Publicidade: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”
Alguma vez tiveram a sensação de estarem a ser observados, com um par de olhos cravados em vocês? A mim, aconteceu-me num outro dia. Senti-me observado em paragens de autocarro, em estações de metro e ao entrar no supermercado. Foi aí que entendi quem me perseguia: nem mais nem menos que Usain Bolt. Sim, o velocista jamaicano, campeão olímpico, que aparecia em cartazes por todo o lado, sorridente e de olhos fixos em quem passava. O seu objetivo? Vender detergente para a máquina de lavar roupa.
A Unilever, uma multinacional de bens de consumo, contratou Bolt – famoso por ser o atleta mais rápido do Mundo, no auge da sua carreira – para ser a cara de uma campanha intitulada “Dirt is good” (“A sujidade é boa”). Porquê Bolt? A lógica é que sujidade é boa porque deixa de ser um problema, já que o novo detergente consegue lavar tudo em apenas 15 minutos. Ou seja, o detergente é rápido… como o Bolt. Tem lógica? Muito pouca, mas estamos, aqui, a falar disso. Com ou sem sentido, o anúncio é uma boa fonte de rendimento e de variedade para Usain Bolt, que, imagino, como qualquer corredor famoso, já está cansado de fazer publicidades sobre Internet rápida.
Existe uma relação simbiótica entre a publicidade e as figuras públicas. Uma marca decide fazer uma campanha em que retrata um atleta como um super-herói. O público começa a pensar nele como tal. A popularidade adquirida no desporto começa a transferir-se para a realidade. O atleta deixa a competição, mas continua a aparecer. Estende-se a popularidade: ganha o atleta e ganha a marca. Quem perde? Quem compra. Porque somos influenciados por elementos que não têm nada a ver com a qualidade do produto. Sabemos que a cara de um velocista não devia ter nenhum impacto no detergente que compramos. Porém, a verdade é que ajuda a vender. E, embora possa ser aleatória, a publicidade é inescapável.
Em tempos antigos, a publicidade era feita de cartazes pintados na rua. Todavia, com o advento da imprensa começou a entrar em casa. A rádio e a televisão terminaram a conquista do lar. Internet e smartphones foram mais além: agora, levamos a publicidade no bolso. Nem a correr conseguimos fugir da sua influência. Aliás, muitos pensam que até nos escutam para depois enviarem anúncios focados no que dissemos. A realidade, acho eu, é ainda pior. Algures, nos confins da Internet existe um código que identifica cada um de nós e que conhece toda a nossa atividade online. Além disso, sabe com quem vivemos e interagimos. Junta esta rede e cria perfis que sabem o que nos interessa. O consumidor acaba reduzido a um perfil sistematicamente atacado de maneira tecnológica. A última evolução de uma atividade comercial que entrou nas nossas vidas sem permissão.
De certeza, reconhecem a simplicidade da ideia: “Primeiro estranha-se. Depois, entranha-se.”1 Se forem como eu, imaginam que é algum provérbio. Mas não é. Foi um slogan publicitário criado, em 1927, para o lançamento da Coca-Cola em Portugal. Num momento improvável – similar ao facto de Salvador Dalí ter criado o logo da Chupa Chups – este slogan publicitário sugerido por Fernando Pessoa. Sim, o poeta, que na altura trabalhava numa agência publicitária. O slogan acabou por não ser utilizado – o Estado Novo proibiu a venda do refrigerante –, mas acabou por se entranhar. Este é um exemplo de algo que começa com intenções comerciais e que acaba por entrar no imaginário comum. A publicidade é sedutora.
Gostamos de publicidade porque dá prazer comprar coisas. E a publicidade moderna facilita todo o processo. Se ando à procura de um carro, não serve de muito receber anúncios sobre a venda de bicicletas. Se tenho interesse em sapatilhas para homem, publicidades para sapatos de mulher só me fazem perder tempo. Publicidade personalizada pode ser boa para o consumidor, mas só até certo ponto. Todos precisamos de coisas, mas, na realidade, não precisamos de tantas coisas como as que compramos. É neste ponto que o marketing moderno ultrapassa a linha do útil e entra num caminho mais predatório. Se um algoritmo “conhece” os nossos gostos, as empresas vão tentar aproveitar-se disso para gastarmos o máximo dinheiro possível. Contudo, tornou-se tão normal que nem pensamos nisso.
Problemas tecnológicos requerem soluções tecnológicas e, pelo menos, em computadores e telemóveis, existem programas que bloqueiam os anúncios. As empresas de tecnologia odeiam estes programas – lembrem-se de que a grande fonte de rendimento de Google e do Facebook são os anúncios –, mas são uma boa opção. Contudo, é impossível escapar à publicidade e, por isso, o primeiro passo está nas nossas cabeças. Entender que a publicidade está desenhada para se aproveitar dos nossos cérebros requer um esforço ativo. É por aí que temos de começar, senão acabamos com seis garrafas de detergente para a roupa, baseados apenas na fotografia de um atleta sorridente.
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Nota da Redacção:
1 – Acerca do, então, novo “refresco” norte-americano denominado “Coca-Cola”, o poeta Fernando Pessoa participou na respectiva campanha publicitária. “No primeiro dia: estranha-se. No quinto dia: entranha-se.”, dizia o anúncio feito por Fernando Pessoa e publicado pelo “Diário de Lisboa”, a 16 de Julho de 1927.
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10/06/2024