Só a demissão da ministra da Saúde não resolve a crise no SNS
Na madrugada do dia 30 de agosto, chegava às redações a notícia de que a ministra da Saúde, Marta Alexandra Fartura Braga Temido de Almeida Simões, apresentara ao primeiro-ministro o seu pedido de demissão, aduzindo não ter condições para continuar no cargo.
António Costa, referindo que, desta vez, não tinha como não aceitar o pedido, admitiu que a morte de uma grávida transferida do Hospital de Santa Maria para o Hospital de São Francisco Xavier tenha sido a “gota de água” que levou a ministra à demissão – no entanto, não havia ausências nem falhas nas urgências em causa no Hospital de Santa Maria, nestes dias –, mas foi rápido a agradecer o trabalho e empenho da governante demissionária, nomeadamente na difícil gestão da pandemia e na preparação de documentos estruturantes para o sistema de Saúde, em especial o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que muitos dizem estar em situação caótica.
Além disso, Costa adiantou que a substituição de Temido levará o seu tempo, pretendendo que a ministra se mantenha em funções para apresentar ao Conselho de Ministros, a 15 de setembro, os instrumentos regulamentadores do Estatuto do SNS e contribuir para a tomada de medidas de emergência e estruturantes, a fim de se colmatarem as necessidades que a pandemia e a guerra expuseram.
Mais tarde, a opinião pública era informada de que também António Lacerda Sales, secretário de Estado adjunto e da Saúde, e Maria de Fátima de Jesus Fonseca, secretária de Estado da Saúde, haviam solicitado a demissão dos respetivos cargos. Convém esclarecer que a demissão dos secretários de Estado é automática e concomitante com a do respetivo ministro (veja-se a Constituição da República Portuguesa – CRP, artigo 186.º, n.º 3). Porém, se esta expressão formal de pedido de demissão estiver conotada com a solidariedade ministerial, aquelas duas figuras públicas terão dificuldade em integrar o Governo com o/a novo/a ministro/a. E é pena porque Lacerda Sales foi, com raríssimas exceções, uma pedra basilar na difícil tarefa de tomada de decisões e na da ainda mais difícil tarefa de comunicação em tempos de pandemia, superando algumas das inabilidades comunicativas da diretora-geral da Saúde.
Consta que o primeiro-ministro enfraquecera o apoio pessoal à governante e que o Partido Socialista, a nível interno, lhe fazia muitas críticas. Mais claro é que o Presidente da República lhe fazia assíduas críticas, tendo chegado a verberar o atraso da vacinação da gripe em 2020 e a demarcar-se do programa de vacinação da covid-19 – isto, para não falar dos comentários que vem fazendo aos diplomas que promulga, de que os atinentes à Saúde não são exceção, bem como do protagonismo expresso nas suas declarações sobre saúde e virologia durante a pandemia. E já deixou recado ao sucessor, no sentido de que a gestão do SNS deve ser “mais autónoma e independente do Ministério da Saúde”, tendo-o feito a partir de um evento partidário.
As reações à demissão são, em geral, negativas: decisão súbita, mas esperada, pela incapacidade de gerir a pasta; governação nas costas dos profissionais de saúde; dificuldade de dialogar; e insuficiência das medidas para colmatar o caos das urgências e para dar médico de família a todos.
A ministra, secundada pelo primeiro-ministro, identificou o problema estrutural no SNS, que especificou, afirmando que a sua origem estava em medidas tomadas na década de 80 do século passado, que ninguém resolveu. É verdade que, na década de 70, se formaram médicos em excesso, se tivermos em conta a exiguidade do número de estruturas de então do SNS. Foi nessa altura que se criou o serviço médico à periferia e se começou a preconizar a medicina preventiva.
Entretanto, multiplicaram-se as estruturas do SNS: mais hospitais públicos, centros de saúde (que integraram os antigos serviços clínicos da Previdência Social), unidades de saúde familiar. Todavia, por pressão internacional e da Ordem dos Médicos, diminuíram drasticamente as vagas de ingresso nos cursos de medicina e generalizou-se a apetência pelas especialidades. Por tudo e por nada, recorre-se ao especialista. E o médico de família, especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF), tem a especialidade mais pobre do ponto de vista social. Além disso, o acesso a ele é difícil para o cidadão comum e é-o muito mais nas férias, nas folgas e nas licenças várias, sobretudo as da parentalidade – isto, para não falar dos diversos milhares de cidadãos sem médico de família.
