Quem é Carmen Mola?
Até 15 de Outubro deste ano, o nome Carmen Mola era um completo mistério para os leitores espanhóis e mundiais que, desde 2018, se deleitavam, garante a imprensa mainstream, com os livros assinados pelo mesmo.
Descrita como uma professora universitária de álgebra e mãe de três filhos que, simultaneamente, se dedicava à escrita de romances “macabros”, tornou-se um dos maiores nomes do suspense espanhol dos nossos dias. Nunca havia aparecido em público e, na sua única foto disponível, está de costas, não podendo ser identificada.
A primeira obra assinada por Carmen Mola foi a trilogia A noiva cigana, traduzida para 11 idiomas e que está também a ser adaptada para a televisão. A mesma é protagonizada por uma inspectora de polícia “peculiar e solitária, que adora vinho, karaoke e de praticar sexo em SUVs”.
As histórias emocionantes e sangrentas da autora, para utilizar a linguagem da imprensa mainstream, chegaram a ser comparadas às da italiana Elena Ferrante, outro grande sucesso literário mundial. Mas o mais sintomático é que, talvez pelo facto de a personagem principal dos seus livros ser uma mulher – a inspectora-chefe Elena Blanco –, as mesmas histórias foram reconhecidas pelo Instituto da Mulher de Espanha como contos que “ajudam a entender a realidade e as experiências femininas nos dias de hoje”.
Passando por cima do facto de, tratando-se do jornalismo literário e cultural em geral, haver cada vez menos diferenças entre a linguagem da imprensa mainstream e a “linguagem de press release”, assinale-se aqui três notas: primeiro, o nome da autora é feminino (logo, a mesma só poderia ser uma mulher); segundo, a personagem principal das suas histórias é igualmente uma mulher; terceiro e último, a temática da obra de Carmen Mola parece deliberadamente relacionada com as experiências e as vivências femininas.
Assim sendo, será que, à luz das necessidades e exigências classificatórias contemporâneas, podemos considerar a obra de Carmen Mola um exemplo de “literatura feminina”? Sim ou não, pelo menos será de destacar a ousadia dela de penetrar num campo (a literatura policial e de suspense) maioritamente masculino. Casos como o de Agatha Christie são excepções que confirmam a regra.
No dia 15 do mês passado, um novo livro de Carmen Mola – A Besta – iria receber o prestigiado e valioso Prémio Planeta, no valor de um milhão de euros, instituído pelo grupo editorial com o mesmo nome. Estava tudo preparado para, durante a cerimónia de outorga do referido prémio, ser finalmente revelada a identidade da famosa autora.
O que, de facto, aconteceu não podia ser previsto por ninguém, a não ser os envolvidos no segredo da identidade de Carmen Mola. Quando o nome foi chamado para, enfim, ser apresentada a famosa autora, subiram ao palco três homens: Jorge Díaz, Agustín Martínez e Antonio Mercero, um trio de consagrados roteiristas da televisão espanhola. São os eles os verdadeiros autores das obras de “Carmen Mola”.
Foi um pequeno escândalo. Muitas mulheres protestaram nas redes sociais. “Além de usar um pseudónimo feminino, esses indivíduos passaram anos a dar entrevistas. Não é apenas o nome. Eles criaram e usaram todo um perfil falso para convencer leitores e jornalistas. São golpistas”, afirmou Beatriz Gimeno, ex-directora do Instituto da Mulher de Espanha.
Candidamente, o trio justificou-se. “Somos três amigos que um dia, há quatro anos, decidimos combinar o nosso talento para contar uma história”, disse Días, na cerimónia de entrega do Prémio Planeta. Por seu turno, Mercero disse ao El Pais: “Não sei se um pseudónimo feminino venderia mais do que um masculino. Não tenho a menor ideia, mas duvido. Não nos escondemos atrás de uma mulher, escondemo-nos atrás de um nome”.
É caso para dizer: – Engana-me, que eu gosto!
Na verdade, tratou-se de um escândalo “produzido”. Puro marketing. Como toda a boa estratégia de marketing, a criação de “Carmen Mola” partiu de uma análise da realidade, tendo-se baseado, notoriamente, em duas tendências sociológicas que se têm desenvolvido desde o fim do século 20 e início do século 21: a transformação da literatura e da cultura, em geral, em mero entretenimento e a instrumentalização das legítimas exigências identitárias e de género.
“Querem protagonismo feminino? Tomem lá!”. Foi o que fizeram os três roteiristas espanhóis e todos os que estiveram eventualmente envolvidos nesta farsa. Esta confirma, quanto a mim, aquilo em que sempre insisto: a fragmentação das lutas sociais e a sua desintegração em lutas identitárias, sem qualquer perspectiva de classe, podem ser importantes para provocar algumas mudanças sociais, mas são irrelevantes na alteração estrutural da sociedade, acabando por ser absorvidas, aceites e promovidas pelo sistema.
Neste caso concreto, os indícios são claros: depois da revelação das identidades dos três homens que se escondiam atrás do nome de “Carmen Mola”, a pesquisa sobre os livros assinados pela “autora” disparou na Internet, o que faz prenunciar que as respectivas vendas vão aumentar nos próximos tempos. É preciso desenhar, para entendermos como o capitalismo ganha com as lutas sociais, quando estas perdem o foco?
Como tudo na vida é matizado, entretanto, este caso não deixa de ter um aspecto que, quanto a mim, é positivo: confirma, como se isso fosse mesmo necessário, que não existe lugar de fala na arte, em geral. A arte, além de implicar a capacidade de representar o outro, vestindo-lhe a pele e, se necessário, recriando-o, é o lugar da empatia por excelência. Apenas para me ater ao assunto de hoje, homens podem, pois, falar em nome das mulheres – e vice-versa. Isso, porém, tem de ser feito aberta e positivamente. Não pode ser um mero embuste mercadológico.
Termino com uma nota que se pretende apenas bem humorada: Não servirá toda esta história para confirmar que são necessários três homens para fazer o que uma só mulher faz?
15/11/2021