Quanto custou a liberdade…
O recolher obrigatório (local ou nacional) e o confinamento (total ou parcial) são expressões e atos de decisão (já) correntes, legítimos num Estado democrático, por razões sanitárias que prezam a vida, que deverão ter equivalência em decisões humanitárias no Estado social (que também somos), em que se honram os compromissos com a banca mas, da mesma forma, devem ser honrados os compromissos com os portugueses e as suas famílias, em direitos humanos e proteção social.
Em tempo de pandemia, tinha agendado petisco, no recato de estabelecimento apropriado em concelho limítrofe da área de residência (agora considerado de maior risco) e em restrito núcleo familiar. Como é evidente (para pessoas de bom senso), cancelei o programa, esperando por melhores dias, em que a morte não saia à rua traiçoeira e a doença não vença fragilizados, descurados e inocentes.
Em simultâneo, uma força política de ultradireita em crescendo, aproveitando-se de simpatias desportivas, resquícios da ditadura e sentido crítico do mal dizer e nada fazer, critica a pretensa falta de liberdade, utilizando artifícios jurídicos (não aceites pelo tribunal) para tentar obstaculizar decisores e afinal gerar (mais) perda de vidas e qualidade de vida, lançando a descrença nas instituições, a revolta nas populações e o saudosismo do passado do regime autoritário do Estado Novo que nem todos conheceram.
Mas é preciso conhecê-lo e conhecer o conceito e o valor da liberdade, para não confundir esse valor supremo com as restrições de circulação de pessoas, as aglomerações proibidas, os limites na fruição de bens e serviços e as regras de urbanidade, que defendem a saúde pública e o bem-estar individual de cada cidadão.
Sendo um veterano, desde muito cedo aprendi a prezar a liberdade (que não existia antes do 25 de Abril) e a contestar a opressão. Tinha 15 anos, e via o meu pai impedido de ser eleito presidente de uma filial do maior clube português, porque tinha distribuído manifestos de apoio a Humberto Delgado na localidade, por ocasião dessa candidatura democrática a Presidente da República (mesmo com fraude eleitoral, Delgado venceu em Almeirim, minha terra natal – Fazendas de Almeirim, com 77,9% dos votos).
Ao mesmo tempo, eu colava cartazes da Oposição Democrática (CDE e CEUD, indistintamente) na terra onde estudava – Benavente, porque eram ambas forças de oposição ao regime repressivo de Salazar e depois Caetano, que tiveram na PIDE uma força policial de informação, tortura e morte, e completa ausência de respeito pelos direitos humanos, nomeadamente a liberdade de expressão do pensamento.
Pressurosamente, também foram arrancados os folhetos de contestação ao regime que eu tinha colado na porta do armário da camarata do colégio, e era ameaçado de expulsão, porque no exame escrito da disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação tinha contestado precisamente a falta de liberdade de expressão do pensamento e a Constituição de 1933.
Ao vir estudar para Coimbra, era estudante universitário (e, portanto, era da elite), mas a maioria dos estudantes andavam a pé ou de trolley (mais frequente). Eu e os meus amigos tínhamos de sair em paragens diferentes, (embora fossemos todos para o mesmo local, a Universidade), porque éramos portadores de “comunicados” (proibidos), referentes à luta estudantil e ao combate ao regime fascista e à guerra colonial.
Eram também proibidos os “ajuntamentos de mais uma pessoa” (expressão ridícula e ato opressivo da liberdade), era proibido parar ou usufruir do jardim da AAC e a própria AAC existia parcialmente (fiz parte da Comissão Pró-Reabertura da AAC), éramos revistados nos cafés da Praça da República (Piolho, Tropical e Moçambique – a Clepsidra era uma ilha democrática), tínhamos um “estudante” na mesa ao nosso lado no café com mais do dobro da nossa idade e ar circunspecto ou afável (na realidade eram agentes da PIDE – a polícia política).
Íamos ao cinema (também no Gil Vicente, Avenida e Tivoli), mas muitas vezes em caves de prédios e sítios esconsos, porque muitos filmes eram proibidos (falavam de revolução, do Maio de 68 em França, da crise académica de 69 em Coimbra, da guerra e da morte de soldados portugueses e de guerrilheiros).
Convivíamos interpares, claro, mas o meu quarto de estudante na Praça da República, como o de muitos estudantes, era um barril de pólvora (não com armas, mas com milhares de textos proibidos de várias organizações clandestinas). Aliás, o meu quarto teve de ser esvaziado de conteúdos, após participação em sessão da CDE no então Teatro Avenida e subsequente prisão noutra sessão da mesma força política noutra região (Almeirim), porque tinha protestado contra a guerra “colonial”, que era uma palavra proibida (também havia palavras proibidas…).
Havia cargas policiais sobre as manifestações dos estudantes, desde a Alta à Praça 8 de Maio, fossem sobre protestos pedagógicos, reivindicação da liberdade de expressão e democracia ou atos de insubmissão perante a injustiça social e a guerra colonial (mais uma vez), para onde os estudantes “mal-comportados” eram mobilizados para combater.
