Revolução, tiros e caça!

 Revolução, tiros e caça!

Aglomeração militar e civil durante a Crise de 25 de Novembro de 1975, no Rossio, em Lisboa. (upload.wikimedia.org)

Em 1975, a uns dois meses do 25 de Novembro, aderi ao Partido Comunista Português (PCP), dizendo duas coisas que não obstaram a que me aceitassem: que não era leninista (mas sabia que tinha de cumprir os estatutos) e que considerava que os partidos comunistas eram indispensáveis para organizar e conduzir a Revolução, mas que tinha isso por um “mal necessário” e que, por mim, passada a insurreição e tomada do poder, podiam dissolver-se e dar lugar a conselhos proletários, que os substituíssem! Era tudo ingénuo, como ingénua a própria permanência ainda uns anos mais no partido, a fingir, de mim para mim, que acreditava que o 25 de Novembro tinha sido um rude golpe, mas o PCP iria retomar uma luta que nos conduzisse à Revolução Socialista.

Um dos episódios mais importantes do “Verão Quente” de 1975 (em 10 de Agosto) foi o assalto à sede do PCP em Braga. (pcp.pt)

Mais tarde, juntando essa decepção, de verificar a sua institucionalização na “democracia burguesa”, com o agravamento crítico que sempre tive em relação ao “socialismo real”, acabei por sair, muito antes de cair-me o Muro na cabeça, como a muitos outros. E com o tempo, dei-me conta de que era da própria ideologia comunista que eu me afastara, mesmo mantendo o respeito pela História do PCP, sobretudo pelos militantes anteriores a 25 de Abril, que passaram por casa dos meus avós e me fazem ser testemunha viva do quanto de generosidade, capacidade de sacrifício, coragem e convicção havia neles e no trabalho, importante, essencial, para derrubar o anterior regime. Porém, naquela época de Setembro a Novembro de 75, em crescendo de luta na rua, na comunicação, nos próprios quartéis, comigo (e muitos outros) na expectativa de um levantamento armado, tudo o que fosse acto de afirmação nesse sentido e trilhando esse caminho, para mim era o que mais queria.

No Pavilhão dos Desportos, em 1975. (pcp.pt)

Era absolutamente indispensável que os militantes, no cumprimento das suas “tarefas gerais” (a que alguns conseguiam “escapar”), fizessem turnos de “segurança dos centros de trabalho”. E se, para alguns, era coisa aborrecida, para mim, sempre a idealizar um assalto ao Palácio de Inverno à portuguesa, era motivo de satisfação e de honra no dever cumprido, passar horas de arma (caçadeiras) na mão, numa varanda que dava para as traseiras daquele centro de trabalho. Aquelas cinco ou seis horas de turno eram duras, mesmo para um jovem de 21 anos, como eu, mas sentia-me a “preparar a revolução”. E foi numa época em que muitos centros de trabalho de partidos de esquerda, mas principalmente do PCP, foram atacados, incendiados, destruídos. Defender o partido dos contra-revolucionários era coisa de que me orgulhava, no silêncio e na sobriedade com que o cumpria.

(jornaldenegocios.pt)

Num dos momentos mais tensos, em que constou que se preparava, para um daqueles dias, um ataque do ELP1 (organização terrorista de extrema-direita), à mistura com delinquentes e, por vezes, enquadrada com manifestantes do então PPD2 e do Partido Socialista (PS) até, estávamos todos de super-atalaia. Eu nem estava escalado para aquele dia, mas a segurança fora reforçada. Naquela varanda das traseiras, avistava-se um muro de relativamente baixa altura, que separava o terreno do centro de um vizinho (julgo que de uma casa até abandonada), por onde se entrava com facilidade, vindo da rua. O camarada politicamente responsável daquela noite disse-me solenemente: “Camarada, a hora é de grande intensidade de luta contra a reacção. Nem mais um centro de trabalho pode cair! Se vires alguma sombra a subir aquele muro, faz logo a arma à cara e se for um terrorista não hesites em atirar. Para uma zona não vital, de preferência. Mas, atira!”

Na minha saga interior de luta contra os fascistas (e para se ser fascista, na minha mente, naquela altura, bastava estar-se do lado da contra-revolução), ardia de desejos por apanhar um, tal como apanhava patos na Barrinha de Esmoriz, quando caçava (coisa que, hoje, também rejeito fazer). Que viesse daí o fascista para eu o cravar de chumbo!

(kids.pplware.sapo.pt)

De súbito, uma sombra aparece sobre o muro. Não hesito em levar a arma à cara, dedo no gatilho e travão de segurança da arma destravado. O que eu não contava era que, segundo a segundo (ou em centésimos de segundo, talvez), o meu coração acelerasse tanto e o coração me parecesse que diminuíra para o tamanho de uma tangerina ou de uma bolota! E com a adrenalina toda a descarregar-se dentro de mim, aquela sensação, não sabia eu se era a de o ter na mira para disparar ou o horror de, eventualmente, matar alguém. Mesmo um fascista!

Quando a sombra se mostrou em corpo, era um gato. Senti um enorme alívio, porque tinha percebido que, no momento, teria disparado mesmo, mas que, depois, iria, para o resto da vida, guardar uma recordação traumática e de horror com o que fizera, mesmo que o achasse a coisa acertada. Percebi que “assaltar o Palácio de Inverno” não era, não seria (porque continuava a imaginá-lo e a desejá-lo em Portugal) um acto feito como festa. Percebi que seria capaz de o fazer, mas com um enorme nó de angústia por cada tiro que derrubasse um inimigo. A Revolução não era, como dizia Lenine (o tal que eu não seguia ideologicamente) “o chá das cinco”.  Maior seria a coragem para suportar o resultado do meu próprio tiro (penso que, de uma maneira geral, o de qualquer um) do que o receio de levar eu com um do “inimigo”.

Julgo que, para quem é gente de bem e mesmo que seja levado, pelas convicções ou pelo medo, a matar “o outro”, o que está do “lado contrário”, num confronto de fogo, mesmo numa guerra, se for cara a cara, talvez tenha um breve instante, antes do instinto de sobrevivência se impor (mesmo sobre a ideologia), em pensar que prefere levar a dar o tiro.

Acho que foi mesmo a seguir a este episódio que, sem consciência disso na altura, deixei de caçar, por muito que gostasse do cheiro a pólvora na madrugada e do coice da arma, que tinha de dominar bem para não me partir um maxilar. O animal inanimado nunca me agradou, mas nunca medira tão intensamente o horror que é matar. Mesmo um inimigo, mesmo um pato.

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Notas:

1 – O Exército de Libertação de Portugal (ELP) foi uma organização terrorista de extrema-direita criada por Agostinho Barbieri Cardoso (ex-subdirector-geral da PIDE/Direcção-Geral de Segurança), em 6 de Janeiro de 1975. O ELP foi fundado e dirigido através de Madrid.

2 – PPD é a sigla do antigo Partido Popular Democrático, actual Partido Social Democrata (PSD), em Portugal.

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Nota do Director:

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04/09/2023

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Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

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