Que educação para depois da pandemia?
Em abril passado, no auge da pandemia em vários países, a novelista indiana Arundhati Roy escreveu no Financial Times um artigo onde descrevia a pandemia como um portão de passagem entre um mundo velho e um mundo novo, uma “oportunidade para repensarmos a máquina do juízo final que construímos para nós próprios”. Segundo ela, “nada poderia ser pior do que um regresso à normalidade”.
E adiantava: podemos atravessar o portão “arrastando connosco as carcaças dos nossos preconceitos e ódios, a nossa avareza, as nossas bases de dados e ideias mortas, os nossos rios defuntos e céus poluídos”. Ou podemos “viajar leves, com pouca bagagem, prontos a imaginar outro mundo. E prontos a lutar por ele”.
Num debate recente, de homenagem ao matemático, educador, divulgador e democrata Bento de Jesus Caraça, fui convidado a pronunciar-me sobre os desafios da educação pós-pandemia, fazendo-o à luz do triângulo temático “Instrução, Tecnologia, Informação”. Nas linhas que se seguem procurarei esclarecer o que faria do triângulo e que educação levaria comigo para o novo mundo.
Instrução
Não levaria comigo um ideal de instrução. Levaria, sim, um ideal de educação integral, como o que Bento de Jesus Caraça perfilhava na sua conferência de 1933: “A Cultura Integral do Indivíduo”. Um ideal que também era defendido, anos antes, por John Henry Newman no livro “The Idea of a University”, que tanto influenciou as primeiras grandes universidades norte-americanas a partir do fim do século XIX.
Newman distinguia duas formas de educar: uma mecânica, a instrução, que se consumia no particular, quase sem influenciar a mente; e uma filosófica, a educação propriamente dita, que permitia a cada um ascender por esforço próprio ao saber universal e ao desenvolvimento do caráter. Segundo Newman, a educação assim entendida desenvolvia a integridade, ou qualidade do que é inteiro, combinando entre si os conhecimentos e os valores. Seria essa educação integral, agregadora de saberes e ancorada nos valores humanos, que eu levaria comigo.
Tecnologia
A tecnologia faz parte do nosso tempo, pelo que não poderia deixar de a levar. Levá-la-ia, no entanto, com cautela, deixando para trás a sua sujeição ao capital selvagem, a sua apetência para destruir o planeta e criar desigualdade e a dependência que ela induz na mente das crianças e adultos.
O problema da tecnologia não é, porém, um problema de tecnologia. Bento de Jesus Caraça defendia isso mesmo na versão de 1939 do mesmo artigo, que publicou na Seara Nova, onde abordava o que chamava o problema do maquinismo e afirmava que “o problema fundamental é, não um problema de técnica, mas um problema de moral social”. Curiosamente, Heidegger, numa das sua afirmações mais citadas, diria praticamente o mesmo quinze anos depois.
Em suma, levaria a tecnologia comigo, mas levava-a envolvida num novo humanismo que lhe desse alma. Uma tecnologia com face humana e um sentido ético.
Informação
No seu poema “The Rock” (1934), T.S. Elliott perguntava:
Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?
Onde está o conhecimento que perdemos na informação?
Também poderíamos perguntar:
“Para que queremos informação, se não para construir conhecimento?
Para que queremos conhecimento, se não para construir sabedoria?”
O historiador Jacob Burckhardt augurava, há século e meio, que a vida moderna seria gerida por “simplificadores brutais”. Referia-se, bem entendido, aos ideais nacionalistas que mais tarde eclodiriam, e que deixariam em chamas a Europa e o mundo.
Infelizmente, apesar desse triste exemplo, a vida moderna está cada vez mais dominada por simplificações brutais. Uma delas, talvez das mais destrutivas, é a ideia, já criticada por Platão, de que a aprendizagem é uma mera transferência de informação ou “conteúdos”. O equívoco nem seria grave se a simplificação não dominasse o discurso dos nossos dias, mas a verdade é que domina, mesmo nas instâncias mais elevadas do poder.
Muitos dos comentários exaltados a que assistimos nos últimos meses a propósito da educação presencial e remota resultaram dos equívocos induzidos por essa ridícula simplificação. O pânico que se instalou, de que as escolas e os professores pudessem ser substituídos por tecnologias destinadas a “transferir” os “conteúdos” para as mentes das crianças, resultou dessa crença ingénua de que educar é apenas transferir informação.
Como é evidente, a função essencial da educação não é fornecer “informação”: é transformar mentes. É construir autonomia e paixão. É inflamar imaginações e vontades. É fazer com que quem aprende possa prosseguir por si só, com entusiasmo e confiança. Não é colocar peixes (ou “conteúdos”) nos anzóis de quem não sabe pescar: é criar pescadores confiantes e autónomos, que pesquem por si, quando quiserem e se quiserem.
Educação integral, tecnologia humanizada e cultivo da autonomia
O que se impõe agora, antes que a oportunidade se extinga, é construir um discurso alternativo que não arraste para o mundo novo as carcaças de uma educação decadente, inspirada nas linhas de montagem das indústrias de há duzentos anos e nas aulas magistrais dos mosteiros medievais.
Um discurso que reconheça que a educação é um fenómeno humano, intelectual, emocional e social riquíssimo. Um discurso que perceba que, de acordo com o princípio da variedade dos requisitos, num mundo que é hoje de presença e de distância, a educação tem de ser também de presença e distância. Será, certamente, uma educação solidamente ancorada na presença, mas onde muito do que é humanidade, comunidade e inteligência só poderá ser encontrado na distância.
Por outro lado, para sobrevivermos nestes tempos cada vez mais incertos, de informação volátil e conhecimento perecível, é essencial aprender em permanência. Como iremos nós aprender em permanência, se ninguém sabe, se ninguém faz ideia de como será o mundo de amanhã? Só há uma solução: como Robinson Crusoe, na sua ilha deserta, temos de aprender sozinhos, à medida que o mundo se transforma e nos vai colocando desafios, tal como hoje faz com a pandemia.
A nossa vantagem, quando comparados com o herói de Defoe, é que podemos aprender uns com os outros, em comunidade, visto que a tecnologia, a tal que hoje não tem alma, pode ganhar alma se quisermos usá-la para construir inteligência coletiva. Para tal, é essencial que a educação incorpore a tecnologia, em vez de a rejeitar, e que transforme o seu uso recreativo e alienado num uso profissional, competente, humano e contido.
É esse o grande desafio da educação integral para o novo mundo: desenvolver os saberes e competências estruturantes que capacitem os nossos jovens para construirem por si sós os saberes de que irão necessitar à medida que o mundo se transforma, e para assumirem, individual e coletivamente, a construção do seu próprio destino e de um mundo melhor.
O desafio que a pandemia nos colocou pode, assim, exprimir-se por um novo triângulo: “Educação integral, Tecnologia humanizada, Construção de autonomia”. É esse o triângulo que eu levaria comigo para o mundo novo.
No livro mais interessante que conheço sobre a metafísica da qualidade, o personagem central, Fedro, procura incansavelmente a verdade. Um dia, está Fedro em casa à procura da verdade, quando a verdade lhe bate à porta. Furioso com a interrupção, Fedro grita lá para fora: “Deixem-me em paz, que eu estou ocupado”. E a verdade foi-se embora! Não podemos correr o risco de que nos aconteça o mesmo.