Publicidade: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”

 Publicidade: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”

(© Marco Dias Roque)

Alguma vez tiveram a sensação de estarem a ser observados, com um par de olhos cravados em vocês? A mim, aconteceu-me num outro dia. Senti-me observado em paragens de autocarro, em estações de metro e ao entrar no supermercado. Foi aí que entendi quem me perseguia: nem mais nem menos que Usain Bolt. Sim, o velocista jamaicano, campeão olímpico, que aparecia em cartazes por todo o lado, sorridente e de olhos fixos em quem passava. O seu objetivo? Vender detergente para a máquina de lavar roupa.

A Unilever, uma multinacional de bens de consumo, contratou Bolt – famoso por ser o atleta mais rápido do Mundo, no auge da sua carreira – para ser a cara de uma campanha intitulada “Dirt is good” (“A sujidade é boa”). Porquê Bolt? A lógica é que sujidade é boa porque deixa de ser um problema, já que o novo detergente consegue lavar tudo em apenas 15 minutos. Ou seja, o detergente é rápido… como o Bolt. Tem lógica? Muito pouca, mas estamos, aqui, a falar disso. Com ou sem sentido, o anúncio é uma boa fonte de rendimento e de variedade para Usain Bolt, que, imagino, como qualquer corredor famoso, já está cansado de fazer publicidades sobre Internet rápida.

Bolt nos Jogos Olímpicos de Verão de 2016. (en.wikipedia.org)

Existe uma relação simbiótica entre a publicidade e as figuras públicas. Uma marca decide fazer uma campanha em que retrata um atleta como um super-herói. O público começa a pensar nele como tal. A popularidade adquirida no desporto começa a transferir-se para a realidade. O atleta deixa a competição, mas continua a aparecer. Estende-se a popularidade: ganha o atleta e ganha a marca. Quem perde? Quem compra. Porque somos influenciados por elementos que não têm nada a ver com a qualidade do produto. Sabemos que a cara de um velocista não devia ter nenhum impacto no detergente que compramos. Porém, a verdade é que ajuda a vender. E, embora possa ser aleatória, a publicidade é inescapável.

Em tempos antigos, a publicidade era feita de cartazes pintados na rua. Todavia, com o advento da imprensa começou a entrar em casa. A rádio e a televisão terminaram a conquista do lar. Internet e smartphones foram mais além: agora, levamos a publicidade no bolso. Nem a correr conseguimos fugir da sua influência. Aliás, muitos pensam que até nos escutam para depois enviarem anúncios focados no que dissemos. A realidade, acho eu, é ainda pior. Algures, nos confins da Internet existe um código que identifica cada um de nós e que conhece toda a nossa atividade online. Além disso, sabe com quem vivemos e interagimos. Junta esta rede e cria perfis que sabem o que nos interessa. O consumidor acaba reduzido a um perfil sistematicamente atacado de maneira tecnológica. A última evolução de uma atividade comercial que entrou nas nossas vidas sem permissão.

(ensina.rtp.pt)

De certeza, reconhecem a simplicidade da ideia: “Primeiro estranha-se. Depois, entranha-se.”1 Se forem como eu, imaginam que é algum provérbio. Mas não é. Foi um slogan publicitário criado, em 1927, para o lançamento da Coca-Cola em Portugal. Num momento improvável – similar ao facto de Salvador Dalí ter criado o logo da Chupa Chups – este slogan publicitário sugerido por Fernando Pessoa. Sim, o poeta, que na altura trabalhava numa agência publicitária. O slogan acabou por não ser utilizado – o Estado Novo proibiu a venda do refrigerante –, mas acabou por se entranhar. Este é um exemplo de algo que começa com intenções comerciais e que acaba por entrar no imaginário comum. A publicidade é sedutora.

Monumento a Fernando Pessoa em frente do café “A Brasileira”,
em Lisboa. (pt.m.wikipedia.org)

Gostamos de publicidade porque dá prazer comprar coisas. E a publicidade moderna facilita todo o processo. Se ando à procura de um carro, não serve de muito receber anúncios sobre a venda de bicicletas. Se tenho interesse em sapatilhas para homem, publicidades para sapatos de mulher só me fazem perder tempo. Publicidade personalizada pode ser boa para o consumidor, mas só até certo ponto. Todos precisamos de coisas, mas, na realidade, não precisamos de tantas coisas como as que compramos. É neste ponto que o marketing moderno ultrapassa a linha do útil e entra num caminho mais predatório. Se um algoritmo “conhece” os nossos gostos, as empresas vão tentar aproveitar-se disso para gastarmos o máximo dinheiro possível. Contudo, tornou-se tão normal que nem pensamos nisso.

Problemas tecnológicos requerem soluções tecnológicas e, pelo menos, em computadores e telemóveis, existem programas que bloqueiam os anúncios. As empresas de tecnologia odeiam estes programas – lembrem-se de que a grande fonte de rendimento de Google e do Facebook são os anúncios –, mas são uma boa opção. Contudo, é impossível escapar à publicidade e, por isso, o primeiro passo está nas nossas cabeças. Entender que a publicidade está desenhada para se aproveitar dos nossos cérebros requer um esforço ativo. É por aí que temos de começar, senão acabamos com seis garrafas de detergente para a roupa, baseados apenas na fotografia de um atleta sorridente.

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Nota da Redacção:

1 – Acerca do, então, novo “refresco” norte-americano denominado “Coca-Cola”, o poeta Fernando Pessoa participou na respectiva campanha publicitária. “No primeiro dia: estranha-se. No quinto dia: entranha-se.”, dizia o anúncio feito por Fernando Pessoa e publicado pelo “Diário de Lisboa”, a 16 de Julho de 1927.

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10/06/2024

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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