Recorde “orwelliano”
Entro na sala de espera da consulta externa de Cirurgia Vascular, do Centro Hospitalar Universitário de Santo António (CHUSA), no Porto, já depois das 11 horas da manhã da última quinta-feira (16 de Novembro). Nela estão algumas dezenas de pessoas. Novos e velhos, todos eles de telemóvel em punho. Indiferentes às imagens do programa matinal da RTP1, em que está presente aquele tipo que fabrica livros como pãezinhos quentes…
Em contraste evidente com os venerados apresentadores da coisa, ninguém na sala liga patavina ao que diz tão ilustre personagem. Todos, novos e velhos, só desviam o olhar dos seus telemóveis quando é anunciada uma nova consulta. Confirmada que não é a sua vez, logo os olhos voltam a mergulhar nos ecrãs dos telefones, que testemunham a actividade febril dos seus dedos.
Pouco depois da minha chegada, um casal jovem ocupa as duas cadeiras vagas ao meu lado. Sacam das suas armas e juntam-se à cena orwelliana que testemunho. Não trocam uma palavra que seja entre eles. Na fila da frente, uma senhora, com ar de professora, dá uma lição ao mano sobre “A Palavra do Dia”. Fico sem saber se se trata de um jogo assim denominado, mas ouço-o agradecer tão preciosa aula.
A cena orwelliana atira-me para o anúncio daquela empresa de telecomunicações que apresenta 127 pessoas presas, em simultâneo, “na casa do Luís, em Sintra”, numa videochamada de “1 net” (com Wi-Fi Total), que, como assevera, lhe garantiu o topo no “Guinness World Records”. Ali, no anúncio da operadora, tal como na sala de espera de Cirurgia Vascular do Hospital de Santo António (ou do CHUSA), há novos e velhos controlados pela acção totalitária destes manipuladores ambulantes.
Os canais televisivos, as notícias falsas, os programas de entretenimento – entre eles, os “grandes irmãos” (atendendo às diversas versões do “Big Brother”), os “Casados no Paraíso”, os “mercados da bola” e os comentadores ao serviço do pensamento único são peças fundamentais na subjugação da população à cartilha dominante. Definitivamente. E com o aplauso de muito zé-ninguém, que gosta da papinha feita que lhe servem. Assim, não queimam as suas celulazinhas cinzentas…1
.
Nota:
1 – A canção “FMI”, que integra o álbum “Ser Solidário” (de 1982), é um monólogo, com quase 20 minutos, escrito e interpretado por José Mário Branco. O Zé Mário escreveu-o de rajada, numa noite de Fevereiro de 1979, e gravou-o durante uma actuação no Teatro Aberto, em Lisboa. Confira, aqui, a actualidade do retrato feito pelo cantautor.
Recorde-se que se assinalaram ontem (19 de Novembro) quatro anos sobre a morte de José Mário Monteiro Guedes Branco, aos 77 anos, em Lisboa, vítima de um acidente vascular cerebral. Entretanto, está a decorrer uma petição pública para a classificação da sua obra como de interesse nacional, a que pode aceder.
.
20/11/2023