Raposas urbanas

 Raposas urbanas

(© Marco Dias Roque)

Embora tenha crescido no campo, foi em Londres que vi, perto de mim, pela primeira vez, uma raposa. Não foi um mero acaso, elas andam sempre por aí. São cerca de 10 mil na capital britânica, cada vez mais audazes e sem receio de serem vistas. Londres tem uma biodiversidade tremenda, com mais de 14 mil espécies de animais e de plantas a partilharem o dia-a-dia com carros e 8,982 milhões de pessoas. Mesmo no meio do betão, a Natureza encontra maneiras de fazer alguns nichos funcionarem. Contudo, essa convivência tem o seu preço.

As raposas urbanas não têm uma vida fácil. Estima-se que 60% morra em cada ano. É uma população que chega, em Inglaterra, até 350 mil no seu pico anual e que, depois, desce até 150 mil. Sinal da dura adaptação a um ambiente ao qual se vão ajustando pouco a pouco. Não muito diferente dos humanos: 56% da população mundial vive em cidades, correspondendo a uma percentagem que pode subir até 68%, em 2050.

(bbc.com)

A vida rural – que foi, durante séculos, o padrão da Humanidade – acabou por ceder à urbanização. As pessoas vão para as cidades à procura de oportunidades, rodeadas de outros humanos que escolhem ignorar. É um paradoxo: num mar de gente, há cada vez menos vínculos sociais. Em troca, encontram trabalhos e variedade de entretenimentos, distrações facilitadas, apesar de “temperadas” por rendas obscenas ou pela perda de horas em transportes para irem a qualquer lado. De facto, vamos sobrevivendo como podemos e com o pouco que se aproveita, a exemplo das raposas.

Humanos e animais, desenvolvemos estratégias de adaptação. As raposas deixam de caçar e começam a rasgar sacos do lixo. Assim, a diferença entre um coelho selvagem e os restos de comida da McDonald’s é cada vez menor. Enquanto pessoas, adaptamo-nos com uma estratégia singular: deixamos de ver os outros. Entramos num comboio do Metro totalmente à pinha, encaixamo-nos entre três ou quatro pessoas, mas nem as olhamos nos olhos. Mantemo-nos caladinhos até chegarmos à paragem de destino, tendo de lançar um “excuse me” para o ar, de modo a conseguirmos sair da carruagem. Passamos, na rua, por indivíduos sem-abrigo e nem olhamos para baixo. Quantas mais pessoas se juntam, menos se vêem.

(Créditos fotográficos: Patrick Robert Doyle – Unsplash)

Admiramos as pessoas que vemos vestidas de maneira estranha, com cabelo pintado de verde, com cortes moicanos, ou usando vestidos vitorianos. Porém, apenas vemos personagens e nunca seres humanos. Vivemos uma realidade despersonalizada.

É claro que se o campo fosse assim tão bom, nem nós nem as raposas o teríamos abandonado. Enquanto na cidade há espaço – mental, se não físico – para tudo, quem fica no campo arrisca cair num marasmo onde nada pode mudar, sempre com a mesma cadência e repetindo hábitos. Vê-se melhor quem nos rodeia, nem que seja por uma questão de sobrevivência, mas também se julga e critica de maneira mais feroz ou cruel. Criam-se bolhas complicadas de penetrar. Quando se está dentro, nem se nota, mas, ao sair desse espaço confortável, tudo parece estranho e a capacidade de adaptação atrofia-se. Este tipo de reacção é, posteriormente, usado pelos urbanitas (ou citadinos) para serem condescendentes com quem vive no campo, o qual, por sua vez, pensa que as pessoas da cidade vivem de maneira estranha.

(academiaseniorsmm.blogs.sapo.pt)

Não é mentira. Somos diferentes. Todavia, como as raposas, fazemos o que podemos para sobrevivermos, além de outras parecenças estes mamíferos. Um estudo indica que as raposas da cidade são mais audazes (ou, talvez, atrevidas), mas que isso não as faz mais inteligentes do que os seus “primos” campestres. Se as raposas-do-campo têm mais medo das pessoas, isso não as faz mais inteligentes. É tudo uma questão de equilíbrio. Por isso, o importante é manter uma mente aberta e um espírito de solidariedade. Nesta dicotomia, em que cada um vive à sua maneira, ninguém pode ganhar, se as mentes não aceitarem ideias diferentes das suas e não conseguirem pensar por conta própria.

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05/10/2023

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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