Será que o brasileiro deu jeito?
- Roberta Avillez
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Hoje, o Brasil encontra-se num estado de estagflação da economia. Ou seja, o aumento dos preços ocorre de forma acelerada e acentuada. Entretanto, o país encontra-se em recessão, a enfrentar a pandemia de covid-19.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísttica (IBGE), a taxa de desemprego actual encontra-se em 12,6% para o terceiro trimestre de 2021. No trimestre de julho a setembro de 2021, o IBGE apresentou 106,430 milhões de pessoas acima de 14 anos aptas à força de trabalho. Entre elas, 92,976 milhões encontravam-se ocupadas, enquanto 13,453 milhões se encontravam desocupadas. Fora da força de trabalho encontravam-se 65,456 milhões de brasileiros. Em termos de proporção, o Brasil apresentou, no terceiro trimestre de 2021, uma população aproximada da Alemanha como empregada, de Portugal como desempregados e da França como fora da força de trabalho.
Acrescido a esta cena tem-se o aumento dos preços dos produtos nas prateleiras dos supermercados e nas feiras. De acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a mandioca subiu 38,33%, enquanto o açúcar refinado teve uma alta de 51,58%. Produtos de higiene também tiveram um aumento no preço do consumidor, como o sabonete com 14,53%. A categoria de transporte teve uma alta de 21,97%. As categorias de consumo de alimentos, produtos de higiene, transporte e entretenimento foram algumas das áreas com grande aumento de preços para o consumidor; a dificultar o quotidiano do brasileiro. O Brasil encontra-se, hoje, no meio de uma diversidade de instabilidades que trazem inseguranças e temores à população brasileira.
Esse “jeitinho brasileiro” o que é?
Foi numa troca de cartas entre os diplomatas Ribeiro Couto e Alfonso Reyes que nasceu a definição do “homem cordial”, a base para o que, mais tarde, Sérgio Buarque de Holanda usaria para atribuir o conceito do “jeitinho brasileiro”. A troca de cartas deu-se no período em que a Revolução de 1930 ocorreu, a colocar Getúlio Vargas no poder. A democracia estava a engatinhar com as suas poucas décadas de existência, para então ser furtada do seu espaço e dar vistas a uma ditadura. Entre 1930 e 1936, Alfonso Reyes, o então diplomata e intelectual mexicano com posto no Brasil, decidiu estimular o intercâmbio entre intelectuais e artistas com a criação da revista Monterrey: Correio Literário de Alfonso Reyes.
“O verdadeiro americanismo repele a ideia de um indianismo, de um puritanismo étnico local, de um primitivismo, mas chama a contribuição das raças primitivas ao homem ibérico; de modo que o homem ibérico puro seria um erro (classicismo) tão grande como o primitivismo puro (incultura, desconhecimento da marcha do espírito humano em outras idades e outros continentes). É da fusão do homem ibérico com a terra nova e as raças primitivas, que deve sair o ‘sentido americano’ (latino), a raça nova produto de uma cultura e de uma intuição virgem – o Homem Cordial. Nossa América, a meu ver, está dando ao mundo isto: o Homem Cordial.”
Marselha, 7-III-931
Ribeiro Couto (Trecho da carta de Ribeiro Couto a Alfonso Reyes in: Instituto Moreira Salles)
A troca de cartas fora incentivada pelo escritor Manuel Bandeira. Quando entusiasmado pelas publicações de Monterrey, encaminhou os três primeiros exemplares ao seu amigo, Ribeiro Couto, na altura locado no Consulado do Brasil em Marselha (França). Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Sales, conta que a troca de cartas se iniciou de maneira espontânea por Ribeiro Couto, parabenizando-o pela iniciativa de desenvolver a revista.
Para Ribeiro de Couto, o Homem Cordial seria a contribuição da sociedade brasileira, (sul) americana, latina daquele período, às demais sociedades. Seria uma sociedade a evitar o puritanismo étnico, ao mesmo tempo em que não reconhece ao certo a importância indígena e negra no Brasil. A percepção de que o homem ibérico fundiu-se com as supostas raças primitivas não atribui o devido valor às diversas culturas presentes naquele momento. Assim como tampouco esclarece sobre as dificuldades socio-económicas presentes na década de 1930 e que fizeram com que o país fosse maioritariamente pobre, analfabeto e agrário, como aponta Sérgio Costa, professor de Sociologia da América Latina no Departamento de Política e Ciências Sociais de Frei Universität em Berlim (Alemanha). Entretanto, entre os intelectuais e os artistas modernistas havia um desejo latente de identificar a cultura brasileira dos pequenos grupos, do interior do país, do não-europeu.
Na altura, Ribeiro de Couto atribuía àquela cordialidade o oposto ao europeu marcado por perseguições religiosas e inúmeros problemas económicos. Entretanto, o suposto homem cordial seria fruto da mistura do europeu ibérico com “índias bravias” e “negras dóceis”, como continuou Ribeiro de Couto na sua carta. Em nada é reconhecido o regime de servidão, a escravização no Brasil colónia e império, as invasões dos bandeirantes, a situação de pobreza e de dificuldade de ascensão social vivenciada pelos negros, pelos indígenas e pelos pardos pós-abolição da escravatura. Ao contrário, esses factos foram absorvidos como parte de um comportamento dócil e servil do povo brasileiro, interpretado por intelectuais e artistas com uma boa base educacional para tal.
