Quero ser um poeta português!
Acaba de sair em Portugal, pela mão da editora Palimage, de Coimbra, o último livro do poeta Álvaro Alves de Faria, Em Contramão, em colaboração com o artista plástico Rui Cavaleiro.
Hesitei se devia escrever o poeta luso-brasileiro, o poeta brasileiro ou o poeta português. Acabei por deixar poeta e artista plástico sem identidade nacional definida. Se é certo que Rui Cavaleiro se define como português, apesar dos muitos anos a viver em Bruxelas e Barcelona, a verdade é que, apesar de nunca ter vivido fora do Brasil, o poeta Álvaro Alves de Faria vem repetindo, ao longo dos mais de vinte anos em que nos conhecemos: “Quero ser um poeta português! Vocês têm de me deixar ser um poeta português!”
Além de várias colaborações em antologias, a verdade é que o poeta já leva dezoito livros publicados em Portugal, distribuídos por quatro pequenas editoras: A Mar Arte, Alma Azul, Palimage e Temas Originais. E, contudo, apesar da sua extensa obra em Portugal e no Brasil (aqui, com mais de sessenta obras, que incluem poesia, romance, ensaio literário, livros de entrevistas e peças de teatro), apesar de vários livros em tradução em Espanha e em Itália (além de poemas publicados em revistas e antologias, também em francês, inglês, japonês, servo-croata e húngaro), apesar de dois prémios Jabuti pelo seu trabalho a favor do livro, um Prémio Anchieta de Teatro e, mais recentemente, os Prémios Poesia e Liberdade Alceu Amoroso Lima (Rio de Janeiro, 2018) e Poesia Guilherme de Almeida (S. Paulo, 2019) pelo conjunto da sua obra, este poeta — que quer ser um poeta português — permanece quase completamente desconhecido entre nós.
Conheci-o em 1997, na sede da Rádio Jovem Pan, em plena Avenida Paulista, onde trabalhava como jornalista cultural e onde tínhamos marcado encontro para uma entrevista. O contacto chegara-me por meio de um outro jornalista, que, quando lhe falei do projecto de investigação sobre a poesia da emigração portuguesa no Brasil que eu então desenvolvia, me disse de imediato: “Você não pode ir embora sem conhecer ‘o Poeta’”! E lá me explicou que Álvaro Alves de Faria era assim mesmo denominado no meio jornalístico de S. Paulo.
Saía no avião do início da noite, mas lá fui a correr fazer aquela que seria a minha última entrevista em S. Paulo. E foi uma desilusão! Filho de pais portugueses, ‘o Poeta’ parecia não ter qualquer interesse por Portugal, nem qualquer relação com a cultura ou “a colónia” (a comunidade portuguesa, como alguns e algumas saberão, é assim identificada no Brasil) portuguesas.
Chegada a Portugal, li O Sermão do Viaduto, longo poema que o fizera famoso na Geração de 60 da poesia brasileira, e que lhe valera a censura e cinco detenções num Brasil em plena ditadura, pois, estando a obra proibida, optara pela sua repetida leitura através de altifalantes em recitais públicos no conhecido Viaduto do Chá, em S. Paulo. No ano seguinte, quando organizámos o 3º Encontro Internacional de Poetas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (encontros que, ao longo de quase vinte anos, trouxeram a Portugal mais de trezentos poetas de todo o mundo, entre os anos 1992 e 2010), resolvi incluí-lo na lista de nomes de poetas brasileiros a convidar. E foi aí que tudo começou.
O impacto da cidade de Coimbra, na sua arquitectura, nas suas ruas, na sua cultura, ainda que apenas só apreendida, foi de tal ordem que Álvaro Alves de Faria escreve, de um fôlego e ao longo da sua primeira noite em Portugal, os poemas que haveriam de se constituir como o seu primeiro livro português, 20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra. Nesse livro se confronta com o que costumo chamar “a memória da memória”, a memória das palavras e das vivências dos seus pais, tal como as tinha guardado da sua infância e da sua juventude.
Todos os livros que se seguiram são uma forma de lidar com essa sua identidade portuguesa, agora penosamente redescoberta, porque se constitui em face da ausência, da perda e da morte. São livros em que, num diálogo sobremaneira complexo e profícuo com toda a história e toda a grande tradição literária portuguesas (de Camões, Sá de Miranda, Pessoa, Sophia de Mello Breyner, etc.), o poeta tenta lidar com a violência de uma linguagem em que se descobre outro, sem chão no seu excesso de chão, habitante de uma espécie de desterritório, sempre em processo de reterritorialização.
É essa perturbação interidentitária, sem fim à vista, que dá forma a uma poesia marcada pela negatividade estrutural, pelo jogo com os sons (na paronomásia ou no polypdoton, por exemplo), pela ironia distanciada, por vezes até por uma nota de humor, mas sempre num pendor meditativo.
Deixo apenas um exemplo de Em Contramão: “Nada tenho a dizer senão o silêncio/e a ausência do que sou,/este vazio de tudo que se estende/e percorre as ruas e minhas roupas/molhadas de meu corpo.//Nada tenho a dizer/porque as palavras faltam,/mortas num poema que se perdeu.// Nada tenho a dizer,/senão as sombras que me cercam/e me habitam,/ como se fossem a alma/que desapareceu/num Café de Coimbra/em que tomei meu veneno final” (47).
O prefaciador, Victor Oliveira Mateus, na sessão de lançamento online realizada no passado dia 6 de Novembro, falou de como encontrava algo de Paul Celan nesta escrita — e estou tentada a concordar com ele, mesmo que a dimensão traumática seja aqui de uma outra ordem.
E falou também de expressionismo, sobretudo no que diz respeito à dimensão visual da obra, nomeadamente nos desenhos de Rui Cavaleiro, com o que não posso estar mais de acordo, não só pela autonomia da cor (e do som, no caso da poesia), mas sobretudo pela recuperação do feio para a arte: de tudo aquilo que vai além de um pensamento abissal e que se confronta com a dimensão dionisíaca da nossa existência, daquela que passa pelo confronto com o caos, a fragmentação e o estilhaçamento, do mundo e de si — pois é disso que se trata em Em Contramão.
O encontro entre o poeta e o artista plástico aconteceu através das redes sociais e da sua correspondência saíram estes poemas a partir das imagens partilhadas. Afinal, também há coisas boas a acontecer nas redes sociais.
Era bom que elas também conseguissem trazer para o centro do nosso campo literário e artístico alguns destes autores que tanto nos representam. E talvez assim se fizesse de Álvaro Alves de Faria o poeta português que ele já é.
(Saiu outro livro sobre O Cânone [Tinta da China]. Ainda não li, mas, no Expresso, diz-se que é mais do mesmo. Que pena…)
Graça Capinha (americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)