estado a trabalhar nesse sentido.


sA – Nos últimos anos, as críticas à desatualização do tratado têm sido cada vez maiores. Há quem ache que o que este defende é demasiado simples para os dias de hoje, nomeadamente tudo o que trata sobre tecnologia, problemas ambientais ou até mesmo política. Concorda com a posição?

JCX — Não. O que faz o Tratado da Antártida ser um dos Tratados de maior sucesso da história é porque possui uma boa plataforma para a obtenção de recomendações em que todos os países se revêem. A demora em chegar a consensospode ser moroso, mas quando se chega a um acordo, ele tende a perdurar no tempo. Isso demonstra o seu sucesso. Concordo que, com a urgência de alguns assuntos, exigirá que as ações sejam mais rápidas no futuro.


sA – Uma dúvida levantada pelos críticos é a exploração ilegal dos recursos naturais da Antártida: consideram que se devia dividir a região por países, a fim de evitar casos como a pesca ilegal no Mar de Ross, por exemplo. Entendem que cada país tem a sua quota parte e defendê-la, como já acontece no Árctico, com países como a Noruega, era a melhor forma de se evitar esta exploração ilegal. Concorda com esta perspectiva?

JCX — Não. A minha opinião pessoal é que a gestão de uma região tão grande como a Antártida, deverá ser feita coletivamente com o empenho e dedicação de todos os países do Tratado da Antártida. No caso dos recursos marinhos, isso torna-se mais óbvio, pois estes recursos são móveis (ex. os peixes migram entre regiões) e criar barreiras artificiais iria dificultar a sua gestão coletiva. Julgo que uma das soluções possíveis  futuras da pesca ilegal será feita através de fiscalização por satélite sustentada por uma coordenação gerida pela Comissão para a Conservação de Recursos Marinhos Vivos Antárticos (CCAMLR), além de um forte programa cientifico de monitorização e fiscalização.

José Xavier (segundo a contar da esquerda) durante a sua última expedição à Antártida em 2019. (Créditos: Ricardo Matias)

sA —  Um dos grande objectivos do Tratado é a criação de Áreas Marinhas Protegidas, a fim de evitar a sua sobreexploração e conservar estes meios pristinos. Atualmente, já existem duas dessas áreas e há mais três que foram propostas, mas que não conseguiram o consenso de todos os países. Pergunto-lhe, depois de apresentados todos os argumentos sobre o aumento das alterações climáticas e da sobreexploração de pesca nestas áreas, quais é que poderão ser as razões para alguns países não chegarem ao tal consenso?

JCX — As Áreas Protegidas Marinhas são discutidas e aprovadas pela Comissão para a Conservação de Recursos Marinhos Vivos Antárticos (CCAMLR), em que existem diferentes pontos de vista de como os recursos marinhos devem ser geridos: uns países mais pró-pesca, outros países mais pró-conservação, mas creio que todos os países são pró-sustentabilidade dos recursos. Conjugar interesses nacionais, científicos e geopolíticos num determinado contexto é complexo e existem assuntos cuja solução precisa de tempo. Na perspetiva de Portugal é interessante observar qual a legislação que está a ser aprovada nas suas águas internacionais da Antártida, de modo a perceber como poderá ser útil ao nível nacional. Por outro lado, é essencial reconhecer que ainda existe ciência a fazer na região Antártica para compreender como melhor gerir estes recursos…é sem dúvida um trabalho em progresso constante em que a ciência e a política têm de trabalhar juntos.


sA – E que implicações é que a espera de mais um ano, em que se bateram novos recordes de temperaturas altas, podem ter para estas regiões?

JCX — Politicamente presumo que muito poucas, pois julgo que estas discussões sobre a aprovação de novas áreas protegidas marinhas na Antártida é complexa e muito possivelmente vai demorar mais algum tempo. Isto porque é necessário reunir ainda mais evidências científicas sobre o estado dos recursos, a necessidade de monitorizar os recursos e desenvolver modelos matemáticos para prever os impactos (ambientais ou antropogénicos) sobre esses mesmos recursos, num contexto político. Reunir cientistas, confirmar as informações entre países, ajudar os decisores políticos a chegar a soluções, de um modo transparente e de boa fé, é essencial e precisa de tempo. Como Portugal ainda não pertence à CCAMLR, apenas observo a resolução desta questão com muita atenção.

Uma colónia de Pinguim-gentil (Pygoscelis papua). – (Créditos: José Xavier)


sA – Sendo este um ano tão atípico derivado da pandemia causada pela Covid-19, que consequências é que esta trouxe ao normal funcionamento do Tratado? O que será discutido na próxima reunião?

JCX — O Tratado da Antártida está sempre em funcionamento. A pandemia veio cancelar as reuniões do Tratado da Antártida de 2020 na Finlândia e atrasar alguns dos trabalhos dos grupos de trabalho, incluindo a produção de medidas/recomendações. Certamente, no próximo ano haverá muitos mais artigos submetidos e uma consequente sobrecarga de assuntos a tratar. A agenda da próxima reunião ainda não foi apresentada, mas deverá tocar certamente em assuntos chave como a ciência realizada na Antártida nestes últimos 2 anos (incluindo a relacionada com as alterações climáticas), propostas de medias/recomendações para a proteção ambiental, revisão de áreas protegidas e pescas, poluição, turismo, bioprospeção, educação, entre outros.

sA — Em 2021 faz 60 anos que o Tratado está em prática. Prevê que o encontro do próximo ano trará mudanças, seja para o Tratado, seja para a conservação da Antártida?

JCX — Julgo que o próximo ano continuará a ser um ano igualmente produtivo nas reuniões do Tratado da Antártida, em que nas celebrações se irá reiterar o valor do Tratado, rever o que já foi conseguido e projetar os desafios futuros.


sA —Última questão: quais as suas perspectivas relativamente à conservação e proteção da Antártida?

JCX — Vejo o futuro com otimismo reservado. A conservação e proteção da Antártida terá de ser feita sempre de um modo consertado entre todos os países, em que os custos de nada fazer vão ser cada vez maiores, à medida que acordos mundiais são adiados (ex. Acordo de Paris). Existe uma necessidade de informar a comunidade de decisores políticos, reunindo cientistas e políticos regularmente, para que muitos destes processos sejam acelerados. Cientificamente, a necessidade de continuar a monitorizar os ecossistemas Antárticos, de fazer ciência que obtenha respostas para os grandes desafios futuros na Antártida (sustentabilidade/gestão dos recursos, proteção ambiental, cooperação internacional e multi-disciplinar), suportado com o desenvolvimento de novas tecnologias, e educando as novas gerações irá certamente produzir frutos no futuro.  

Siga-nos:
fb-share-icon

Hugo Guímaro

Outros artigos

Share
Instagram