Respeitem o legado moral dos Cal Brandão
Beatriz Cal Brandão (1914-2011) e Mário Cal Brandão (1910-1996) são duas figuras centrais na resistência ao fascismo e da luta pela liberdade. Tinham fortes convicções políticas e um apurado sentido de solidariedade para com os acossados e os mais frágeis de nós. A longa vida política de um e de outro pautou-se pela defesa do interesse público e por uma inquestionável superioridade moral. É deles que sempre me lembro quando alguns chicos-espertos fazem tábua rasa da ética republicana, agem de forma desonesta e desrespeitam regras, em proveito próprio.
Os Cal Brandão não são os únicos cujas vidas foram exemplares. Outros há. Mas se hoje, aqui, os invoco é pela seguinte razão: ambos foram deputados na Assembleia Constituinte e na Assembleia da República, eleitos nas listas do Partido Socialista (PS) do qual foram fundadores e que se tornou num veículo ao serviço de gente sem moral e oportunista. Tal gente escancara as portas ao populismo rasca e a uma extrema-direita que nunca aceitou o “dia inicial inteiro e limpo” 1.
Tive o privilégio de ser amigo dos Cal Brandão. Testemunhei a sua generosidade, a sua abnegação, os seus sacrifícios pessoais, a sua modéstia e o seu desapego a honrarias e a bens materiais. Conto, a propósito, que, durante o exercício das suas funções como governador civil do Porto (entre 1974 e 1980 e de 1983 a 1985), Mário Cal Brandão só usava o carro à sua disposição em deslocações oficiais. Findo o seu dia de trabalho, apanhava o troleicarro da linha 9 da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP)2, que fazia a ligação entre o Bolhão e Ermesinde, pois morava em Corim, junto ao Alto da Maia.
A essa hora o “9” ia cheio de trabalhadores. Homens e mulheres de rostos marcados pela pobreza que os habitava. Muitos aproveitavam a presença do senhor doutor para lhe dar conta das injustiças sofridas. Mário Cal Brandão ouvia-os com o respeito que se deve aos homens que nunca foram meninos 3. Ajudava quando isso lhe era possível, mas ficava devastado pelos relatos que ouvia. Tanto que a sua mulher e os filhos exigiram-lhe: passaria a fazer a viagem no velho “Mercedes” ao seu dispor. Cal Brandão disse-lhes que sim com a cabeça, mas só o fazia quando o seu dia de trabalho acabava noite dentro.
Lamento que o legado moral de Beatriz, que foi a primeira deputada a defender, no Parlamento, a interrupção voluntária da gravidez, e de Mário Cal Brandão não seja respeitado por um partido que hoje é aquilo que é: uma central de emprego à mercê de chicos-espertos. Tal qual acontece com Partido Social Democrata (PSD) e com o Centro Democrático Social (CDS). Também eles recheados de (re)conhecidos fora-da-lei.
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Notas da Redacção:
1 – Segundo verso do poema 25 de Abril, de Sophia de Mello Breyner Andresen.
2 – Foi entre Novembro de 1968 e Agosto de 1994 que os troleicarros asseguraram o serviço da linha 9 (Bolhão – Ermesinde).
3 – O escritor e dirigente comunista Soeiro Pereira Gomes dedicou o seu primeiro romance Esteiros “aos filhos dos homens que nunca foram meninos”.
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Nota do Director:
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09/01/2023