Saxofone azul cobalto
O contrato com o “seu povo”
A extraordinária aguarela que dá cor ao título, neste número de Vladimir, parece a selfie que Vladimir quis tirar com os seus companheiros de exclusão e infortúnio, muito pouco tempo antes de morrer, em dezembro de 2016 aos 47 anos.
Aqui o artista faz mesmo questão de ser apenas mais um entre iguais, só discernível pela fantasmagórica palidez da face, por onde o sangue já não corre. Não é nem mais alto nem mais baixo do que os outros: ocupa o seu justo e natural lugar, na escala métrica das estaturas humanas. Recusa um lugar lateral para assumir uma fraternal centralidade, muito embora ofereça a proeminência a um irmão da tribo, que se adianta um passo. A tranquila determinação de todos em manter o bloco parece constituir a assinatura do poderoso contrato de cumplicidade mútua que emana da pintura.
Ao contrário da pintura, em que a retratação explícita dos companheiros constitui uma ocasião singular, muitos poemas, anotações e fragmentos literários, tecidos ao longo da vida, sublinham o dramático valor histórico, simbólico e afetivo dos expatriados da África Ocidental, dos escravos negros, dos habitantes agrilhoados dos porões, dos trabalhadores forçados e oprimidos dos sertões e das senzalas, do Brasil e das Américas, dos fugitivos alucinados dos quilombos, ou mesmo de figuras mitológicas como Xangô; e, por extensão, dos afroamericanos, de todas as vítimas do racismo endémico, dos oprimidos, “alienados”, “devassados” e “desgraçados” de todos os matizes, principalmente os que vegetam nas “grandes urbes”.
Chama-lhes o “nosso povo”. É, definitivamente, o “seu povo”.
A “alienação” de Vladimir, essa, é o role das consequências dramáticas do tenebroso acidente que sofreu aos 20 anos, provavelmente temperadas pela sua vida de menino-homem sem infância. É a deficiência física e neurológica que se agrava desde então, a perturbação psicológica, a mãe ausente, as estadias temporárias em hospitais, o efeito dos fármacos, as mãos trémulas que o impedem de escrever e pintar normalmente…
Vladimir reconhece a sua limitação sem contemplações, mas teima em não desistir e, mesmo, em encontrar um lugar para ela, por estreito que seja. Num texto de 2016*, escreve: “A minha existência poética está completamente fora das normas universais e gramaticais. /… / As trevas e as sombras de novo aqui. Farejo a morte como um cão vadio e em igual. Ninguém nem nada lhe resiste, nem ela. Escrever que sou um marginal da Kultura. Que não me vendo ao establishment. Que a minha arte é raiva, a revolta nascida da psique. E que não há tratamento psiquiátrico capaz de a anular.” (Este texto, como muitos outros, foi escrito completamente em maiúsculas.)
Viver e sobreviver pressupõe alianças e, mesmo, contratos. Reais ou imaginários. Uma das mais poderosas alianças, bem real, é com o pai – faz questão de o referir explicitamente em vários escritos e pinturas. Um poderoso contrato, imaginário mas decisivo, é com o “seu povo”. Este contrato é descrito aqui, em “Saxofone azul cobalto”, através de poemas e fragmentos literários diversos do período 2004-2006.
O contrato contém uma cláusula essencial: a capacidade permanente de evocação da presença cúmplice. E outra: a evocação é realizada através de uma linguagem tonal, à escolha de Vladimir. (Este contrato é, não só essencial para a sobrevivência física e psicológica de Vladimir, como também para o desenvolvimento da sua Kultura.)
Não esquecer que a maioria dos escravos falava línguas tonais. Que estas, expressas em cânticos ritmados e complementadas por instrumentos dúcteis como os tambores, eram inacessíveis aos opressores. Que os cânticos evoluíram para manifestações musicais sublimes com códigos próprios, como os espirituais e os blues. Que os próprios tambores também foram complementados com outros instrumentos com possibilidades de stacato e, portanto, capazes de mediar a comunicação tonal, como a guitarra e o trompete. E que os novos cânticos e instrumentos proporcionaram a criação de novos géneros musicais, como o jazz. Blues e jazz permitiam uma comunicação de novo tipo, essencialmente rebelde e à margem dos opressores.
Não é, pois, de estranhar que Vladimir tivesse sido um extraordinário amante de blues e de jazz afroamericano. E que os tivesse utilizado extensamente para a convocação do “seu povo”.
Duas notas finais.
Vladimir não fuge à anatomia histórica da palavra. A ressaca alcoólica severa produz intensas alucinações visuais, conhecidas desde o século XVII por “diabos azuis” e, mais tarde, simplesmente por “azuis” (blues), palavra que passou a representar estados de agitação ou depressão.
O contrato com o “seu povo” pressupunha solidariedade, cumplicidade, companhia. Não tinha uma cláusula estética. Seria isto aceitável para um poeta e artista? Vladimir decide que sim (“o jazz não é nada disso”), interrompendo um devaneio estético e retomando a letra do contrato.
(No entanto, num texto de 2008**, Vladimir reconhece “Agora estou a receber emanações de jazz. É uma música com alto grau de poesia na sua sonoridade. O som dos instrumentos de sopro. A bateria na batida. O baixo no ritmo solo. O piano sincopado na sua essência rítmica. Assim desliza suavemente também a poética lentidão do jazz em si. Sem enervar nem cansar.”)
No próximo número Vladimir evoca o “seu povo” através do blues e do jazz, tentando rebater a solidão e alcançar um estado onírico. Fá-lo principalmente durante a noite, o seu cabo das tormentas e do pranto.
Luís Martinho do Rosário
Rosa Maria Santos
Coimbra, novembro de 2020
*Texto sem título em Memorial dos Esquecidos. O caderno, dedicado ao pai e a amigos, inclui poemas, anotações e fragmentos literários datados de 2014-2016. Inclui ainda ilustrações a tinta e tinta-da-china datadas do mesmo período. Texto maioritariamente em maiúsculas.
**Excerto do ”Texto 2” in Poemário – Women’s Secret. O caderno, dedicado a amigos e sem data nominal, inclui poemas, anotações e fragmentos literários datados de 2005-2006 e 2008-2011. Texto exclusivamente em maiúsculas.
Luís Martinho do Rosário (conheceu e acompanhou a trajetória literária e artística de Vladimir. É professor de biofísica da UC e investigador do CNC)
Cristina Nobre (analisou a obra de Vladimir após a sua morte. É especialista em literatura portuguesa moderna e contemporânea. É professora do IPL e investigadora do CICS.NOVA)