Que mundo, meu Deus!
“Todos os dias, três fés diferentes ajudam a ler o nosso mundo. Khalid Jamal, Miriam Assor e João Paiva falam da vida e dos textos sagrados do islão, do judaísmo e do cristianismo. O ponto de união é Abraão, de quem descendem as três religiões. “Que mundo, meu Deus!” – De segunda a sexta-feira, às 07h00, às 16h00 e sempre em tsf.pt.”
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Nesta forma tão simples e “lacónica”, a TSF apresenta o seu programa diário sobre as religiões filhas de Abraão, onde se analisam diferentes temas comuns a todas elas, e mediante o qual ficamos a saber as diferenças e semelhanças, ou não, das festas, das celebrações, dos rituais, das escrituras, dos santos, das figuras religiosas e históricas que as protagonizaram – entre eles sempre, Deus, Alá, Jesus, Moisés e Maomé…
Perante as coisas curiosas que aprendi, sempre atento aos ensinamentos, fiquei a saber que, de acordo com a tradição judaica, Adão e Eva foram criados no primeiro dia do mês de Tishrei1, que foi o sexto dia da Criação. É a partir deste mês que o ciclo anual se inicia. Por isso, Rosh Hashaná2 (literalmente, “cabeça do ano” ou Ano Novo Judaico) é celebrado nesta época.
Pelo livro “Génesis” (o primeiro livro da Bíblia Hebraica e também da Bíblia cristã), sabemos que Deus molda “o homem” (ha adam) do barro (adamah), soprando vida nas suas narinas, e fazendo-o o cuidador de sua criação. Mais tarde, o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele…
Tomei, igualmente, conhecimento do brilhante mistério encerrado num fruto. Para os Judeus, a romã possui um papel de destaque no Rosh Hashaná, Ano Novo Judaico, por ser um símbolo de prosperidade e de justiça. Segundo o judaísmo, cada romã possui 613 sementes, que correspondem às 613 mitsvot, que são preceitos da Torá.
Num breve e curto espaço de tempo, descobre-se as singularidades destas três religiões, num ambiente de paz, de cordialidade, de sabedoria e de respeito entre elas.
Quando ouço as diferentes narrativas dos autores, vem-me à memória a carta do dramaturgo, cineasta e poeta Fernando Arrabal enviada ao general Franco (datada de 18 de Março de 1971, em Paris), na qual evoca a grandeza de Espanha quando esta era o território da convivência pacífica das três religiões…
Em tradução livre, cito: “Séculos atrás, houve um país em que os filósofos árabes construíram o pensamento mais original da sua raça; enquanto, a algumas ruas de distância, os Judeus criaram o monumento da Cabala e os Cristãos a maravilha da Bíblia poliglota. Este país era a Espanha, os seus reis eram chamados, por exemplo, de Afonso X, o Sábio, ou Fernando III, o Santo. Este monarca proclamou-se Rei das três religiões.” E tenho orgulho de levar o seu nome.
E Fernando Arrabal lembra aos leitores a biografia obscura do generalíssimo: “Na sua biografia, tantos cadáveres: em África, nas Astúrias, na Guerra Civil, no pós-guerra… Toda a sua vida coberta pelo molde do luto. Imagino-o rodeado de pombas sem pernas, de guirlandas negras, de sonhos que guincham de sangue e morte.”
O mesmo autor narra este episódio comovente: “Há séculos, na época da Inquisição, vivia em Ávila uma menina de oito anos. Um dia ele pegou o irmão mais novo pela mão e fugiu de casa. Eles viajaram por campos e montanhas. Finalmente, o seu pai conseguiu encontrá-la. Ele perguntou-lhe: – Porque fugiste? – Eu queria sair da Espanha. – Mas porquê? – Para conquistar a glória! A mesma coisa que esta menina – Santa Teresa – disse poderia ter sido dita por tantos que partiram: centenas de milhares. E também os Goyas, os Picassos, os Buñuels. Aqueles de nós que deixaram a Espanha negra, em 1955, poderiam ter dito a mesma coisa. Conquistar a glória, no sentido mais fascinante da palavra. Aquela menina, que fugiu em busca da apoteose, sofreria mais tarde, na carne e na alma, os golpes da intolerância de então: a Inquisição.”