Quando Buarque de Holanda imputou a sua percepção sobre o Homem Cordial em 1952, com a publicação do ensaio Raízes do Brasil, havia um acréscimo de senso crítico e de vivência de si, das observações acumuladas ao longo da sua jornada de vida e profissional. A cultura é mutável, o significado antes atribuído agora era alterado. Para Buarque de Holanda, a cordialidade referenciada pelo Homem Cordial vinha do coração, do pathos. Ela poderia ser apresentada tanto aos amigos quanto aos inimigos. Além de associar-se à entrada da vida tradicional dos Senhores, com suas relações de poder, no espaço público. A relação pessoal aprendida pelos filhos dos senhores das Casas Grandes se misturaria com as relações das ruas, dos espaços públicos e dos serviços públicos nas cidades. Neste período, o Brasil encontrava-se sob a presidência de Getúlio Vargas. Se durante a troca de cartas, o país encontrava-se na primeira presidência de Getúlio Vargas, agora na escrita do ensaio Raízes do Brasil, o país encontrava-se no segundo governo Vargas, já sob o regime democrático. Porém, de grande tensão política. As fronteiras entre o público e o privado estavam em permanente reformulação. As relações íntimas das famílias nas suas casas invadiriam as ruas, assim como o caos das relações nas ruas penetraria o espaço íntimo da morada.
É claro que essa ligeira diluição das fronteiras não ocorreu por acaso. Durante a década de 1930, foi lançado Casa Grande e Senzala (1933), escrito por Gilberto Freyre, na tentativa de aludir à formação da sociedade brasileira. A introdução do lusotropicalismo, como uma forma de explicar a mistura presente nos brasileiros com base no português, favoreceu uma política de embranquecimento da população rumo aos ideais europeus. Uma política que levou ao fortalecimento do racismo estrutural presente no país e ao abafamento de outras identidades, também brasileiras.
Em termos históricos, esses autores foram importantes para refletir sobre a identidade brasileira que até então encontrava-se presente em poucos debates. Em verdade, essa reflexão jamais cessará, visto que a identidade é mutável e que a História se constrói ao longo do tempo, em vivências, muitas vezes, fluidas.
Com isso, o mundo da casa, da intimidade e da segurança daqueles com maior poder aquisitivo mescla-se com o mundo da rua, da vadiagem, dos perigos e das gafes. Como Roberto DaMatta conta nos seus livros, o jeitinho brasileiro passa a ser um processo supostamente pacífico e permitido de solucionar qualquer questão. A percepção de intimidade extrapola os limites sociais pré-estabelecidos para adentrar o espaço da rua, das relações comerciais, profissionais e até mesmo político-governamentais.
Hoje, como esse jeitinho brasileiro se apresenta? De uma maneira breve, pode-se perceber o jeitinho brasileiro nas relações sociais quotidianas em que um desconhecido aparenta tornar-se amigo numa breve conversa, de dez minutos, nas ruas. Esse jeito leve e afetivo de conduzir as relações quotidianas traz conforto para muitos acostumados a lidar com relações sociais mais duras; mesmo entre familiares. Essa característica traz ao país um calor para além da sua própria temperatura nos trópicos.
Não só de alegrias vive o jeitinho brasileiro, ele também pode apresentar-se na agressividade presente nas brigas entre torcedores de futebol no meio dos campeonatos. Uma animosidade que torna o outro seu inimigo sem qualquer conhecimento de quem seja. Sabendo que, como é muito provável, os jogos de futebol em nada interferem nos seus salários e empregos. Tampouco directamente em suas vidas. Era para ser apenas um entretenimento que se tornou muito apegado aos afetos do coração.
Ao mesmo tempo, as relações cordiais apresentadas pelo jeitinho brasileiro, surgem dentro do ambiente profissional de trabalho, tanto público como privado. A concessão de favores encontra-se tão presente quanto os impedimentos que surgem para a execução das tarefas diárias. É dentro da dualidade de amigo versus inimigo e de bem versus mal que o jeitinho brasileiro irá apresentar as suas múltiplas faces. Uma delas está no favoritismo, a permitir que barreiras e burocracias sejam rompidas para facilitar qualquer questão apresentada pelo suposto favorito no grupo social ou profissional. Também conhecido no Brasil por “quem indica” a ser uma pessoa que supostamente indica alguém para algum trabalho. Entretanto, sem passar pelo processo seletivo adequado, ou com as regras do mesmo processo sendo burladas para facilitar a entrada do indicado. É aquele que diz “pode confiar, é meu amigo”, quando relacionado com as questões profissionais. Ser amigo ou não em nada diz respeito ao conhecimento profissional de alguém, diz respeito apenas às relações sociais de amizade.
É nesta instabilidade económica, política e sócio-cultural que se encontra a população brasileira. Em que muitos se encontram em situação de desemprego, o favoritismo presente no jeitinho brasileiro pode intensificar-se na tentativa de encurtar o caminho, a busca por trabalho ou a própria disputa por uma vaga. O cansaço e as preocupações fazem com que a partilha de amigos recém feitos no corredores de supermercados ou nas feiras de rua possam trazer leveza ao caos. No final de 2021, o jeitinho brasileiro traz a sua qualidade de resiliência.
28/12/2021