Que mundo, meu Deus!

 Que mundo, meu Deus!

A emissão alargada do programa “Que Mundo, Meu Deus!” decorreu em directo da sala de visitas da Assembleia da República. Os participantes habituais são Khalid Jamal, Miriam Assor e João Paiva, com a participação especial do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva. (tsf.pt)

“Todos os dias, três fés diferentes ajudam a ler o nosso mundo. Khalid Jamal, Miriam Assor e João Paiva falam da vida e dos textos sagrados do islão, do judaísmo e do cristianismo. O ponto de união é Abraão, de quem descendem as três religiões. “Que mundo, meu Deus!” – De segunda a sexta-feira, às 07h00, às 16h00 e sempre em tsf.pt.”

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Nesta forma tão simples e “lacónica”, a TSF apresenta o seu programa diário sobre as religiões filhas de Abraão, onde se analisam diferentes temas comuns a todas elas, e mediante o qual ficamos a saber as diferenças e semelhanças, ou não, das festas, das celebrações, dos rituais, das escrituras, dos santos, das figuras religiosas e históricas que as protagonizaram – entre eles sempre, Deus, Alá, Jesus, Moisés e Maomé…

Perante as coisas curiosas que aprendi, sempre atento aos ensinamentos, fiquei a saber que, de acordo com a tradição judaica, Adão e Eva foram criados no primeiro dia do mês de Tishrei1, que foi o sexto dia da Criação. É a partir deste mês que o ciclo anual se inicia. Por isso, Rosh Hashaná2 (literalmente, “cabeça do ano” ou Ano Novo Judaico) é celebrado nesta época.

O dia mais sagrado do calendário judaico, Yom Kippur, o Dia da
Expiação, ocorre no dia 10 de Tishrei. (en.wikipedia.org)

Pelo livro “Génesis” (o primeiro livro da Bíblia Hebraica e também da Bíblia cristã), sabemos que Deus molda “o homem” (ha adam) do barro (adamah), soprando vida nas suas narinas, e fazendo-o o cuidador de sua criação. Mais tarde, o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele…

Tomei, igualmente, conhecimento do brilhante mistério encerrado num fruto. Para os Judeus, a romã possui um papel de destaque no Rosh Hashaná, Ano Novo Judaico, por ser um símbolo de prosperidade e de justiça. Segundo o judaísmo, cada romã possui 613 sementes, que correspondem às 613 mitsvot, que são preceitos da Torá.

Israelitas seculares e religiosos na conclusão dos serviços de Yom Kippur, no centro comunitário em Kiryat Ono, perto de Tel Aviv.
(Créditos fotográficos: Tzohar – coisasjudaicas.net)

Num breve e curto espaço de tempo, descobre-se as singularidades destas três religiões, num ambiente de paz, de cordialidade, de sabedoria e de respeito entre elas.

Quando ouço as diferentes narrativas dos autores, vem-me à memória a carta do dramaturgo, cineasta e poeta Fernando Arrabal enviada ao general Franco (datada de 18 de Março de 1971, em Paris), na qual evoca a grandeza de Espanha quando esta era o território da convivência pacífica das três religiões…

Fernando Arrabal envia carta ao general Franco. (Direitos reservados)

Em tradução livre, cito: “Séculos atrás, houve um país em que os filósofos árabes construíram o pensamento mais original da sua raça; enquanto, a algumas ruas de distância, os Judeus criaram o monumento da Cabala e os Cristãos a maravilha da Bíblia poliglota. Este país era a Espanha, os seus reis eram chamados, por exemplo, de Afonso X, o Sábio, ou Fernando III, o Santo. Este monarca proclamou-se Rei das três religiões.” E tenho orgulho de levar o seu nome.

E Fernando Arrabal lembra aos leitores a biografia obscura do generalíssimo: “Na sua biografia, tantos cadáveres: em África, nas Astúrias, na Guerra Civil, no pós-guerra… Toda a sua vida coberta pelo molde do luto. Imagino-o rodeado de pombas sem pernas, de guirlandas negras, de sonhos que guincham de sangue e morte.”

