Recorte de uma ferida

 Recorte de uma ferida

(Créditos fotográficos: Celeste Almeida Gonçalves)

O bramir do vento interrompia a harmonia das trevas. O estranho desalinho da noite sacudia os ramos, folhas e ervas, ondulando e estalando num rumor contínuo sob os pés da intrusa. Ana caminhava por entre a escuridão, mal conseguindo ver um palmo que fosse à frente dos olhos. Seguia o esconso caminho com a mesma determinação com que iniciara a viagem.

Todo o lugar estava mergulhado no negrume da noite, ao compasso daquela música da ventania. E até os pássaros dormindo estremunhavam, no estrebucho do sonho, espreitando acesos, na folhagem densa ou fugindo aturdidos. Ao longe, o uivo de um cão e o piar do mocho associavam-se orquestrando, também eles, aquela sonata noturna.

Nesse momento, Ana sentiu um calafrio. Vacilou na coragem que a tinha conduzido até ali. A solidão daquele lugar impunha-lhe a sensação de abandono que lhe percorria o corpo, arranhado pelas silvas e pelo matagal, caminhando cego ao encontro do lugar. Um abandono que não queria esquecer, mas queria curar, para que não doesse mais. Por dentro, varria-a um frémito ansioso que a compelia a percorrer aquele caminho, empurrando-a em direção ao lugar.

Faltavam apenas mais uns passos para chegar. Mais uns passos e entraria na porta que a levaria de volta ao passado. Já sentia o cheiro do passado. Aquele cheiro tinha ficado entranhado no silêncio. Revelara-se-lhe durante os longos meses que passara internada. Ali, tinha experimentado a companhia do silêncio, forçando-se ao isolamento, afastando o som das palavras dos outros, abandonando-se à presença dolorosa do seu corpo e ao vazio do seu pensamento. As palavras tinham ficado ocas e não combinavam. O puzzle da memória não encaixava. O pensamento era um remoinho ininterrupto, sugado por um buraco negro. Muito negro. E as imagens, sempre as imagens, repetindo-se insidiosas.

(Créditos fotográficos: Celeste Almeida Gonçalves)

Abriu a porta pesada, que rangeu com o peso dos anos. Era muito velha.

Ao entrar, sentiu aquela estranha familiaridade de um espaço que já fora seu.

Na sala acanhada, a lareira expunha a cinza e os restos de lenha meio queimada. Parecia ter sido apagada à pressa. O olhar adivinhava o morno calor das chamas adornando o tosco granito e enchendo todo o espaço. Na mesa oval, ainda permanecia o jornal daquele dia. O cadeirão onde a avó tricotava e bordava com a manta de lã dobrada, descansando num dos braços, o esquerdo. O grande sofá coberto com a manta de ourelos, como a mãe gostava, fê-la sonhar, por momentos, com o aconchego das frias noites. Recorda, então, os serões em família, quando a mãe ainda era viva. O irmão brincando com os carrinhos e a voz terna da avó oferecendo a carícia do cheiro dos bolos nas prazenteiras tardes.

Ao abrir a porta do quarto, as recordações do tempo de menina acodem. Depois, o quarto escuro da mãe, a penumbra dolorosa da sua ausência. E a recordação do dia fatídico em que a vira prostrada na cama, inerte, já com a palidez da morte contornando-lhe o rosto. Um olhar fugaz que ficou preso para sempre dentro dela. A avó gritando desalmada e segurando-a para que não visse o leito ensanguentado da mãe. A dor cravada na carne. Também ela, a dor, ficara cativa em cada movimento ou gesto.

Olhou para os armários do corredor, onde estavam as armas de caça do pai. Tentou abri-los, mas estavam vazios. Após aquele dia, tudo ficou vazio. A polícia veio, apreendeu as armas e outros objetos e levou o pai.

(toptiro.com.br)

Anos de tormento estavam ali desenhados, no padrão da colcha. O tormento da mãe, o tormento dela, o tormento do pai, escravo da bebida. O tormento de todos.

Anos de gritos, de perseguição e de fuga. E o regresso. Sempre o regresso. Anos de agressão física e psicológica. Anos de escravidão.

Como lhe doía o corpo. Como lhe doía tudo.

Lentamente, com o ritmo do respirar compassado, foi tocando em cada objeto, em cada elemento, como se tocasse na própria mãe, no próprio pai, no irmão e na avó.

Deitou-se, por fim, na cama do seu quarto, rodeada pela memória dos tempos em que ainda havia felicidade. E adormeceu.

Ao acordar, o dia revelou o fulgor da Natureza. Ficou, por largos minutos, com o olhar preso no horizonte lavado pela manhã clara e límpida.

Tomás olhava fascinado para aquele retrato vivo. Ficou ali, estático, contemplando a beleza da rapariga, hipnotizado pelos olhos profundos perdidos numa qualquer lembrança, interrogando-se quanto à sua identidade.

Tomás adormeceu, por breves instantes, no recorte do rosto da rapariga. Tentava adivinhar cada sílaba muda do seu olhar e o movimento da sua mão segurando o cabelo que ondulava, querendo fugir pelo campo, para longe da janela. Querendo fugir, vogando por entre o verde. Aquele cabelo negro e aqueles olhos, também eles negros, penetrando distantes a alvura do dia. E as mãos brancas, exprimindo uma dança de deusa. A presença viva e tão improvável daquele ser etéreo, naquele lugar, também ele, tão improvável, acendeu em Tomás uma inquietação que, por muito tempo, o acompanhou, desenhando-lhe os passos e os pensamentos.

– Então não sabes quem é? – disse o tio Francisco incrédulo. – Ainda eras uma criança quando a tragédia aconteceu e ela se foi embora.

– Tragédia? Que tragédia? – perguntou Tomás.

– Já lá vão bem 15 anos! O pai da moça matou a mãe com um tiro de caçadeira. Foi uma desgraça.

(Créditos fotográficos: Andreas Haslinger – Unsplash)

– Mas porquê?

– O álcool, meu rapaz! O álcool, os ciúmes doentios e a insanidade. Ela era uma mártir nas mãos dele. Era raro o dia em que não levava uma sova. Uma sova é dizer pouco.

– E ninguém fez nada? Ninguém apresentou queixa?

– Nada! Acontecia e, depois, parecia que se entendiam outra vez. Até que um dia, ele fez aquele disparate. A Guarda levou-o já noite dentro, quando ele apareceu. Mais tarde, matou-se na prisão.

– E a filha?

– A filha e o filho, que também havia um rapaz. Esses foram acolhidos numa instituição de proteção de menores. A avó ficou incapaz. Ficou doente e faleceu, pouco tempo depois, com o desgosto. É o que se diz, por aí.

Tomás percorreu o véu daquele rosto que lhe enternecia a memória fresca. Beijou-lhe as faces e adivinhou-lhe os olhos, tingidos pela água negra, como terão sido as longas e dolorosas horas e dias, contrastando com a brancura da pele de cetim, guardada pelo tempo. Deu-lhe as mãos. Um suor de esperança acompanhou a sua corrida em direção ao lugar, à casa, à janela.

(Créditos fotográficos: Wyxina Tresse – Unsplash)

Recebeu-o um vazio que lhe apertou as entranhas e lhe fez estremecer o peito.

Ana já lá não estava. Deixara, apenas, sobre a cama flores orvalhadas, frescas e vivas, coloridas. Tomás sentiu que aquelas flores seriam apenas o recorte de uma ferida.

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07/03/2024

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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