“Rabo de Peixe”: quando a periferia se torna centro

 “Rabo de Peixe”: quando a periferia se torna centro

Vista parcial do porto de Rabo de Peixe (ilha de São Miguel, Açores). (pt.wikipedia.org)

A série “Rabo de Peixe” (da Netflix, uma produtora e distribuidora “streaming”) deve ser entendida no contexto de uma cultura de massas assente em fenómenos que dividem opiniões. Num dos lados da barricada, os devotos que aderem ao produto. Na posição oposta, os descrentes que exploram fraquezas e esgrimem argumentos críticos.

Cena de “Rabo de Peixe”, com realização de Augusto Fraga e produção de Ukbar Filmes, é a segunda série portuguesa da Netflix. (echoboomer.pt)

Depois de visualizados os sete episódios e evitando a armadilha simplista do “gosto” ou “não gosto”, partilham-se algumas notas para reflexão:

1 – Existe um mundo em português, ou visto a partir de Portugal, com conteúdos que merecem ser representados e contados. O episódio da carga de cocaína que, em junho de 2001, deu à costa no setor norte da ilha de São Miguel (Açores) é disso exemplo.

Imagem do documentário “Rabo de Peixe”, produzido entre dezembro de 1999 e junho de 2003 e realizado por Joaquim Pinto e Nuno Leonel. (cinept.ubi.pt)

2 – O acontecimento no qual se baseia “Rabo de Peixe” traz-nos duas ideias fortes. Por um lado, nenhum lugar está isolado do Mundo e a escala “local” é a síntese da exposição a múltiplas influências externas. Por outro lado, apesar de enquadrado por instituições supranacionais e por Estados sólidos e democráticos, em 2001 como agora, o Atlântico Norte continua a ser um território de risco e de tensão entre os sistemas de ordenamento, regulação e vigilância e os fluxos ilegais e criminosos que se movimentam e deslocam na opacidade.

Vários rapazes saltam para a água no porto de Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores. (es.finance.yahoo.com)

3 – No ponto de vista de um espectador, a série parece tecnicamente cuidada e coerente, demonstrando que Portugal pode criar produtos de qualidade que atravessam fronteiras e conquistam audiências em mercados audiovisuais mais abertos. “Rabo de Peixe” demonstra que o país tem argumentos para ser relevante no setor das indústrias criativas e culturais.

Imagem da série “Rabo de Peixe”, da Netflix. (Créditos fotográficos: Twitter / Tom and Lorenzo –sicnoticias.pt)

4 – Os sete episódios de “Rabo de Peixe” transportam consigo os Açores, a ilha de São Miguel e a freguesia que dá nome à série. Enquanto elementos de um cenário, divulgam-se os topónimos e mostram-se paisagens com um cromatismo que contrasta entre o verde dos prados, o azul do oceano e o colorido das casas e dos barcos. Nesse sentido, a imagem do arquipélago açoriano torna-se um conteúdo que beneficia de um poderoso sistema de difusão à escala global.

(Créditos fotográficos: Hugo Moreira – expresso.pt)

5 – O mesmo acontecimento pode ser objeto de diferentes leituras e representações. Neste caso, sobrevalorizou-se o enredo policial, optou-se por um modelo estereotipado e pelo ritmo frenético de um filme de ação com todos os ingredientes de outras produções indiferenciadas: assassinatos e perseguições automóveis; uma polícia local adormecida; uma inspetora mais exigente e profissional que chega de Lisboa; um mafioso siciliano representado tal como se imagina um mafioso siciliano; o bandido local e o seu grupo de subordinados; jovens ansiosos por mudar de vida e, agora, deslumbrados com o tesouro (a cocaína dos traficantes italianos) que encontraram na praia; assim como os emigrantes que já experienciaram o sonho da “América”, com vidas a raiar a informalidade e a criminalidade. Como fio condutor da trama, pergunta-se: onde está a carga libertada pelo veleiro italiano? Quem escondeu a droga e onde? Quem vai enriquecer com a cocaína que, viajando da América do Sul para a Europa, acaba por se precipitar nesta ilha?