Decresceu o número de médicos e há especialidades, nomeadamente a de Ginecologia e Obstetrícia, em que não há pessoal suficiente. Por outro lado, a proliferação de clínicas e de hospitais privados retirou do SNS muitos profissionais, em regime de exclusividade ou em regime de acumulação, com prejuízo para o SNS. O setor privado paga bastante mais, os mais pobres não o frequentam e o escopo é faturar. O setor público paga mal e não oferece carreira atraente.
Marta Temido diz que ninguém trabalhou para inverter a situação. Não é bem assim, porquanto se criaram mais escolas de formação médica e de medicina dentária. O próprio ex-ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, quis implantar a formação de profissionais de MGF, com um horizonte temporal de formação mais curto, o que levantou polémica na Ordem dos Médicos (OM), quando o problema é que não há quem nos atenda. E isso não significava que, de futuro, não continuassem a formação. E este Governo quis colmatar a falta de médicos de família com o recurso temporário a profissionais de MGF, o que a OM contestou.
A ministra foi acusada de considerar criminosos os enfermeiros, quando disse não negociar com intervenientes que se subtraem à lei. Com efeito, uma greve não é decretada nem secundada por uma ordem, nem se deve estribar num fundo pecuniário alimentado por uma empresa. E disse que os médicos, além da competência técnica, precisavam de resiliência. A OM não gostou.
É óbvio que numa coisa a governante não tem razão: a queda do XXII Governo e os tempos anterior e subsequente às eleições não justificam o que se passa no SNS, pois o Governo só está em funções de gestão no caso de demissão, o que não sucedeu, e antes de o seu programa ser debatido no Parlamento, tempo muito curto (consulte-se a CRP, artigo 186.º, n.º 5). Já no caso das falhas nas urgências, Marta Temido não tinha outra hipótese na conjuntura, a não ser autorizar horas extraordinárias ao pessoal dos quadros, contratar prestadores de serviços e recomendar a reformulação dos mapas de férias.
Tudo isto não foi bem aceite pela OM, que chegou a falar em escravidão no SNS e por alguns médicos que se esqueceram de que proferiram o Juramento de Hipócrates, que os vincula inexoravelmente ao respeito da dignidade do doente e ao da vida humana, a menos que o juramento não passe de ritual a observar aquando da entrega da cédula profissional.
É evidente que a mudança de ministro não resolve a situação. A única vantagem, se é que a há, é a descompressão social na área da saúde, que pode beneficiar com a mudança de rostos.
De resto, o que importa é a mudança de políticas na área, que passam, nalguns casos, pela rutura, a médio e longo prazo, por exemplo, do estancamento da saída de profissionais do setor público para o privado, oferecendo mais regalias pecuniárias, carreira atraente e melhores equipamentos. Outra tomada de decisão poderá contrariar o não recurso habitual a prestadores de serviços, sem deixar de incrementar a formação de mais profissionais, além de promover a colocação de profissionais com formação de base a trabalhar em cuidados de saúde primários (CSP), enquanto se candidatam e se formam na especialidade que pretendem; e até a obrigação de os profissionais estarem durante um período razoável a trabalhar, obviamente com justa remuneração, para a comunidade nacional que os formou. Entretanto, as medidas conjunturais tomadas pela ministra demissionária devem ser mantidas enquanto for necessário, tal como devem ser criados e cumpridos os instrumentos legais regulamentadores do SNS.
É preciso tornar o SNS mais humano, mais justo e totalmente inclusivo. É preciso que os serviços de CSP, além das consultas programadas, atendam o utente que surja no próprio dia. Só isso descongestionará os serviços de urgência, a favor dos casos verdadeiramente urgentes. É preciso investir mais no SNS, dotando os diversos hospitais do País dos equipamentos mais modernos, incluindo os de natureza robótica.
Será o futuro ministro capaz de resolver o problema do SNS a contento dos profissionais e dos cidadãos? São estes que justificam a existência do SNS e dos seus profissionais, por uma saúde ao alcance de todos, adversa de negócios obscenos e encarada como o exercício efetivo de um direito fundamental de todos e o cumprimento de um dever grave por todos. Veremos.
01/09/2022