O mesmo autor narra este episódio comovente: “Há séculos, na época da Inquisição, vivia em Ávila uma menina de oito anos. Um dia ele pegou o irmão mais novo pela mão e fugiu de casa. Eles viajaram por campos e montanhas. Finalmente, o seu pai conseguiu encontrá-la. Ele perguntou-lhe: – Porque fugiste? – Eu queria sair da Espanha. – Mas porquê? – Para conquistar a glória! A mesma coisa que esta menina – Santa Teresa – disse poderia ter sido dita por tantos que partiram: centenas de milhares. E também os Goyas, os Picassos, os Buñuels. Aqueles de nós que deixaram a Espanha negra, em 1955, poderiam ter dito a mesma coisa. Conquistar a glória, no sentido mais fascinante da palavra. Aquela menina, que fugiu em busca da apoteose, sofreria mais tarde, na carne e na alma, os golpes da intolerância de então: a Inquisição.”

“Fim de Festa”, pela Companhia de Teatro de Almada. (ctalmada.pt)

Lamento que quando olhamos para o Mundo – meu Deus! –, a realidade seja   tão diferente. A intolerância religiosa grassou entre nós de uma forma irreparável!

O dramaturgo Samuel Beckett na sua peça “Fim de Festa”4, narra uma pequena anedota: um gentleman manda fazer umas calças a um alfaiate, este aceita o encargo, no entanto, demora meses a concluir a obra. A cada visita ou prova do cliente, o alfaiate justifica-se com as medidas dos fundilhos, com a braguilha, com o cós, as casas dos botões, etc. O cliente reconhece que todos esses pormenores são importantes, mas, depois de meses de espera, explode, lamentando-se no encontro final (ouve-se a voz do cliente): “Goddamn, Sir, não é possível, é um escândalo, um absurdo, não há Cristo que aguente! Em seis dias, ouviu bem, seis dias, nem mais nem menos, só seis dias, Deus fez o mundo. Sim, senhor, o mundo, entendeu? O MUNDO! E o senhor não consegue acabar umas reles calças em três meses!” 

Voz do alfaiate, escandalizado: “Mas Milord, Milord, olhe… (Gesto de desprezo, com repugnância.) […] o mundo… (Pausa.) E olhe… (Gesto carinhoso, com orgulho.) […] minhas CALÇAS!”

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Notas:

(britannica.com)

1 Tishrei ou Tishri é o primeiro mês do calendário civil hebraico e o sétimo mês do calendário religioso, sendo um mês lunar de 30 dias. Tem início no Outono do Hemisfério Norte.

2 – Rosh Hashaná marca não apenas o início do Ano Novo Judaico – é também o início dos grandes dias sagrados. É celebrado com orações, refeições festivas e alegres toques do shofar, uma trompa cujo som se acredita ser uma chamada para o arrependimento do pecado.

3 – Segundo uma nota biográfica da Casa del Libro, nascido em Melilla (1932), Fernando Arrabal aprendeu a ler e a escrever na Ciudad Rodrigo. Ganhou o Prémio Nacional de “sobredotados”, aos dez anos, e fez os estudos universitários em Madrid. Vive “exilado” (segundo a sua expressão) em Paris, desde 1955, sem que nenhum funcionário do seu país tenha solicitado o seu regresso. Dirigiu sete longas-metragens e publicou treze romances, ensaios, livros de xadrez e centenas de peças e de poesias. Entre muitas outras coisas, ele é o único escritor que publicou uma carta pública a Franco durante a vida do general. Arrabal é o único escritor da sua geração cujo pai foi condenado à morte pelo regime franquista, logo no primeiro momento da guerra civil. Arrabal, após a morte de Franco, permaneceu proibido por um ano. Com Carrillo, Pasionaria, Líster e El Campesino formou o quinteto dos impedidos de retornar “por serem os mais perigosos”. Arrabal, nos últimos anos da ditadura, teve todos os seus trabalhos proibidos. De forma surpreendente e misteriosa, os ensaios e simpósios sobre o tema escondem esse veto total. Arrabal (…) foi julgado e preso, em 1967, na prisão de Carabanchel.

Dramaturgo, escritor, poeta, cineasta, pintor,
desenhador, roteirista, jogador e teórico do xadrez, o
espanhol Fernando Arrabal nasceu em Agosto de
1932, em Melilla, no continente africano (Marrocos
espanhol). (papocultura.com.br)

Na década de 70, no palco dos Modestos, apresentámos, com encenação minha, um espectáculo do Teatro Experimental do Porto (TEP) sob o título “Ópera Mundi”, com dois textos do autor espanhol Fernando Arrabal: “Oração e Piquenique na Frente” (“Piquenique no Front”). A peça conta de forma humorada e original, a história do soldado Zapo que, em combate, recebe, num domingo, a inesperada visita dos seus pais, o senhor e a senhora Tépan, para um piquenique em pleno “front” de batalha.

4 “Fim de Festa” (Fin De Partie), de 1957.

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26/10/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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