Era até muito estranho que os estudantes “de Coimbra” tivessem amigos “trabalhadores” (designação suspeita), ainda por cima da zona industrial (Pedrulha, Loreto, Relvinha, … – alguns nomes assustavam…), quando a sua obrigação era “estudar” para serem os quadros “a bem da Nação – Deus, Pátria, Autoridade”, e não se misturarem com o povo (que expressão pejorativa…).
Estávamos ausentes das aulas na Tomada da Bastilha (25 de Novembro) e outras efemérides de luta (a greve era proibida…), tínhamos reuniões clandestinas às 6 horas da manhã porque depois havia mais aulas necessárias e obrigatórias, distribuíamos panfletos de rebelião e contestação do regime a olhar para o lado e em passo acelerado ou corrida desenfreada, enfim, que dizer mais?…
Descrevi o 24 de Abril, rememorámos o passado. Mas hoje estamos em democracia (felizmente), e o tempo não volta para trás, se toda a gente (de boa fé, coerência, espírito de luta pelos direitos humanos e respeito pela democracia) assim quiser…
Os decisores ajuízam da situação sanitária, económica e política, com base em pareceres técnicos e estudos qualificados, e tomam decisões que preservam a organização da sociedade sem discriminação de poder autocrático e a saúde pública (como agora o primeiro ministro anunciou, em consistência e humildade), o que não se confunde com retirada de direitos ou prerrogativas que não sejam para preservar os direitos de outrem, em vida social, reserva de privacidade e manutenção da saúde individual e coletiva.
É verdade que nem sempre os decisores têm os melhores colaboradores (apesar da sua abnegação e espírito de sacrifício), por falta de competência de alguns titulares e “sus muchachos” (que não assumem), por algumas nomeações intermediárias por favoritismo ou compadrio, por excesso de autoestima e autoimagem que ultrapassa o conhecimento e saberes de que dispõem.
Mas a gravidade da situação de crise sanitária nunca vista, em tais dimensões, não se compadece com tricas e vanguardismos de meninos de coro, atos de escárnio e mal dizer, frentismo de rebelião birrenta ou traços de ganhos políticos e eleitorais infantis, pelo que é necessário acatar os decisores e a lei, confiantes no seu empenho para agir, na capacitação para intervir bem, no envolvimento para unir e na solidariedade para reforçar a tranquilidade e a saúde dos cidadãos.
É necessário também que os comportamentos das pessoas não deleguem apenas nos decisores a responsabilidade de manutenção da saúde e a não propagação de doença, assumindo que um novo normal não é fazer o que se quer, mas o que pode, não apenas em função de si e dos seus (por vezes nem isso), mas em função de todas e todos, com destaque para os grupos de risco, os desfavorecidos, os desvalidos.
A juventude tem sido acusada de contribuir para o incumprimento das regras sanitárias e gerar focos de propagação de doença (o que é crime), não se compreendendo muitas vezes, onde estarão as famílias, os pais, os educadores. Hoje ser rebelde, próprio da juventude, é ser promotor de criatividade para apoiar quem precisa, ser agitador em ação social organizada, ser defensor de causas em ideário, ambiente, saúde e direitos humanos.
Ser rebelde não é praticar o vandalismo, não é ostentar o consumo público de álcool e substâncias e seus desperdícios em áreas e parques de lazer, não é a contestação de medidas sanitárias protetoras, não é incentivar a proximidade em espaço público que vai favorecer a propagação de doença, não é pavonear-se com o exibicionismo de Super-Homem (e Super-Mulher), que se julgam imunes à doença e impunes nos comportamentos nocivos.
A liberdade custou muito a conquistar, a quem teve oportunidade (pela idade) e vontade (pela convicção política e social) de contribuir para a democracia instituída, nem sempre bem gerida em décadas de afirmação, mas que tem de ser preservada na conceção, respeitada na aplicação, não confundida com uma crise pandémica, desenvolvida pelos tempos, porque atrás dos tempos, tempos vêm.
Liberdade, para que te quero? Quero-te para ser feliz e ajudar os outros a serem felizes, nunca para provocar doença nem para matar familiares, amigos e cidadãos que são pessoas. Que não tenhamos de ver (como em Itália aconteceu), os médicos em cuidados intensivos em Portugal a selecionar quem vive e quem morre, por falta de recursos em emergência e suporte avançado de vida.
E isso é insuportável para profissionais de saúde que têm por objetivo “apenas” salvar vidas (e não condenar à morte), e para um País onde um primeiro ministro nos tranquiliza tomando medidas de contenção da pandemia e ação social (e bem), mas onde ministros (ou ajudantes de primeiro ministro, pouco importa para as pessoas), são contraditórios no tempo e tipo de decisões (máscaras, testes, equipamentos de proteção individual, aquisições de ventiladores, competência de gestão e passa-culpas).
Há decisões (certas e competentes) e decisões (erradas e improficientes), como também há comportamentos (saudáveis, respeitadores e exemplares) e comportamentos (lunáticos, selváticos, malfeitores, ineptos).
A liberdade é um bem, não a podemos confundir com tripúdio ou esbórnia, nem a podemos hipotecar, a troco de luta política sem seriedade e sem decoro, com revanchismo pacóvio e oportunismo de ocasião, e donde resulta morte e vida severina, porque pode haver quem morra de doença ou de fome um pouco a cada dia.