Somos ucranianos e não sabíamos
Se atendermos aos gritos confusos dos comentadores profissionais das televisões e ao sussurro da repetição popular consequente, ouviremos um número avultado de nomes de gente medíocre e de disparates; e se procurarmos, não o conhecimento extraído de informação tendenciosa ocidental, mas relatórios e análises de gente imparcial, e solicitarmos informação de outros canais mediáticos, raramente somos atendidos. Mas é com estes últimos que contamos, caso apreciemos a honestidade.
Na “nossa” esfera pública e ideológica, há gente de imenso valor, que se pauta pela velha areté e sabe que o trabalho de excelência é sempre aquele que requer a presença de outros e abjura a recorrência circular, especialmente se esta se aplicar ao pensamento. A vantagem de se recorrer aos órgãos informativos convencionais da esfera ocidental e, em alternativa, serem usadas plataformas como o Facebook, o Youtube ou o Telegram (e diversificados sítios informativos do “Global South”) é que os factos isolados, como no-los querem apresentar, deixam de ser isolados. E é aqui que Mark Zuckerberg e Pavel Durov coincidem: na consciência de que aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui a realidade e que, lembrando Hannah Arendt, “a presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”. A que deveremos acrescentar sempre aquilo que vêem outros e que nós não conseguimos ver, por nos ser vedado.
A guerra (Ucrânia-Rússia-Ocidente) entrou numa fase em que novas percepções se combinam para formar o que muitos designam novo paradigma da multipolaridade. Aos poucos, vamos entendendo que os Estados Unidos da América (EUA) e Rússia jogam a grande cartada, mas em tabuleiros distintos. Se os Norte-americanos vão adiando a paz, numa protelação cuja importância imediata lhes granjeia receitas na indústria de armamento e de novos mercados energéticos reconquistados, os Russos, há muito (serão décadas?), convergem para uma nova ordem internacional (geoeconómica e política), a par dos congéneres Chineses, Indianos e das regiões da Ásia-Pacífico e de África.
Em tom escarninho, Pepe Escobar (jornalista investigativo independente brasileiro) afirma: “Em Moscovo não se sente qualquer crise, nenhum efeito de sanções, nenhuma taxa de desemprego, nem um sinal de gente sem-abrigo nas ruas e nada senão o mínimo de inflação.” Com efeito, surgem relatórios que indicam que os países que configuram os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) respondem actualmente por 31,5% do produto interno bruto (PIB) global, ou seja, uns pontinhos significativos acima do G7 (grupo dos sete países mais industrializados do Mundo). Para se perceber, a moeda de transacção de mercado entre o Brasil e a China passou a ser o Yuan (moeda oficial da República Popular da China). Mais de metade das transacções da China são efectuadas na moeda própria, a “desdolarização” está em marcha e foi encontrado um acordo histórico entre a Arábia Saudita e o Irão. Não admira (estima-se, na hipótese mais optimista para o Ocidente, até 2050) que o enfraquecimento do Dólar corresponda à decadência do “império”, de que a recente falência de alguns bancos tenha sido já o prenúncio. Esta é a realidade que o Ocidente quer negar, a muito custo, e o preço a pagar pelo povo ucraniano, por capricho.
Não há como contestar o desespero da administração norte-americana face ao rumo da guerra. Em jogo está a hegemonia dos EUA, num mundo unipolar, questão que os Norte-americanos gerem com alguma displicência, turvados pelas presidenciais de 2024, vitais para a sobrevivência de Joe Biden. A guerra pode ser um desgaste, mas, por enquanto, há que alimentar a ficção de Volodymyr Zelensky. Ainda assim, a contra-ofensiva ucraniana poderá determinar a reivindicação de uma vitória, nem que seja de Pirro. Contudo, se aquela falhar, os Ucranianos (os seus aliados e todo o alinhamento acrítico e, vamos lá ver, saloio com a Ucrânia) correm o risco de a Polónia poder vir a ser envolvida no conflito. Isso seria desastroso.
A Ucrânia, muitos o disseram, era já um Estado falhado antes de 2014: a taxa de corrupção atingia níveis ilimitados, abundavam os negócios obscuros sobre recursos energéticos e o tráfico de órgãos humanos atingia níveis de relevância preocupantes, para não falar – as provas são irrefutáveis – da conivência com facções neonazis altamente posicionadas no país. Se a posição europeia e norte-americana mudar e a Ucrânia ficar fora da agenda ideológica e política do mundo ocidental, pode dar-se o caso de entrar nessa prevalência da morte em vida, à semelhança do Iraque ou da Síria.
Procurando responder a um jornalista chinês, o porta-voz do secretário-geral das nações Unidas (ONU), Farhan Haq, não conseguiu admitir que há uma actual ocupação da Síria por forças militares dos EUA. Na realidade, foi embaraçoso ouvir as explicações de Farhan Haq, admitindo, primeiro, não haver tropas norte-americanas na Síria e, depois, ser inexistente a conflitualidade armada, sendo confrontado, de imediato, com o facto de cinco militares norte-americanos terem ficado feridos em conflito armado.
Mas as últimas semanas têm sido pródigas em inúmeros episódios caricatos. O representante da Rússia na ONU, Vassily Nebenzia, denunciou, há poucos dias, a intenção do ministro da Educação da Ucrânia quanto à tentativa de revisionismo nos programas de História e de Geografia (com a aprovação de 25 currículos para os 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade), lendo passagens de alguns manuais escolares. Num deles, surge escrito o seguinte: “Os povos ancestrais de franceses, espanhóis, portugueses, turcos e judeus vieram da Ucrânia”. Um dos argumentos, segundo o manual, baseia-se no facto de os antepassados dos franceses serem os gauleses “que provêm da Galicia na Ucrânia”.
Vassily Nebenzia ficou também colado à etiqueta de propaganda, agora que se pronunciou sobre o roubo de crianças por parte de países ocidentais. É um facto que a Rússia se apropriou de centenas ou de milhares de crianças retiradas da Ucrânia. Crime? Para os Russos, essa foi a forma de evitar a sua morte no conflito no Donbass; já para os Ucranianos, trata-se de barbárie. Recorde-se que os relatos de que crianças ucranianas perderam o rasto dos pais, numa série de países ocidentais, se sucedem, há meses, na imprensa russa. Talvez seja uma forma de escudar Vladimir Putin face ao mandado de captura exarado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Para já, só há incertezas.
Renegado o espírito crítico do Ocidente, Emmanuel Macron e Ursula von der Leyen – de quem se diz, ironia das ironias, ter um lugar cativo na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN / NATO) – apresentaram-se no beija-mão a Xi Jinping (presidente da República Popular da China), sem perceberem, sequer, que o poder lhes está a fugir das mãos. Entretanto, Russos e Chineses discutem o lugar da capital do mundo multipolar e a moeda de transacção.
Quanto a nós, o melhor será conferirmos os nossos livros de História.
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Nota do Director:
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10/04/2023