Alexandre Gaudêncio, presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, foi o anfitrião da ante-estreia da nova série da Netflix, que decorreu no teatro Ribeiragrandense. Refira-se que “Rabo de Peixe” é a primeira série portuguesa a fazer parte da lista das 10 séries não inglesas mais populares. (ribeiragrande.pt)

6 – O modelo seguido afetará a geografia e o enquadramento local desta série? A resposta não é fácil. Episódio atrás de episódio, os Açores permanecem lá. No entanto, a sucessão acelerada de acontecimentos desorienta-nos e faz-nos perder as referências. Contada assim, esta história poderia ocorrer em qualquer região do Mundo, algures no México junto à fronteira com os Estados Unidos da América ou numa qualquer ilha do Mar das Caraíbas ou do Mediterrâneo. Por curiosidade, mas também como símbolo desta diluição do local e da indiferenciação geográfica que daqui resulta, refira-se um pormenor: a encenação do estabelecimento prisional dos Açores reproduz um modelo latino-americano padronizado, exaustivamente explorado nesta cultura cinematográfica de massas.

(pt.wikipedia.org)

7 – Afinal, com este desvio e com a progressiva supressão do lugar onde a droga aportou, o que sobra do cenário original que está plasmado no título da série? Dos Açores, da ilha de São Miguel e de Rabo de Peixe, fica-nos a perceção linear e superficial de um espaço geográfico remoto, a ideia de fim do Mundo e a imagem de um cárcere onde nada acontece e do qual é preciso escapar. Perante estas circunstâncias, deseja-se a emigração para a “América”, anseia-se fazer parte da diáspora e viver o “sonho americano”.

Imagem do documentário “Rabo de Peixe”, sobre esta vila piscatória nos Açores, com destaque para a difícil situação social e económica da sua população, tentando garantir através da pesca as condições mínimas para aquele que é um futuro possível. (© RTP Arquivos)

8 – Num permanente jogo de espelhos, como se poderá rever Rabo de Peixe neste universo representado? Com o poder de difusão desta produtora internacional, o arquipélago e aquela localidade da ilha de São Miguel ganharam centralidade, visibilidade e atenção. Ainda assim, como se inscreve uma obra desta natureza à escala local? Aumenta o orgulho de pertença, e a autoestima, apenas porque se ganhou notoriedade? Ou, pelo contrário, existe a consciência do risco de um estereótipo – a filiação da ilha e da freguesia à imagem da droga, da toxicodependência e de uma comunidade pobre e ingénua que utilizou cocaína para cozinhar panados de peixe?

Momento da série “Rabo de Peixe”. (Créditos fotográficos: Patrícia Andrade – cmjornal.pt)

9 – Neste momento, discute-se o potencial turístico da série e desta história, que não deve ser um mero produto para atrair curiosos. Considera-se que esta será a grande oportunidade para tirar dividendos da favorável (ou desfavorável) exposição pública da freguesia. A verdade é que não existem receitas nem caminhos únicos para a relação dos lugares com os traumas do passado. Em muitos casos, registam-se as páginas obscuras. Reforça-se a memória e reinterpretam-se acontecimentos que não se devem omitir nem cancelar. Noutros, tenta-se esquecer o facto e apagar o trauma, reescrever o tempo e imaginar um outro passado. Refira-se como exemplo o concelho de Pombal, onde tudo se tem feito para apagar a memória da noite de 1 para 2 de março de 1987, quando foram assassinadas cinco pessoas no areal de Osso da Baleia. O desaparecimento desse passado é uma condição obrigatória para fazer desta uma praia como qualquer outra, higienizada e turisticamente atrativa.

(© SIC)

10 – Em suma, a série assenta num excelente ponto de partida – um tema relevante e disruptivo para uma comunidade local frágil e vulnerável. A partir daí, produziu-se uma obra de ação e um policial com algum “suspense”. Está certo que se poderiam ter seguido outros caminhos e tomado outras opções. Continua a faltar-nos uma análise mais densa, humana e multivariada de um incidente que deixou rasto naquele espaço geográfico e naquela população. No entanto, neste caso em particular, nada mais se prometeu para além da lógica reducionista do entretenimento, objetivo que foi alcançado.

.

15/06/2023

Siga-nos:
fb-share-icon

João Luís Fernandes

Geógrafo. Professor do Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade de Letras de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra.

Outros artigos

Share
Instagram