Lamento que quando olhamos para o Mundo – meu Deus! –, a realidade seja tão diferente. A intolerância religiosa grassou entre nós de uma forma irreparável!
O dramaturgo Samuel Beckett na sua peça “Fim de Festa”4, narra uma pequena anedota: um gentleman manda fazer umas calças a um alfaiate, este aceita o encargo, no entanto, demora meses a concluir a obra. A cada visita ou prova do cliente, o alfaiate justifica-se com as medidas dos fundilhos, com a braguilha, com o cós, as casas dos botões, etc. O cliente reconhece que todos esses pormenores são importantes, mas, depois de meses de espera, explode, lamentando-se no encontro final (ouve-se a voz do cliente): “Goddamn, Sir, não é possível, é um escândalo, um absurdo, não há Cristo que aguente! Em seis dias, ouviu bem, seis dias, nem mais nem menos, só seis dias, Deus fez o mundo. Sim, senhor, o mundo, entendeu? O MUNDO! E o senhor não consegue acabar umas reles calças em três meses!”
Voz do alfaiate, escandalizado: “Mas Milord, Milord, olhe… (Gesto de desprezo, com repugnância.) […] o mundo… (Pausa.) E olhe… (Gesto carinhoso, com orgulho.) […] minhas CALÇAS!”
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Notas:
1 – Tishrei ou Tishri é o primeiro mês do calendário civil hebraico e o sétimo mês do calendário religioso, sendo um mês lunar de 30 dias. Tem início no Outono do Hemisfério Norte.
2 – Rosh Hashaná marca não apenas o início do Ano Novo Judaico – é também o início dos grandes dias sagrados. É celebrado com orações, refeições festivas e alegres toques do shofar, uma trompa cujo som se acredita ser uma chamada para o arrependimento do pecado.
3 – Segundo uma nota biográfica da Casa del Libro, nascido em Melilla (1932), Fernando Arrabal aprendeu a ler e a escrever na Ciudad Rodrigo. Ganhou o Prémio Nacional de “sobredotados”, aos dez anos, e fez os estudos universitários em Madrid. Vive “exilado” (segundo a sua expressão) em Paris, desde 1955, sem que nenhum funcionário do seu país tenha solicitado o seu regresso. Dirigiu sete longas-metragens e publicou treze romances, ensaios, livros de xadrez e centenas de peças e de poesias. Entre muitas outras coisas, ele é o único escritor que publicou uma carta pública a Franco durante a vida do general. Arrabal é o único escritor da sua geração cujo pai foi condenado à morte pelo regime franquista, logo no primeiro momento da guerra civil. Arrabal, após a morte de Franco, permaneceu proibido por um ano. Com Carrillo, Pasionaria, Líster e El Campesino formou o quinteto dos impedidos de retornar “por serem os mais perigosos”. Arrabal, nos últimos anos da ditadura, teve todos os seus trabalhos proibidos. De forma surpreendente e misteriosa, os ensaios e simpósios sobre o tema escondem esse veto total. Arrabal (…) foi julgado e preso, em 1967, na prisão de Carabanchel.
Na década de 70, no palco dos Modestos, apresentámos, com encenação minha, um espectáculo do Teatro Experimental do Porto (TEP) sob o título “Ópera Mundi”, com dois textos do autor espanhol Fernando Arrabal: “Oração e Piquenique na Frente” (“Piquenique no Front”). A peça conta de forma humorada e original, a história do soldado Zapo que, em combate, recebe, num domingo, a inesperada visita dos seus pais, o senhor e a senhora Tépan, para um piquenique em pleno “front” de batalha.
4 – “Fim de Festa” (Fin De Partie), de 1957.
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26/10/2023