Sebentas e francofonia
Era o tempo das sebentas. A fotocópia estava ainda por nascer e, mesmo após ter surgido, a sua acessibilidade e a sua operacionalidade estavam longe de satisfazer as necessidades dos estudantes.
A reprografia de textos assentava, sobretudo, no stencil, uma finíssima folha de papel, encerada, na qual o bico da caneta ou a tecla da máquina de escrever imprimiam uma fragilidade que deixava passar a tinta colocada à superfície de um rolo que se fazia passar sobre a dita folha. Esta operação, de início, manual e, depois, mecânica, esteve na base da instituição “sebenta”. Para certas cadeiras ou disciplinas, a sebenta era o único e mais do que suficiente elemento de estudo. “Empinava-se a sebenta” e a aprovação no exame da respectiva cadeira estava garantida.
Havia, ao tempo, outros processos de reprografia. Eu próprio, enquanto aluno, fui vendedor de um policopiador a cores, de nome Plentograph, que não teve divulgação no meio académico, mas que me fez um jeitão, a mim e aos colegas com quem trocava apontamentos.
Na Faculdade de Ciências de Lisboa, ficou célebre a sebenta de Física Geral, do Prof. Amaro Monteiro. Na aula, este catedrático, com as folhas da sebenta na mão esquerda, ia lendo em voz alta e copiando para o quadro, página a página, o seu denso conteúdo, numa monotonia de adormecer naquele horário, depois do almoço, que era o seu. Do primeiro ao último dia de aulas, este professor não mudava nem o estilo da lição nem o tom da voz. Sem nunca se virar para os raros alunos que tinham a paciência de assistir às suas aulas, corria, assim, da primeira à última, as cerca de quinhentas páginas daquele calhamaço repleto de intermináveis expressões matemáticas, que gerações e gerações de estudantes (tantas quantos os anos de serviço deste catedrático) tiveram de “empinar”. E eu não fui excepção. Via de regra, as sebentas passavam de mão em mão, de ano para ano. Estavam enxovalhadas, anotadas, riscadas, sujas, parcialmente rasgadas e, muitas vezes, sem capa, dado o seu uso intenso e prolongado. O seu nome reflectia isso mesmo. Dado que, de ano para ano, o programa não mudava um milímetro, feito o exame, o aluno que concluísse a cadeira, vendia de imediato aquele molho de papel a um colega que necessitasse de fazer a respectiva cadeira. E eram sempre muitos.
Comum no ensino superior desse tempo, a sebenta era, por assim dizer, a continuação do livro único, próprio dos liceus. As associações de estudantes dispunham de um serviço especializado, a chamada Secção de Folhas, vocacionada para a produção das sebentas e de outros materiais didácticos afins. Os textos ou eram coligidos pelos estudantes, nas aulas, com a devida anuência do regente da cadeira e posterior revisão, por parte deste, ou eram redigidos pelo próprio professor. Era este último o caso, na Faculdade de Ciências de Lisboa, da magnífica sebenta “Curso Geral de Mineralogia e Geologia”, em três volumes, do Doutor Guerreiro Boto, durante muitos anos, o único manual, em Português, ao serviço de estudantes. Embora concebida em termos gerais, a “sebenta do Boto”, como era referida entre os alunos, contemplava de forma correcta todos os grandes temas da licenciatura em Geologia. Com o tempo e os correspondentes progressos da tecnologia, a sebenta deu lugar às fotocópias, uma prática dos dias de hoje que, compreensivelmente, desagrada aos livreiros, cujo uso e abuso continuou a proliferar entre os estudantes.
A fase da sebenta no ensino superior teve lugar num tempo em que, nas relações académicas, nos compêndios e manuais de estudo dominava o Francês. Neste período áureo da penetração da inteligência gaulesa na nossa vida cultural e científica, em particular no ensino superior e na investigação, a maioria dos estágios científicos dos nossos assistentes e jovens investigadores era realizada em França, sobretudo, em Paris. Recordo, apenas, os nomes dos grandes autores francófonos sobre os quais assentou o essencial da preparação dos geólogos da minha geração, das que me precederam e das que se me seguiram até ao advento da Teoria da Tectónica de Placas, nos anos 60. Foram nossos mestres, à distância e através dos seus livros, Paul Fourmarier, L. Moret, J. Jung, Maurice Gignoux, Alfred Lacroix, Jean Piveteau, P. Pruvost, Eugène Raguin, Lucien Cayeux, Jacques Bourcart, Georges Millot, A. Vatan e André de Cailleux, entre outros. A par destes, os grandes autores alemães, mercê da língua, que só um ou outro dominavam, pouco saíam das estantes das bibliotecas. Com maior divulgação, mas não tanta quanto a dos livros em Francês, havia os dos autores que faziam uso da língua inglesa, em especial, americanos, britânicos e um ou outro do Norte da Europa.
Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial deram hegemonia ao Inglês, situação que se tem vindo a acentuar com a globalização de múltiplos sectores da actividade dos povos deste planeta já referido por alguns por “aldeia global”. Um caso paradigmático desta evolução passou-se com o livro “Géologie des Argiles”, de Georges Millot, editado pela Masson, em Paris, no ano de 1964.
Obra notável e pioneira deste meu mestre, abriu-me o caminho ao estudo das bacias sedimentares continentais do Cenozóico português e permitiu que me antecipasse aos meus pares americanos e ingleses na interpretação paleogeográfica e paleoclimática deste tipo de estudos, dada a pouca penetração do Francês no universo anglófono. A tese de doutoramento que defendi na Universidade de Lisboa, em 1968, é disso testemunho. As concepções deste ilustre professor de Estrasburgo, só tiveram a divulgação que se impunha, e a correspondente penetração na comunidade dos sedimentólogos, a partir da edição deste seu livro, em Inglês, na América, sob o título “Geology of Clays”, na Springer-Verlag, Nova Iorque, em 1971.
Uma influência da francofonia, por exemplo, na nomenclatura das rochas foi a que, em minha opinião, deu origem a uma imprecisão que ainda hoje persiste em muitos manuais de ensino e, até, em textos científicos. Trata-se do uso da expressão rocha eruptiva, como sinónima de rocha magmática ou ígnea. O qualificativo magmática indica, e bem, que a rocha resultou da solidificação de um magma, isto é, um material rochoso total ou parcialmente no estado de fusão e, portanto, incandescente ou ígneo, magma de que temos exemplo aproximado na lava saída de uma erupção vulcânica. Neste caso, a rocha que se forma, o basalto, por exemplo, além de ser magmática ou ígnea, é também e de facto, eruptiva.
Outras rochas magmáticas como o granito, resultam da solidificação em profundidade, na crosta, de magmas que nunca brotam à superfície e que, portanto, não dão origem a erupções. Designar estas rochas por eruptivas é, por conseguinte, uma incoerência entre a realidade e o significado da palavra.
Os grandes petrógrafos franceses do princípio do século XX foram beber esta imprecisão, acriticamente, aos seus antecessores alemães, da segunda metade do século XIX, eles, sim, os criadores do termo germânico, Eruptivgestein, aplicado a qualquer rocha magmática, eruptiva ou não, e, daí, a expressão roche éruptive dos autores franceses. Foi, sobretudo, a partir destes que, também acriticamente, a expressão rocha eruptiva, com o mesmo significado de rocha magmática, entrou e teima em persistir, erroneamente, na terminologia geológica portuguesa.
.
18/12/2023