Se neva no Saara as periferias podem ser centro
- Fernando Mora Ramos
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“Agarrar-me assim – quer dizer, com a imaginação – à vida. Como uma trepadeira às barras de um gradeamento”. (Pirandello, “O homem da flor na boca”)
No tempo grego chamava-se onphalo, era o umbigo do “mundo”. O mundo tinha o umbigo em Delfos, um apenas. A macrocefalia é uma patologia do centro e a desgraça das periferias. O que não significa que o centro, poder concentrado de poderes, não a sofra. O centro atrai e transborda. No centro do centro o deserto – ao abandono do interior corresponde a desertificação dos centros históricos, arquitecturas turistificadas para consumo de passantes acumuladores de imagens carimbadas de carga patrimonial. Sabemos, entretanto, que tal deserto, o interior desertificado, é a única casa de muitos, relegados para uma memória em ruína progressiva – para o mercado e a rendibilidade sacrossanta são cadáveres adiados. Interior, no entanto, diz dentro. Um país é um nome, identificável, uma história, uma geografia, uma potencialidade de futuro e isso vai-lhe dentro. Não indo o país, não existe porque é sem rosto, inidentificável. O nosso é, nessa identidade arcaica, esse interior em extinção com a sua cultura própria, em farrapos. O litoral, a pesca longe do que foi, virou hotelaria qualificada ou hostelizada: mais cinco estrelas ou mais massivo e low cost. E nós, de guardanapo irrepreensível no braço, dobrado, perfilados, a palrar uma língua fast food.
Essa patologia centralista e macrocéfala não foi corrigida pela democracia, essa herança fascista mais monstruosa se tornou. Sem virar o país do avesso, sem despesa nada austera, sem criação de serviços essenciais de novo ou radicalmente novos, nada lucrativos, a tragédia dos incêndios repetir-se-á. E não basta reordenar a floresta, mesmo contra a propriedade que estabelece pela excessiva fragmentariedade – absurdo a que a longa história e o universo labiríntico das heranças conduziu — um território caotizado. E não basta também uma reordenação perfeitamente racional, de gabinete, a regra e esquadro, plena de comissões científicas e especializadas. É necessário “colonizar” o interior, o que para um país de ex-colonizadores emigrantes não deveria ser problema, tanto mais que as especiarias e riquezas de hoje são o tal “potencial humano”: saber e qualificações, recursos humanos, o que significa um valor acrescentado diferente – de criação, de invenção, nada a ver com a tal “inovação do produto” virada para o mercado, já que o que há a criar e inventar é a nossa “vida em comum na polis”, a democracia, que a economia deve servir. O que passa pelas pessoas e pela valorização de uma vida ecológica, que não a das filas de carros, de acumulações massivas de gente, de cidade hora de ponta, sem vida própria residente, cenário.
É necessário um plano que privilegie o interior, que pense pólos de novas centralidades. E o centro, macro e bicéfalo, terá de solidarizar-se com esse processo. Isso far-se-á pela via da reinvenção do que a vida hoje proporcione de complexo, evoluído e qualificado culturalmente. Para todos, uma vida culturalmente “elitista para todos”, como diria Vitez.
A emancipação das pessoas não é um negócio, a sua autodeterminação organizada e cívica, o seu autogoverno consciente e programado é um processo cultural em sentido lato, com implicações em matéria educativa, social e de vida criativa plural — e a vida vive-se quotidianamente, o quotidiano tem de ser rico de expressões do diverso cultural, local, regional, nacional, intercultural, multidisciplinar artístico, patrimonial, universal. As pessoas querem uma vida que seja mais que ir às compras (Shopping and fucking é o título de uma peça de teatro, da autoria de Mark Ravenhill), mesmo que isso não pareça – é deprimente vê-la, à vida, a consumir-se arrastada regularmente num centro comercial, olhos nas montras, contas ao crédito, acumulando electrodomésticos e as criaturas consumidoras a olhar-se reconhecendo-se umas nas outras pelos sinais exteriores, o que vestem, maquilhagens, tatuagens, sapatilhas de marca ou imitantes. Mais deprimentes são as praças da alimentação, manjedouras de comida industrial.
O que será então uma cidade com vida nova no interior? Será a cidade de todos os serviços públicos, de um regime de vida vitalizado, não rotineiro nem entediante, culturalmente diverso e rico, sem descriminações. Necessitamos de uma cidade com estruturas de criação capazes de uma actividade de invenção numa escala não periférica, capazes de criar mais do que importar para consumo, de criar como se foramos europeus não apenas no que à moeda diz respeito. O país cultural, falando de regiões, do lado da política cultural, não existe, pois esta é inexistente – um programa – e o Estado dela se demitiu. É esse país que é necessário REINVENTAR, o de uma política cultural. Necessitamos do que nunca houve, repito: uma política cultural que ilumine as outras políticas. Só uma identidade reinventada pode fazer vingar um país cada vez mais simulacro e sucedâneo, clone de um mercado que impõe modos de vida porque o seu poder é dominante e não escrutinável. O financismo é o estádio supremo da negação da democracia. Uma política cultural é, obviamente, uma declaração de guerra a este mercado desregulado, caótico e genocida.
01/06/2018