Regresso a “uma campanha alegre”

 Regresso a “uma campanha alegre”

Todos concordamos no óbvio: queremos um país melhor. Porém, discordamos no essencial: como desenvolver harmoniosamente esse país; como lhe proporcionar melhor educação e investigação científica; como tornar a saúde mais acessível a todos e rápida nas suas respostas; como combater a exclusão e a pobreza; como melhorar os salários e o crescimento económico; como combater a especulação imobiliária, as assimetrias locais e regionais; qual o lugar que a Cultura deve ter nesse país e a posição dele face às questões do clima e do ambiente, etc., etc., etc.

Em causa estão, pois, as políticas e as ideias que cada partido nos apresenta na atual corrida eleitoral. No limite, diremos que o que está em causa são projetos de vida e de país que nos são colocados. Como sempre sucede, assistimos a uma certa dramatização dos discursos, a um ou outro foguetório mediático e de outdoors, enfim, ao folclore habitual destas ocasiões e circunstâncias, agora mais vincado no tribalismo das redes sociais.

Reprodução do quadro “Carnaval do Arlequim”, de Joan Miró.

No essencial que nos divide, direi, simplificadamente, que a opção que se nos coloca é entre uma visão marcadamente individualista e pouco solidária do ponto de vista intergeracional e socioeconómica; e uma perspetiva que tem o interesse público, a igualdade de oportunidades e a solidariedade como pontos cardeais.

Como cidadão do que se convenciona chamar classe média, permitam que vos diga que sinto alguma preocupação com a coisa. Desde logo, com o tiro ao alvo com que boa parte dos candidatos se entreteve a jogar contra tudo o que é serviço público. Claro que eles precisam de ser melhorados; evidentemente, boa parte dos seus quadros carece de (re)qualificação; é óbvio que temos de exigir mais e melhor. Porém, é dos livros que aquilo que não está bem é para ser melhorado em função do diagnóstico – não é para estragar, ao mesmo tempo que se transferem as suas funções para outros…

Ryoji Iwata (Unsplash)

Não estou, com isso, a diabolizar a atividade privada, que muito aprecio e considero essencial à vida, ao progresso e à diversidade de um país. Nisso, afasto-me por completo dos preconceitos ideológicos da direita, para quem as virtudes apenas existem nas empresas. De resto, e em defesa dos verdadeiros empreendedores, daqueles que conhecem o sabor do risco e da aposta, que são visionários, até me custa ver aquela espécie de pedinchice de alguns dirigentes partidários, a suplicarem, cada vez que falam, mais apoios do Estado; ou que este faça mais negócios com empresas. É que, bem vistas as coisas, Ele até se tem esforçado muito – e o programa do PS contempla, inclusivamente, apoios às empresas que aumentem os salários dos respetivos trabalhadores. Ou seja, é o Estado, isto é, somos todos nós, solidariamente, como já fazemos com os desmandos da Banca, a apoiar as despesas dessas empresas. E quando elas são apoiadas em 75% do investimento, através de programas europeus, não é o Estado (mesmo que por intermédio da UE) que está a financiá-las?… Este, portanto, até se tem portado muito bem com o mundo empresarial – que nunca está satisfeito, é certo, porque como diz a certa altura Gordon Gekko, personagem interpretada por Michael Douglas no filme “Wall Street”, a ganância não tem limites. E a verdade é que não me lembro, nas últimas décadas, de um ataque em massa, tão frontal e despudorado, contra tudo o que é serviço público. Não deixa de ser irónico que, quando caminhamos para os 50 anos do 25 de Abril, se assista à maior concentração de armamento ideológico de destruição massiva dos valores que floresceram nesse “dia inicial inteiro e limpo”, de que nos fala Sophia.

De entre o que mais me intriga – e vou reduzir a perplexidade a apenas duas áreas – é a completa ausência de ideias e de políticas de fundo para dois setores-chave do País: Saúde e Educação. Eles são tradicionalmente os grandes bombos da festa das oposições e de algum descontentamento popular, esquecendo-se uns e outros, nesse frenesim ansioso de criticar às cegas, tudo (e é tanto) o que coletivamente devemos ao regular bom funcionamento dessas duas áreas. Apesar das carências e dificuldades, e até de políticas erradas, basta ver todos os indicadores para se perceber como o País avançou, tanto na Saúde como na Educação.

Não deixa de ser irónico que, quando caminhamos para os 50 anos do 25 de Abril, se assista à maior concentração de armamento ideológico de destruição massiva dos valores que floresceram nesse “dia inicial inteiro e limpo”, de que nos fala Sophia

Pois bem: perante as conhecidas insuficiências que esses dois baluartes do serviço público do País enfrentam, o que alguns candidatos oferecem não são propostas, ideias ou investimentos para a sua melhoria e reforço. Nada disso. O que propõem, liminarmente, é a transformação da prestação desses serviços públicos em matéria-prima para a valorização do negócio das empresas dos respetivos setores. E não venham com a falácia da complementaridade, quando nunca se ouviu, repito, nunca se ouviu dos candidatos mais liberais e da direita uma única palavra em defesa desses serviços e da sua melhoria. Complementaridade é outra coisa. E ela, quando feita segundo regras transparentes, com igualdade negocial e dimensão social, mas sujeita a rigorosas fiscalizações, é vantajosa e deve ser fomentada.

Towfiqu barbhuiya (Unsplash)

Para alguns candidatos a vida de um país, seja em que setor e independentemente do serviço que é suposto prestar, resume-se à economia. Nada existe fora dela. Lembra um saboroso trecho de “Uma campanha alegre”, onde Eça de Queiroz caricatura o Partido Reformista – e vários hoje reclamam essa condição –, cujas respostas, se mudarmos o nome ao partido, mantêm uma inquietante atualidade:

Espalhou-se por aí que vindes restaurar o País. Ora deveis saber que um partido que traz uma missão de reconstituição deve ter um sistema, um princípio que domine toda a vida social, uma ideia sobre moral, sobre educação, sobre trabalho, etc.

Qual é o vosso princípio nesta questão? – Economias! – disse com voz potente o partido reformista.

Espanto geral.

– Bem! e em moral?

– Economias! – bradou.

– Viva! e em educação?

– Economias! – roncou.

– Safa! e nas questões de trabalho?

– Economias! – mugiu.

– Apre! e em questões de jurisprudência?

– Economias! – rugiu.

– Santo Deus! e em questões de literatura, de arte?

– Economias! – uivou.

Havia em torno um terror. Aquilo não dizia mais nada. Fizeram-se novas experiências. Perguntaram-lhe:

– Que horas são?

– Economias! – rouquejou.

Todo o mundo tinha os cabelos em pé. Fez-se uma nova tentativa, mais doce.

– De quem gosta mais, do papá, ou da mamã?

– Economias! – bravejou.

Um suor frio humedecia as camisas. Interrogaram-no então sobre a tabuada, sobre a questão do Oriente…

– Economias! – gania.

Foi necessário reconhecer, com mágoa, que o partido reformista não tinha ideias. Possuía apenas uma palavra, aquela palavra que repetia sempre, a todo o propósito, sem a compreender.

22/01/2022

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João Figueira

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